Enquanto muitas empresas quebram a cabeça tentando escalar uma modelo ou atriz negra afim de preencher a cota da “diversidade” em suas campanhas, a AvonBR chegou em cena para dar recado: vai ter mulher preta protagonista na publicidade dentro e, principalmente, fora do restrito mês da consciência negra.
Precisei digitar esta introdução com os pés, pois as mãos estavam aplaudindo as últimas campanhas da empresa veiculadas em suas redes sociais. Desde “O ano que a gente quer“, VT com co-criação e ilustre presença da rainha Djamila Ribeiro, até “Um Afrofuturo em Iorubá“, outra belíssima peça audiovisual veiculada no dia 12 de novembro em seu canal do Youtube, a AvonBR vem imprimindo em suas campanhas a aposta no empoderamento feminino negro como norteador de uma comunicação inclusiva e recheada de representatividade.
É possível discutir, entretanto, que a simples presença de celebridades negras em campanhas não é um compromisso com a diversidade e a pluralidade. Lembro-me bem do “fuzuê” que se levantou em torno da campanha Para TodEs!, também idealizada pela AvonBR, em 2016. A Campanha, estrelada por notórios personagens da cena LGBTI+ nacional como a cantora Liniker (mulher trans negra), foi alvo de críticas de movimentos e militantes anticapitalistas por “promover a cooptação mercadológica” de bandeiras que são do movimento, sob o discurso de representatividade. O caso ganhou repercussão depois que a digital influencer Stefane Ribeiro se posicionou a respeito (entenda mais).
2018 também foi o ano de lançamento do célebre filme Pantera Negra, com records de bilheteria mundo afora. A obra entrou na mira dos críticos de plantão sob argumento de que a representatividade negra e a exaltação da cultura afro presentes no filme estavam, na verdade, nos distraindo da “real” agenda do movimento negro, que deve ser a emancipação do povo preto e o fim do sistema capitalista que explora e aprisiona seus corpos (para entender melhor, clique aqui).
Mais recentemente, em meados de novembro, foi a vez do youtuber Spartakus Santiago entrar na mira dos atiradores de elite das redes sociais. Ao ter a tela de seu MacBook quebrado, o ativista negro promoveu uma vaquinha online para arrecadar fundos para o conserto, razão pelo qual foi duramente criticado (entenda melhor o caso). Na concepção de seguidores e haters, era inconcebível que, um dia após a realização da vaquinha (super bem sucedida, a propósito), o youtuber usufruisse de um belo dia na praia do Rio, ostentando uma foto plena em seu perfil do instagram – na cabeça dos haters de plantão, fazer uma vaquinha pública significaria alguma espécie de voto de pobreza ou de franciscanismo.
Todos esses pontos devem ser examinados com cuidado, sim. Mas você já parou para se perguntar por que a problematização do debate sobre apropriação de uma cultura ou de uma agenda de luta para fins mercadológicos só acontece quando existem pret@s envolvid@s?
Deixe-me explicar melhor: ainda que com pouca leitura no assunto, entendemos de certa maneira que os corpos negros ainda são os preteridos tanto no mercado quanto na arte, na literatura, no entretenimento, na história oficial e em diversos outros campos da sociedade. Também entendemos que mesmo adotando um discurso de pluralidade, empresas visam ao lucro e, portanto, pouco importa se efetivamente elas adotam uma política de diversidade dentro dos muros organizacionais, desde que sua comunicação se estenda aos grupos (chamados de) minoritários – alguém me explica como uma população que representa mais que 50% pode ser minoritária-, vistos cada vez mais como lucrativos.
As empresas já captaram muito bem a narrativa da diversidade racial e sabem que, nos dias atuais, não pautá-la é motivo de rechaço e até mesmo de boicote por parte d@s consumidor@s. Mas, a questão central aqui é refletir POR QUÊ uma Beyoncé da vida é questionada como um ícone da luta feminista e antirracista por suas letras e gênero musical atenderem a uma lógica “capitalista” e não pautarem ipsis litteris a cartilha dos movimentos negros; POR QUÊ centenas de vaquinhas online foram realizadas por influenciadores brancos sem nenhum motivo aparente para ataques, mas quanto um youtuber preto decide fazê-la, seu perfil vira um painel de ódio gratuito; POR QUÊ o maravilhoso filme de Wakanda (na minha opinião, um dos melhores de 2018) reverberou tanta discussão sobre apropriação mercadológica da identidade e da cultura afro; POR QUÊ ciberativistas negras são depreciadas na rede por fazerem parcerias com marcas e empresas, sob o argumento de fazerem apologia ao consumo e ao neoliberalismo.
