O algoritmo é o culpado por esta entrevista . Foi ele quem me mostrou o perfil de Samuel Araújo enquanto eu fazia uma busca aleatória no Instagram. Lá estava ele: diante de uma parede sem revestimento, no tijolo cru, dizendo coisas sobre racismo. Frases curtas. De impacto. “Pra causar incômodo”, como o próprio jovem define. Palavras, conceitos, reflexões.
Visitei o perfil, assisti a mais vídeos, comecei a seguir de imediato e dois dias depois enviei uma mensagem propondo o bate-papo que você vai ler abaixo. Samuel topou de cara e mais dois dias após a gente se encontrou num barzinho da Gentilândia, um bairro boêmio e universitário de Fortaleza, no Ceará, onde nós dois moramos e de onde, em breve, ele sai rumo a Natal, no Rio Grande do Norte.
Numa mesa na calçada, entre um espetinho e outro, eu na cerveja e ele na água, eu de roupa social e ele no conjuntinho preto que usa nos vídeos gravados na academia, nós trocamos ideias. Foram duas horas e meia de uma conversa que resultou em histórias de vidas com muitas semelhanças, a ponto de eu pensar: “com tanta coisa em comum, como eu não conheci esse cara antes?”.
De fato. Somos os dois da Antropologia, nos formamos na mesma universidade (a Unilab) e tivemos os mesmos professores. Mas só soubemos disso enquanto conversávamos e eu me dava conta de como o jeitão moleque do Samuel pode enganar. Estilo despojado e muitas gírias. “Tá ligado?”; “Peaky!”. Muitas, muitas gírias. Palavreado de favela. De gente preta. Pretuguês, como se orgulharia Lélia Gonzalez. E, ao mesmo tempo, um domínio teórico de calar a boca de qualquer academicista arrogante. Porque essas duas coisas não precisam existir separadas. Elas podem/devem habitar o mesmo corpo.
Samuel vai do cânone ao marginal. De Racionais MC’s a Malinovski. Do clássico (branco)euroamericano às perspectivas africanas de identidade negra. De Ítalo Calvino a Frantz Fanon. E, talvez, isso justifique o sucesso que o jovem tem feito nas redes sociais. Aos 26 anos, ele acumula 135 mil seguidores só no Instagram, onde também superou as 19 milhões de visualizações nos vídeos que publica com provocações/reflexões sobre a vida de um moleque negro e pobre que sobrevive no inferno de um sistema capitalista/racista graças à educação.
Ele me recebeu de sorriso no rosto e um alegre “fala comigoooo” no meio de uma live pros seguidores do Instagram. A entrevista aconteceu no dia 14 de maio. Uma terça-feira. E a gente proseou sobre, por exemplo, Samuel ser hoje, talvez, o maior influencer acadêmico do Ceará – muito embora ele não persiga esse título -, mas também sobre amor, terapia, choro, Davi no BBB, racismos, estudos, família, referências, identidade etc.
Confira a íntegra do bate-papo.
CEARÁ CRIOLO: Pra quem não te segue nas redes sociais nem te conhece, quem é você?
SAMUEL: Caralho! Que esculacho, irmão! Quem sou eu? Boa pergunta. Pô…quem sou eu, mano? Que pergunta! Eu tô vivendo e tentando responder. Em algum momento, isso já foi uma grande questão na minha vida. Tipo assim: quem sou eu, minha identidade, o que eu vim fazer no mundo, pra que eu tô aqui e tá rá rá… Mas aí, depois de um tempo, deixou de ser uma questão e eu tô só vivendo, na real. Vivendo e sonhando…
Mas sou um jovem negro, periférico…caralho, vivedor! Já fiz muita coisa na vida. Até chegar numa graduação, até chegar num mestrado, foi uma correria fodida. Já trabalhei em várias coisas. Minha vida começou no trabalho muito cedo. Minha família inteira é de assentamento. Meu avô morreu num assentamento, inclusive, que deu origem ao município da Serra do Mel, no Rio Grande do Norte. Toda minha família é de lá e veio pra cá fugindo de uma seca.
