“A Utopia não é o sonho. É o que nos falta no mundo.
Eis o que ela é: aquilo que nos falta no mundo”
Édouard Glissant,
“O Pensamento do Tremor. La cohée du lamentin”, 2014.
“Você pode me riscar da História
Com mentiras lançadas ao ar.
Pode me jogar contra o chão de terra,
Mas ainda assim, como a poeira, eu vou me levantar.
[…]
Da favela, da humilhação imposta pela cor
Eu me levanto
De um passado enraizado na dor
Eu me levanto
Sou um oceano negro, profundo na fé,
Crescendo e expandindo-se como a maré.
Deixando para trás noites de terror e atrocidade
Eu me levanto
Em direção a um novo dia de intensa claridade
Eu me levanto
Trazendo comigo o dom de meus antepassados,
Eu carrego o sonho e a esperança do homem escravizado.
E, assim, eu me levanto
Eu me levanto
Eu me levanto”
Maya Angelou,
“Ainda assim eu me levanto” / Still I Rise, 1978.
Um salve às mais velhas/os e aos mais novos que estão germinando-apontando para um futuro-possível do agora. Um abraço [im]possível aos que estão aqui, hoje, nas arquiteturas do nosso corpo, pelos fios invisíveis da Internet e ao longo do olhar de reconhecimento em meio às múltiplas clausuras.
O que foi (e está sendo) o ano de 2020? Quanto tempo esse ano ainda perdurará e de que tempos ele é e o que ainda nos obrigará a experimentar? O quanto de passado ainda aguardamos e quais as possibilidades e perigos que habitam o desejo e a esperança no futuro? Como violências em looping-contínuo contra determinadas formas de existências se mantêm? Qual é a identidade desse tempo trágico?
O nosso tempo é (e há séculos continua sendo) o tempo colonial que tem na raça e nas suas intersecções múltiplas formas de escassez, crimes, assassinatos, destruição, estupros, aniquilação e outros tantos e imensuráveis abusos. Não é o ontem. É o agora.
Por que escrever esse texto? Ninguém o solicitou. Entretanto, escreverei numa linguagem fatalmente imperfeita, ambígua e até mesmo inadequada. Todo problema é saber como, no seio desse Mundo-Branco, é utilizado o excedente. Como se vive e como se morre no Brasil?
Por Mundo-Branco, entendo como uma força-motriz colonial-extrativista capitalista-cisheteropatriarcal inventora de si e do Outro. Nesse sentido, vale lembrar que todo o poder, por princípio, só é poder pelas suas capacidades de metamorfose. Por ser uma força sem rosto, trata-se de um poder que se alimenta de si e de suas ficções e delírios. Não é simplesmente uma identidade. Essa força produz a si mesmo e todas as outras identidades conhecidas e ressignificadas no mundo moderno. As relações de poder são uma relação no interior do Mundo-Branco. Sim, não podemos simplesmente amar o poder e muito menos temê-lo. Erguer-se. Sair da posição de cócoras infiltrando-o de imaginação e encantamento.
Interesso-me aqui pelo excedente, isto é, daquilo que não tendo preço, deve escapar por efetivamente não pertencer a uma humanidade. Refiro-me não somente a seres-hifenizados os quais, por serem criminalizados, são geridos como lucro em suas sistemáticas formas de morrer e de habitar a esses lugares de [destruição] que lhes foram impostos, mas os mesmos que por serem excedentes nesse Mundo-Branco inventam a vida gargalhando da morte. A produção da vida só pode surgir do cadáver em decomposição do Mundo-Branco. O desmantelamento ou impedimento da reedição dos efeitos colonizadores e extrativistas que se atualizam na contemporaneidade. Entretanto, nesse embate, ninguém sai ileso.
É importante lembrar que o reconhecimento das assimetrias de poder (distribuição desigual da vida e da morte no Brasil) não é uma falha ou desvio no interior da sociedade, mas sim a própria argamassa, tijolos e arquitetura da qual ela é feita.
O efeito colonizador emerge a partir de múltiplas violências, causando diferentes traumas. Opera por meio de práticas e imagens do enclausuramento, seleção e categorização dos corpos. Objetiva, como força-motriz, explorar e eliminar corpos racializados, empobrecidos e dissidentes de gênero e sexualidade. Por sua vez, o efeito extrativista explora todos os campos das existências humana e ecológica. Raiz autoritária que mata tudo a sua volta por meio da captura e absorção/sequestro de toda potência de vida fora da norma de forma violenta e humilhante. A de(s)colonização como abertura e derrubada de clausuras começa aqui dentro. Por uma declosão do Mundo-Branco!
A história de 2020 pode ser descrita a partir de um relato de três dias e de três noites com todas as suas topografias do indizível, do imprevisível e do inominável.
No primeiro dia e noite, um ‘nômade-invasor-armado’ chega com suas navegações, armas e vírus. Com as pegadas na areia-negra, captura não somente o corpo, mas a mente e o espírito, afogando-o nas águas da experiência do espelho: chacinas, assassínios, encarceramentos, isolamentos, inimizades, faccionalização, mentiras e negação dos deuses. O corte inaugural do que mais tarde chamaríamos de Novo Mundo aconteceu no mar-Atlântico e espalhou-se rapidamente como um vírus mortífero. O primeiro caso de morte por Covid-19 (novo coronavírus) no Brasil foi de uma mulher-negra, empregada doméstica de 63 anos infectada na casa da patroa-branca no Rio de Janeiro. Mas não se viu e não se vê o corpo-negro – principalmente as mulheres-negras –, pois se considera que não há nada para ver por não ser “dos nossos.”