Não pretendemos advogar que a luta antissistêmica e antiexploração estejam indissociadas do combate à desigualdade racial e da positivação da identidade negra. O que não dá, entretanto, é para pretos e pretas resignarem-se à agenda anticapitalista e esquecerem que, enquanto a revolução não acontece, a mídia e as demais instâncias sociais de representação ainda são protagonizadas pelas figuras hegemonicamente brancas e eurocêntricas.
É interessante pensarmos como estas discussões se dão em torno do imaginário que temos sobre o que significa ser pret@ e como pret@s devem ser posicionar, o que devem vestir, sobre o que devem falar, em quais espaços podem aparecer. O rapper (e gênio da música brasileira) Emicida, em entrevista ao Le Monde Diplomatique Brasil (assistam!), é muito categórico neste debate ao dizer que “a nossa [dos pretos] liberdade ofende”, ao ser alvo de polêmica durante uma noite de premiação ao usar um terno avaliado em R$ 15mil. Mais que vender discos e faturar centenas de reais com seu trabalho, o cantor é muito firme ao dizer que sua obra é “mais do que apenas dinheiro. Dinheiro é a parte mais superficial”; o que seu trabalho, e de muitos outros artistas e celebridades negr@s, faz é ser uma referência positiva para o povo pret@. É a positivação de uma identidade que, mesmo sob os engendramentos do capitalismo, está sendo reinventada, afirmada, visibilizada. E isso incomoda.
Só que, nessa disputa dos espaços hegemônicos, não é fácil conceber a ideia de que uma população (por muito tempo desvalorizada e preterida) hoje esteja imprimindo seu protagonismo e reivindicando seu espaço na história.
Pret@s no topo incomodam e nós não estamos abertos a admitir isso.
Incomoda ao militante que, vendo um filme majoritariamente preto roubar a cena, questiona seu caráter político. Incomoda aos haters que, vendo um youtuber preto ascendendo em popularidade, acham que ele deve ser devoto à pobreza e se resignar ao papel de vítima. Incomoda uma rainha do pop sendo protagonista do cenário fonográfico internacional ao acusá-la de “não dar conta da agenda do povo preto”.
Nós não estamos ainda acostumados a ver o protagonismo negro de uma maneira que não esteja formatada dentro das caixinhas (que são o imaginário social sobre o povo preto) já pré-estabelecidas. A própria ideia de pensar um artista pret@ como um representante do POVO PRETO (como se o “povo preto” fosse uma massa uniforme e homogênea), portanto responsável por assumir a agenda/cartilha da maneira que nós esperamos que seja atendido, revela o quanto nosso olhar e percepção estão envenenados por uma ótica embranquecedora e unidimensional.
As reflexões que partilho com vocês aqui são derivadas de inquietações que venho ruminando há um tempo. Quero devolver essas inquietudes para provocar você a pensarmos junt@s novas formas de enxergar as questões que envolvem a população negra. E, principalmente, para questionar o por quê de tanto incômodo. Ainda há muito o que revolucionar: comecemos pela descolonização do nosso pensamento embranquecido e racista. E haverão muitos ganhos pela frente.

Publicitária cearense. Canceriana. Doutora e mestre em Psicologia. Amante da docência. Integrante do Grupo Interdisciplinar de Estudos, Pesquisas e Intervenções em Psicologia Social Crítica (Paralaxe-UFC). Defendeu em sua tese de doutorado um estudo sobre mulheres em transição capilar. Atualmente, dedicada aos estudos de gênero, raça, feminismos negros e decolonialidade.
Louca por fotografia, design, viajar e colecionar carimbos no passaporte. Uma pessoa extremamente curiosa.