Minha mãe foi a primeira que veio. Uma mulher negra. Veio e teve que se sujeitar a todo o desenvolvimento de Fortaleza, violento e brutal, expulsando pessoas pra periferia. Assim como essas pessoas que vieram do Interior, ela também foi pra uma periferia, que é a periferia do Pici, onde eu cresci e tal. Trouxe a família da minha avó pra cá, conheceu meu pai e casou com ele. Ele com problemas com drogas e álcool, e eles se separaram. A história de separação deles é fudida. E minha mãe é uma negona! Foi um rolê pra eles separarem, porque ele não queria sair de casa e tinha dependência química e minha mãe sempre foi uma mulher independente. Aí, ela botou a faca nos peito dele e disse: “ou você sai ou te boto pra fora”. Não teve jeito. Ele teve que sair fora, sair de casa. Ela é uma negona e ele light skin, tá ligado?
Ele foi embora, ela ficou sozinha e a gente morava no Pici. Eu tenho uma irmã gêmea. E foi aquela correria que eu acho que é comum a muitos jovens negros: escassez e falta. Faltava comida. Faltava muita coisa. Faltava afeto. Minha mãe não tinha tempo de ficar com a gente, porque ela teve que trabalhar a vida inteira. Aí, eu meio que nasci nisso, mano. Dentro de uma periferia, numa situação que, tipo, não tinha saneamento básico; não tinha nada. Vagabundo andando armado. Muita violência. O Pici, até os anos de 2006 e 2007, onde eu morava, que era no final da linha, que eles chamam de Base, que é atrás da UFC, ali não tinha nada. Chovia e alagava tudo. Entrava água nas casas. Era um esculacho.
Minha mãe começou a ir pra igreja evangélica. Encontrou refúgio em meio a uma vida muito difícil. Eu fui formado na igreja evangélica. Mas com uns 15 anos, mais ou menos, eu não consegui mais encontrar significado na igreja nem numa existência divina e virei ateu. Um percurso de vida. Saí dessa periferia e fui morar no Rodolfo Teófilo, que é onde moro hoje. E acho que foi quando fui morar no Rodolfo Teófilo que algumas coisas tomaram alguma forma na minha cabeça. Porque eu saí de um cotidiano que não tinha nada. Não tinha asfalto, não tinha esgoto, não tinha nada. E fui morar num bairro que tinha uma quadra na frente de casa.
CC: Tu saiu de um lugar que não tinha nada pra morar num lugar que tinha o básico…
SAMUEL: Isso. O básico. Tinha uma quadra, tinha um campo…Mas isso também deixou tudo pior. Porque era um custo de vida muito alto. Muito mais alto do que a gente tinha no Pici. E minha mãe não se formou. Ela estudou só até a quinta série. Ela escreve, mas escreve de um jeito muito limitado. Dentro das suas capacidades, ela fez o que pode pra mim e pra minha irmã. Aí, como ela não tinha formação, quando ela perdia o emprego, a gente não tinha como se manter e tinha que se mudar pra uma casa menor. Aí ela conseguia outro emprego. Até a gente chegar no Rodolfo Teófilo, ela trabalhava como doméstica, limpando casa, como diarista. Quando a gente chegou no Rodolfo Teófilo, ela começou a fazer costura.
CC: Você cresceu, então, num lar de mãe solo…
SAMUEL: Mãe solo. E minha avó, que cuidava de mim e tal. Mais minha avó, porque minha mãe passava o dia todo trabalhando. E assim…minha mãe sempre foi muito dura comigo e minha irmã. Porque tinha que ser. Ela me trancava em casa. Não me deixava sair o dia inteiro. Ontem mesmo a gente soube que um grande amigo meu de infância foi tomado pelo tráfico. E todo mundo que tava na realidade que eu tava, os que não estão mortos, estão envolvidos com uma parada errada. Na época, eu não entendia muito. Era uma educação muito seca. Mas não tinha outro jeito. Ou era isso ou ter um filho morto. Ela tinha que ser grossa com a gente mesmo.
CC: Mas ela chegava junto com o lance do estudo?
SAMUEL: Não era incisivo isso. Minha família é uma família de trabalho. Todo mundo trabalha desde criança. Trabalha com agricultura. Eu mesmo comecei a trabalhar aos nove anos. Então, minha família não era muito do pique de estudar. E eu ouvi muito que quando minha mãe veio do Rio Grande do Norte pra cá ela até queria estudar, mas o meu avô dizia que ela vinha pra virar vagabunda. Era muito sem valor estudar. O valor tava no trabalho. Tava na terra. Tava no produzir. Mesmo que fosse um valor ridículo. Meu avô abria o chão, plantava o feijão, colhia o feijão, debulhava o feijão, produzia o feijão, fazia dez sacas e ficava com duas pra alimentar oito filhos. Desde quando isso tem valor, filho? Na cabeça dele, o valor tava no trabalho.