“Eu não consigo respirar” é o clamor não somente desse ano, mas dos últimos cinco séculos, pelo menos. Essa frase é ainda um lembrete: são múltiplas as políticas de asfixia e castração anti-negro e anti-negra que se manifestam cotidianamente no Brasil e no mundo. O racismo não é simplesmente uma manifestação isolada ou um sentimento particular. O racismo é a própria matriz do nomos da Terra, isto é, a lei que rege as relações, os costumes e sua institucionalização enquanto guerra colonial na contemporaneidade.
A segunda noite e dia surge com a [ausência de] imagem do ‘migrante-nu’, ou seja, aquele que foi sequestrado para o continente americano e constitui, portanto, a base do Mundo Moderno por suas capacidades muscular, científica e inventiva, apropriadas, roubadas, perseguidas, coisificadas e apagadas. Esse ano ainda nos lembra que para nós, a maioria numérica no quantitativo populacional absoluto e minoria nos lugares de poder, falar de raça é falar de inúmeras arquiteturas de dominação. A História nos mostra que sistematicamente fomos e somos expostos a toda sorte de vírus e isolamentos sociais.
Atualmente, por meio de telas planificadas, nossos olhos têm assistido o [nosso] mundo-de-joelhos. A indignação e antirracismo no Brasil limitam-se, por vezes, a uma hashtag “Pretos no topo”, a uma tela-preta escrita “Black Lives Matters” (embora parte das pessoas não saibam nem o que isso significa) ou “antifascista” (idem) em nossas timelines no Instagram ou Twitter, ao mesmo tempo em que nosso lacre arrogante de qual trincheira de luta é mais legítima ignora o lacre de caixões de crianças e adolescentes mortos pela única facção criminosa que é o Estado, suas polícias e outras soberanias. Nessa facção, quem mais morre são corpos-pretes, fardados ou não.
E, finalmente, aquele que se auto-intitula ‘cidadão-de-bem’, que chega com seus hábitos alimentares, fogão, panelas, fotografias de família e catequese, e estupra a terra que se convencionou chamar de “Brasil”. Ele disse: “haja luz” e houve luz Iluminista. Esse, por ocupar determinado lugar e privilégios herdados (leia-se roubados originariamente e passados de pai para filho), possui a escolha do isolamento social e do acesso aos diferentes dispositivos de quarentena: álcool em gel, planos de saúde, máscaras e recurso para fazer testagem particular contra a Covid-19.
No entanto, para a maioria de nós, especialmente nas periferias e favelas em que serviços de saúde foram e continuam sendo sucateados ao longo dos anos de negligência organizada objetivando privatizar o Sistema Único de Saúde (SUS), o pior está por vir: atualmente, quase 200 mil mortes por coronavírus no Brasil. Sem contar os mais de 60 mil mortos por arma de fogo que, desse número, quase 80% são corpos-pretes e moradores de favelas e periferias.
Há palavras aqui para falar dos lutos, das depressões e das múltiplas crises que o isolamento social provocou e provoca? E o que dizer dos ônibus com pessoas amontoadas umas sobre as outras indo à busca do ganha-pão usando máscaras de pano? Como descrever o terror de policiais militares entrando em residências e matando crianças e adolescentes dormindo?
O século XXI iniciou anunciando garantias, direitos e igualdade, mas se viu assombrado consigo mesmo e cada vez mais regido pelo medo do seu próprio fim. Portanto, esse tempo colonial, respeitando sua própria lógica, ainda é caracterizado pela desigual distribuição da vulnerabilidade. Embora tenhamos entrado de forma global em zonas de vizinhança, isto é, determinadas experiências que somente corpos-pretes sofriam e sofrem agora assimetricamente outros corpos passam a sofrer. Não obstante, diante dessa espiral-encruzilhada, seremos obrigados a mergulhar nos abismos que o racismo e suas múltiplas intersecções em seu estado cru reivindicam para sua manutenção: um abismo chama outro abismo.
Diante disso, nos resta, talvez, uma última questão a pensar a partir desse tempo que tem em 2020 a “reinauguração” de uma não inédita era do “desconhecido” enfrentado sem preparação ou desafio: o poder colonial, em sua capacidade de metamorfose, transformará os recursos de morte em força germinativa de vida, isto é, esse tempo e seus processos de morte se transformará em capacidade de cura?
Por ora, resta-nos prestar homenagem aos que nos deixaram. Começando pelos mais expostos, restaurar ou passar a possuir a concreta capacidade de nos indignarmos coletivamente a partir do reconhecimento não-narcisista da diferença (“diferente quem?”, pergunta-nos a artista cearense Aline Furtado) para, então, conseguirmos canalizar nosso ódio transformando-o em uma luta possível no em-Comum.
Há um corpo que continua e continuará a morrer. No entanto, agora e cada vez mais, ele não é o único ameaçado pela morte, mas toda a Terra. O colonialismo que mata tudo à sua volta saiu do seu estado bruto e se transformou efetivamente em vírus. Como todo vírus em sua capacidade metamorfoseante, ele objetiva condenar ao desaparecimento humano e não-humano; isso caso não tomemos as devidas e radicais medidas para impedir “a queda do céu.”
Jornalista. Mestre e doutorando em Sociologia. Pesquisador do Laboratório de Estudos e Pesquisas Conflitualidade e Violência (Covio/Uece).