Falar de sofrimento psíquico nos chega como um tema demasiado forte, especialmente quando nos últimos anos o diagnóstico de depressão e de outros transtornos tem expressado altos números entre os jovens brasileiros. Todavia, existem recortes e especificidades que precisam ser colocadas no papel no que diz respeito ao grupo populacional majoritariamente atingido por este fenômeno de adoecimento. Não é à toa que 60% dos jovens brasileiros que interrompem a própria vida são negros. Tampouco é a toa o fato de este índice ser 45% maior na população negra do que nos autodeclarados brancos.
O que pretendemos pontuar aqui é que, no Brasil, o sofrimento psicológico tem cor, raça e localização geográfica. Isso quer dizer que para além de um sofrimento psíquico individual, que acomete dezenas de milhares de jovens no país, o adoecimento mental está correlacionado, sobretudo, com o lugar que os indivíduos ocupam na pirâmide social. Em termos ainda mais diretos: quanto mais subalternizados forem os lugares que ocupem na sociedade, mais suscetíveis estarão a estes adoecimentos. Explico.
Embora consideremos a Psicologia e/ou a Psiquiatria ciências e profissões responsáveis por dar conta do que sucede no interior da mente e das emoções humanas, existe uma série de fatores sociais que se correlacionam com os motivos pelos quais alguém pode vir a adoecer. Estes fatores não atuam separadamente. Pelo contrário. Em conjunto, produzem um ambiente suscetível para o adoecimento mental de um sujeito.
Ou seja: quando algumas populações (quase sempre as menos abastadas financeiramente) estão mais expostas a determinadas vulnerabilidades sociais como desemprego, endividamento, violência, falta de cobertura de saúde, entre outros, estes se apresentam como “fatores de risco” para o adoecimento físico e mental destas populações. Entendendo que no Brasil é a população negra a mais fortemente atingida por estes fatores de risco estipulados pelo Ministério da Saúde, é impossível não correlacionar o alto índice de sofrimento psíquico desta população com sua condição subalternizada. A situação apresenta-se tão grave que o próprio Governo compreendeu que RACISMO é institucionalmente reconhecido, desde 2014, como um problema na saúde.
Como, então, pensar na produção de vida e de condições saudáveis para não apenas a sobrevivência mas para o pleno exercício do direito de viver da população negra? “Considerando que o racismo é um fator de risco para a saúde mental, e se a gente pensar que isso não é debatido na formação do psicólogo, dá pra dizer que a Psicologia está sendo negligente com a maioria da população do Brasil”, diz a psicóloga Fernanda Pedroza.
A ausência da discussão sobre raça/etnia nas grades curriculares dos cursos de Psicologia brasileiros produz um contrafeito: como preparar profissionais aptos a lidar com o racismo enquanto um fator de risco para a saúde mental se o tema não é tomado com a seriedade que merece? Isso, claro, não ocorreria se de fato tivéssemos uma visão concreta do que o racismo representa na vida, sobretudo, da população negra.
Se o sofrimento da alma parece ser invisível aos olhos, existe uma série de fatores que nos ajudam a perceber o racismo institucional/ambiental/sistêmico/individual como algo concreto que atinge diretamente a saúde mental da população negra. Embora a intersecção entre o tema da saúde mental e o recorte étnico-racial brasileiro não seja algo tão popularizado dentro do campo da saúde, é preciso ponderar quais são as condições materiais e imateriais que a população negra brasileira desfruta para ter acesso a políticas de saúde mental que não apenas faça-a “sobreviver”, mas que a humanize. Que considere seu sofrimento psíquico como legítimo, específico e que, além de tudo, sejam traçadas estratégias concretas a serem implementadas no campo da Saúde Mental.
FOTO EM DESTAQUE: Instituto Bia Dote.
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Publicitária cearense. Canceriana. Doutora e mestre em Psicologia. Amante da docência. Integrante do Grupo Interdisciplinar de Estudos, Pesquisas e Intervenções em Psicologia Social Crítica (Paralaxe-UFC). Defendeu em sua tese de doutorado um estudo sobre mulheres em transição capilar. Atualmente, dedicada aos estudos de gênero, raça, feminismos negros e decolonialidade.
Louca por fotografia, design, viajar e colecionar carimbos no passaporte. Uma pessoa extremamente curiosa.