CC: E em que momento houve uma virada de chave e o estudo passou a ter valor pra ti?
SAMUEL: Quando eu mudei pro Rodolfo Teófilo. Enquanto eu morei no Pici, era muito vaga a ideia de faculdade. Quando eu cheguei no final do ensino fundamental, eu comecei a socializar mais no bairro, comecei a jogar bola na quadra, que até então eu odiava futebol…
CC: Tu odiava futebol? E hoje usa teu Instagram pra comentar a final da Champions League…
SAMUEL: Mas tipo assim: eu não gostava de futebol e de nenhum esporte porque não tinha onde eu fazer esporte. Tá ligado? Hoje, eu tiro mó onda. Mas eu odiava. Quando comecei a jogar, fui me enturmando. Porque eu e minha irmã a gente era muito sozinho. Mas, quando você chega na adolescência, você quer se coletivizar, né? Numa dessas, eu conheci o mano Elton. Ele hoje tá morto. Mataram ele na Lagoa de Porangabussu. Confundiram ele com um cara e deram um tiro nele. E ele morreu. Conheci ele jogando bola. Quando a gente saía, eu conversava com ele. E a gente foi formando um grupo de amigos. Uma coletividade. E o Elton era muito de trazer umas ideias que a gente não imaginava. Foi a primeira pessoa que conheci que fazia faculdade. Ele fazia Pedagogia na Uece e trazia outro diálogo pra gente. Tipo assim: “vocês já pensaram em fazer faculdade?”. Ou: “vocês já leram esse livro aqui?”. Eu lembro que a primeira pessoa que me fez ler um livro atento porque ia me perguntar sobre ele depois foi o Elton.
CC: Qual era o livro?
SAMUEL: O Manifesto do Partido Comunista. (risos) Eu li e tal… Não tinha noção de muita coisa, mas foi a primeira leitura consciente. E, depois disso, foi todo um processo. Eu lembro que eu comecei a conjecturar a faculdade como uma coisa real. Vi que não era uma coisa distante e sim que era algo que eu podia mensurar como um lugar que eu podia ir em algum momento. Eu tinha de 12 pra 13 anos. Somado a isso, tinha um rapaz vizinho nosso que começou a trocar ideia comigo sobre educação. Ele falava: “mano, você já pensou se todas as escolas do estado fossem profissionalizantes? Todos os jovens iam sair com uma profissão e ter a possibilidade de trabalhar com um salário digno”. Ele falou isso e minha cabeça explodiu. Aí, eu comecei a pensar: “por que tem um hospital bom e um monte de hospital ruim se dava pra todos os hospitais serem bons?”. Ou tipo assim: “por que tem uma escola boa e um monte de escola ruim se todas as escolas podem ser boas?”.
CC: A qual conclusão você chegou?
SAMUEL: Ah, filho, não tem jeito: tem que destruir tudo e começar tudo de novo. Mentira. A gente só tem que voltar um pouco no tempo, eu acho. Em algum momento da história da humanidade, a gente já conseguiu conviver com a pluralidade. O perspectivismo ameríndio reconhece numa outra existência uma unidade que pode residir em mim, mas que pode residir no outro. E que ela, mesmo residindo em mim e no outro, tem outra forma pra se adequar àquele modelo de vida, às necessidades daquela materialidade.
Dá pra gente alcançar isso. Porque a gente já viveu. Eu não tô falando de uma parada que a gente nunca viu. Eu tô falando de uma coisa que a gente já viveu. Há muito tempo, a gente já viveu isso. Já deu pra coexistir com uma forma de viver que não se autodestruísse e não destruísse o mundo. A gente já conseguiu. Por que a gente não pode viver de novo? Essas coisas começaram a surgir na minha mente. Aí, eu comecei a pensar: “eu não quero me formar na faculdade CenterBox”, que era pra onde todos os meus amigos iam graças a um programa do governo na época que pegava jovens do ensino médio e colocava pra trabalhar no supermercado. De ensacolador. Tá ligado? Mas eu não queria isso, porque vagabundo terminava o ensino médio, começava a trabalhar no supermercado e pronto. Ficava ali anos. Então, pra mim, não querer ficar nisso já era uma insurgência. Eu queria estudar em outra faculdade. Pensei: “mas qual? Qual curso vou fazer? Qual faculdade vou estudar?”. Aí, eu comecei a fazer o ProTécnico.
