O brasileiro Ruan Carlos Galdino da Silva, de apenas 24 anos, começa nesta na sexta-feira (13/3), no palco do Teatro Joburg, na cidade de Joanesburgo, principal núcleo urbano da África do Sul, uma importante jornada. No seu sétimo trabalho na Companhia de Ballet Profissional Joburg Ballet, ele será o Basílio de Dom Quixote.
Negro nascido no Rio de Janeiro, Ruan vive na África do Sul há quatro anos. Quando não está ensaiando ou fazendo aulas, ministra ballet clássico e fitness dance. Sempre tem a vida muito ativa em eventos culturais e artísticos pelos cantos de Joanesburgo. Para o seu primeiro papel de 2020, as expectativas são as mais altas.
A representatividade negra caminha junto a cada movimento que o bailarino trabalha para executar. No entanto, mesmo com todos os avanços e conquistas da população negra, um negro interpretando o papel principal como solista ainda não é cena comum no mundo do ballet clássico.
A branquitude é presente também no universo do ballet. Ruan Galdino considera essa experiência um marco para sua carreira e uma forma de inspiração para muitos outros bailarinos negros.
O Ceará Criolo conversou com ele. Confira.
Ceará Criolo: Quais as suas expectativas para o Basílio, personagem principal do ballet de Dom Quixote?
Ruan Galdino: Nossa… eu tô com a expectativa bem alta, óbvio… Ele é um ballet que tem essa pegada espanhola, essa coisa latina, que é muito próxima de mim, mas ao mesmo tempo é distante. Acho que eu não sabia que ela tinha tanto essa distância de mim e tão próxima. Então, eu tô com muita expectativa de que vai ser uma coisa inédita pra mim, por estar fazendo o Basílio. Na verdade, eu sempre gostei muito do personagem Basílio e sempre tive um pouco de medo do Basílio por ser um personagem muito forte. E ele tem essa pegada sexy, envolvente e ao mesmo tempo ele é sagaz e ele também tem um pouco dessa coisa de ser rude. Então, isso me dá um pouco de medo porque eu não sou assim tanto, entende? Como pessoa! E, tecnicamente, são muitos saltos muito difíceis… Eu vou ser o Basílio! Nunca imaginei que poderia ser o Basílio. E (a expectativa é alta) também por estar fazendo o “Opening night”, a noite de abertura! E é uma noite muito importante para a Companhia porque vão ter convidados, patrocinadores…
CC: Você considera um desafio fazer o Basílio? Por quê?
RG: É um desafio muito grande. Eu já sabia, eu já tinha a sensação de que realmente seria muito difícil pra mim desenvolver o personagem porque, tecnicamente, ele é difícil também… não vou falar que ele não é difícil! Mas talvez, tecnicamente, ele seja mais próximo do que a minha técnica tenha mais facilidade, que são saltos e giros. Então, saltos e giros do personagem Basílio são movimentos que eu gosto e tive que aprender coisas novas, que talvez eu não fizesse antes tão bem. Mas, tecnicamente, ele não me desafia tanto como artisticamente… o artístico tem me desafiado muito mais. E eu me importo muito com o artístico! Eu me importo quase que… os 100% que eu me importo com a técnica, eu me importo com a arte! De saber contar uma história e o público chegar e acreditar que eu sou o Basílio! É o Ruan que é o Basílio, é o Basílio que é o Ruan. Você não vai saber a diferença. É essa a minha expectativa de que… alguém que vai assistir vai estar enxergando o Ruan, mas não… é o Basílio! É como quando a gente vai assistir um filme e a gente fica tão encantado com o filme, com o personagem que você chora no filme, você ri porque ele parece com aquele personagem. Você se identifica com aquele personagem, por