CC: Em que momento a Unilab surge como possibilidade?
SAMUEL: Eu cheguei na Unilab em 2016, depois de uma mulher preta me falar dela. A minha trajetória é atravessada por mulheres negras: minha mãe, uma professora que não desistiu de mim e pedia pra eu me esforçar…
CC: Por falar nisso, a questão racial era constante na tua casa?
SAMUEL: Nunca foi. Porque eu cresci só com preto, né? Com todo mundo preto, eu era só uma pessoa. Todo mundo era preto. Eu acho que é mais difícil quando você cresce num lar com pessoas brancas, porque há um vício na linguagem de reafirmar as condições de subjugação. Tipo: “porra, isso é serviço de preto”. E eu não cresci com isso porque na minha casa todo mundo era preto. Então, embora você não discuta questão racial dentro do lar, você cresce com a autoestima de ver pessoas negras. Não são pretos que se racializam. Não são pretos que afirmam uma identidade negra constantemente. Mas no momento em que é citada a questão você começa a ver as negritudes se afirmando. Minha tia dizendo que é preta e a vida é muito mais difícil pra gente. Mas se fala isso não o tempo todo. Só em determinados momentos.
Aí, eu tava numa escola profissionalizante. Terminei o curso de Libras e comecei a trabalhar numa empresa que, pra trabalhar, eu precisava ser bolsista de ensino superior. Aí, eu fui cursar História na Estácio e arrumei outro emprego numa faculdade, a IDJ, que tinha uma intérprete de Libras que tava em todas as televisões e era uma mulher preta. Aconteceu que fui fazer uma prova um dia e essa menina estava na mesma sala que eu. Quando terminou a prova, a gente trocou uma ideia, ficou conversando por um tempo e ela foi me falando da Unilab e da possibilidade de fazer um curso lá. Aí, eu peguei minha nota do Enem, botei pra lá e passei. No que eu passei, já saí de todos os trabalhos e fui pra lá.
E foi foda sair dos empregos porque minha mãe tinha comprado uma casa na força da fé, sem um puto, e a parcela era dois mil conto. Por quê? Porque ela se confiou na gente. Quando a gente saiu do curso de Libras, eu já saí trabalhando em dois lugares e o salário de um intérprete é um bom salário. Pra quem ganhava nada, era um bom salário. Pra quem não tinha o que comer quando era criança e comia mingau sem leite, porque não tinha leite e tomava mingau com água? A gente tava no céu. E tava eu e minha irmã empregados. Mas eu passei na faculdade sem nunca ter vivido uma adolescência mesmo, porque comecei a trabalhar muito cedo. E eu queria viver isso. Queria ficar lá (em Redenção, onde funciona a Unilab), saber como é uma universidade e tal… Pedi um auxílio pra Unilab e abandonei tudo aqui.
CC: E foi de boa pra tua mãe isso?
SAMUEL: Minha mãe ficou muito triste. É muito louco. Qualquer pessoa que fala pros pais que passou numa universidade pública, de qualidade, isso é uma alegria. Mas uma família que depende do filho que trabalha? Foi uma tristeza, mano. Minha mãe disse: “você não precisa ir; tá indo porque quer”. Mas é claro que eu tava indo porque eu queria. Eu queria fazer Antropologia. Queria fazer uma faculdade digna. Queria ter um tempo dentro da universidade. Saber o que era estudar real. Fui pra lá, mano, viver com 500 conto. Numa cidade fudida de cara. Tá ligado? Fudida de cara, mano.
Era uma merda. Tinha dia que eu tinha que comer bolacha com água. Eu tinha ódio. Não vou falar numa boa. Não vou. Eu tinha ódio, pô. Pagava 400 reais de aluguel numa casa que mal me cabia, irmão! Só em Redenção que o mercantil era o dobro do que se pagava em Fortaleza porque lá é uma cidade universitária! Onde já se viu isso? Tinha que regulamentar isso.