ele estar sendo feito tão bem que ele se torna real… ele se mistura ali. Então, o meu desafio de Basílio tem sido esse por causa dessa pegada sensual e tudo mais. Eu tenho essa pegada minha como latino, como brasileiro, que eu já gosto e naturalmente sou uma pessoa muito aberta. Porém, eu sou assim com meus amigos, quando vou pra uma festa, com as pessoas mais próximas quando eu faço brincadeiras mais íntimas. Então, eu não abro esse meu lado sensual e sexy pra todo mundo. Não é uma coisa que todo mundo tem acesso. Quando eu tenho que transportar isso pra um personagem e expor isso, externalizar isso pra um público, pra um palco é outra história. Requer muita coragem! Porque uma coisa é você fingir que está sendo sexy, você fingir ser autoconfiante; outra coisa é você ser autoconfiante e se sentir sexy! São duas coisas diferentes e eu não quero fingir; eu quero sentir. Eu quero que as pessoas olhem pra mim e sintam o personagem! Então, é esse que tem sido até agora meu maior desafio e, nessas duas últimas semanas antes do espetáculo, tem acontecido! Eu tô muito feliz de estar conseguindo libertar esse lado meu, me sentindo autoconfiante! E tem sido bom até pra minha vida pessoal. Eu não tenho problema com autoestima, acredito… a gente tem dias de baixa estima, autoestima, mas tem sido gostoso conseguir. Tem sido um processo muito bom porque eu amo o processo, o processo das coisas e o processo de desenvolver um personagem em mim. Eu tô muito feliz. É um desafio que tem sido melhor do que eu, inclusive, esperava do que seria.
CC: Como é que tem sido o teu ritmo de preparação pra esse personagem?
RG: A gente está ensaiando desde o final de janeiro, quando eu voltei das férias. Então, é claro que voltar das férias e por ser a primeira temporada do ano é sempre muito complicado. O corpo de bailarino é assim: a gente treina muito, a gente quer buscar sempre a perfeição, mas se você para um pouco o corpo já sente muito a diferença tecnicamente! O peso muda, as facilidades você perde um pouco… Então, desde que eu voltei de férias, já voltei a malhar… malhei um pouco nas férias também, mas claro que não é a mesma rotina. Eu vou pra academia de manhã cedo ou de noite. Agora nessas duas últimas semanas antes do espetáculo, eu parei de malhar pro corpo aguentar, mas 1 mês e meio antes eu tava malhando, bastante focado, e tava me preocupando um pouco mais com a alimentação também. Porque cada vez que vai chegando mais próximo, eu vou ficando cada vez mais ansioso! Então, fica mais difícil eu conseguir lidar com a alimentação, de ficar me preocupando tanto com isso. Mas a preparação nos ensaios é sempre a mais pesada porque, no início, eu fiquei com muito medo de não conseguir. Eu sabia que eu ia pegar a coreografia, mas o Basílio e a Kitri [personagem principal feminina] eles dançam muito… então, é muito cansativo! São muitas cenas, muitos detalhes, muita coisa para lembrar pra história sair perfeita. Ser contada através da dança, através do movimento sem nenhuma palavra. Isso é incrível, né? Eu sou apaixonado só de pensar nisso. A gente fica lá [na Joburg Ballet] de 10 horas até às 18 horas. Começamos às 10 com 1 hora e 15 minutos de aula. Depois de 11h30 até às 18, temos ensaio, com 1 hora de almoço e 2 intervalos de 15 minutos. Então, são muitas horas em pé. E eu vou na fisioterapia também pra prevenir machucados. São muitos saltos e eu tenho sentido muita dor no pé, na panturrilha e nas coxas.
CC: O que significa para você, como negro, interpretar o papel principal do ballet de Dom Quixote?
RG: Ainda, pra mim, a cada papel principal que eu faço… todos têm sido pela primeira vez… é… eu não sei nem explicar, eu vou achar a palavra… é inacreditável! E, dentro de mim, eu sei que vou fazer aquilo, eu vou estar fazendo, mas demora pra eu entender, cair a ficha de que estou fazendo aquilo! Por causa da cultura em que a gente é colocado quando a gente está estudando ballet. E eu vou explicar. Por isso que eu sendo um bailarino negro fazendo esse papel é inédito e algo realmente muito grande! É uma forma de vitrine, um display pro mundo de que as coisas estão mudando e elas vão continuar mudando! E eu posso ser um exemplo dessa mudança. Porque, quando eu era mais novo, eu não conhecia ninguém, um bailarino negro, fazendo o papel principal. Eu só conhecia um na época que começou o Youtube e tudo mais. Eu só conhecia o Carlos Acosta, um bailarino cubano. Ele é ex-primeiro bailarino do Royal Ballet, em Londres. Ele se aposentou, é diretor de uma Companhia agora, mas já fez uma versão de Dom Quixote, coreografou. E ele foi uma figura muito importante pra mim. Ele era um exemplo pra mim, que eu poderia me tornar aquilo ali, que eu poderia chegar àquele lugar. E eu não tinha outros exemplos! Então, ele quase se tornou um ídolo; ele se tornou uma fonte de inspiração. Ele não sabe que, por muitos anos, foi minha inspiração e ainda é! Como que um trabalho de uma pessoa que tá do outro lado do mundo num país, num contexto, consegue me influenciar tanto? Isso é por ele ser um bailarino negro que conseguiu chegar naquele lugar! E não é porque não existem outros bailarinos negros, mas é porque não são dadas as oportunidades. E eu ter essa oportunidade é inacreditável! Está acontecendo, eu tô aqui e vou entrar no palco na noite de abertura como o Basílio. E esse é o momento que eu tô vivendo! E isso eu vou poder transportar pra outras pessoas, outras crianças, outros adolescentes. E também para os mais velhos, para diretores e professoras de outras escolas e companhias do mundo que precisam mudar a mentalidade! Existem muitos bailarinos negros talentosos e eles podem ser sim um príncipe em Giselle, na Bela Adormecida. E podem ser também um Basilio! Mas eles são colocados pra baixo desde novos, assim como eu fui muitas vezes. Eu sempre ouvi que jamais poderia ser príncipe por eu ser baixo, pelo tamanho da minha perna, por eu ser forte demais e ser escuro demais. Eu posso ser qualquer personagem! Não é por causa da minha cor que vai mudar… a gente está em outro século, em outra geração e as coisas precisam mudar! Então, ser um Basílio negro é um fato muito importante e eu admiro muito a Joburg Ballet por estar depositando em mim essa confiança e esse crédito de poder estar vivendo isso é muito especial pra mim.
CC: Então, tu considera muito inspirador, uma forma de ser uma fonte de inspiração para outros… tal como o Carlos Acosta foi pra ti…
RG: E é isso que me motiva muito. Uma das minhas maiores motivações é eu poder inspirar outras pessoas porque eu posso ser um espelho, um reflexo de uma nova geração que está por vir! Eu só desejo e anseio que as pessoas entendam, que as pessoas mudem e abram a cabeça! Que depois do espetáculo, os pais, os avós, as crianças, os adolescentes, que eles fiquem tão encantados, que queiram fazer ballet; que eles entendam que podem ser bailarinos ou escolherem a profissão que eles quiserem, independente da cor deles, de quem eles são, da origem.
Fotos: Ken Jerrard
Larissa Carvalho, correspondente do Ceará Criolo na África do Sul.
Jornalista. Tem experiência nas áreas de Radiojornalismo (Rádio O POVO CBN), assessoria de comunicação (Defensoria Pública do Estado do Ceará) e webjornalismo e jornalismo impresso (Portal O POVO Online). Trabalhou como voluntária de marketing social na Fundación Sotrali em La Plata, Argentina. Passou pela redação do jornal sul-africano Mail & Guardian como repórter freelancer em Joanesburgo, África do Sul. É preocupada com questões raciais desde os 18 anos, quando se descobriu negra. Tem um pé na Moda.