CC: Toquei no assunto Unilab porque é uma universidade fruto de reivindicações dos movimentos negros. Queria saber como você se sentiu ao entrar na sala e se deparar com tantos alunos negros…
SAMUEL: A autoestima do cara fica como? Porra! Lá no céu, fi! Caralho! Eu me sentia negão o tempo inteiro. Te contar uma parada… Eu era moleque e, num exercício, me pediram pra pintar o Naruto. Aí, eu botei um monte de cor. Pra mim, ficou lindo. Mas vagabundo olhou e disse: “que merda é essa?”. Todo mundo numa cor só e eu misturando verde com laranja, mó onda… Isso eu era moleque. Quando eu cheguei na Unilab, eu vi um cara de Guiné e eu vi a roupa dele, eu fiquei: “não tô acreditando, mano! É isso aí! Eu lembrei dessa situação”. E a autoestima foi no céu. Raspei logo a cabeça. Porque eu tenho um lance com meu cabelo. No começo, quando tá crescendo, ele parece ser liso. Mas não é. Então, quando ele tá assim, ou eu meto logo a trança ou raspo. Eu raspei logo. Fiquei negão, fi!
Mas foi muito complicado também a Unilab pra mim. Porque é muito difícil você sair de uma realidade que você trabalha feito um puto todo dia desde criança pra chegar num lugar em que você vai produzir recebendo um auxílio do Governo? Filho, eram até quatro textos por disciplina. Tá ligado? Corroborando com o pensamento científico, com o método, recorrendo a esse método, produzindo acerca dele. Tá ligado? Refletindo sobre ele, pensando o método, produzindo o método, referenciando e robustecendo o método científico. Então, você tá produzindo. Universidade é isso. Você tá produzindo o tempo inteiro. Mas não é visto como trabalho. Então, foi muito confuso pra mim. Eu ficava: “ué, eu tô trabalhando, mas não tô; eu tô ganhando, mas é muito pouco demais e não dá pra fazer nada. Como vai ser?”. Fiquei dois anos nessa, ganhando auxílio. Eu fiz chover com 500 conto. Mas também tinha dia que era só água e bolacha, porque não tinha dinheiro pra nada. Mas é isso. Aí, depois, eu comecei a trabalhar. Estudava em Redenção, morava em Baturité e trabalhava em Guaramiranga.
Eu fiz uma seleção pra trabalhar numa escola de lá, passei e ficava o dia inteiro em Guaramiranga. Ia dormir, mano, meia-noite, meia-noite e meia. Virei um zumbi. Sequei. Fiquei pesando 76 quilos. Só pele. Pele e osso. Acordava quatro e 20 da manhã. Porque não dava pra subir a serra. Não tinha ônibus no horário que eu precisava. Então, eu tinha que subir de carona. Eu trabalhava de tarde e o ônibus que tinha só chegava lá duas e 20 da tarde. Então, ou eu subia a serra de manhã ou não subia. Porque minha aula começava meio-dia e 45. Eu pegava carona com um mano às seis horas da manhã. Ele ia abrir a escola. Pra eu ficar seis da manhã na parada esperando ele, eu tinha que acordar quatro e 20. Só que eu ia dormir meia-noite, que era a hora que eu chegava da faculdade. Foram dois anos assim.
CC: Você falou aí de método. Ao chegar na faculdade, como você lidou com ele? Porque mesmo na Unilab, que é considerada uma universidade vanguardista neste quesito, nós nos deparamos com muitos professores impondo a leitura dos tais “clássicos”, que são todos livros escritos por homens brancos, europeus ou norte-americanos… É como se os saberes de África e do Sul Global não existissem…
SAMUEL: O método conceptivo é um tradutor da experimentação social e da produção do fato social. Ele é um tradutor. O que eu acho que acontece na academia, às vezes, é que a concepção passa a ser referenciada como uma produtora de significação. Mas em si mesma a concepção não produz significação. O que produz significação é a experimentação de vida em sociedade e o fato social. Aí, a concepção serve como um tradutor desse fato, pra acessar a experiência. Só que tem uma hora, quando você tá muito dentro da universidade, parece que é só a concepção que fala pela experiência. E não é. Eu acho que o problema do método conceptivo pra compreender a vida social é se distanciar da vida social. Que é o positivismo, né? Que foi o que mais doeu em mim.
Eu ficava assim: “isso aqui fala sobre a vida, mas, ao passo que fala sobre a experimentação, parece que eles encontram uma razão em si mesmo e não no fato social. E se distancia do que é a vida em sociedade, das suas significações produzidas”. Pra mim, esse foi o principal problema. Porque eu ficava tentando o tempo inteiro me aproximar da vida social dentro da academia. Mas se você ficar muito ali, parece que a sociedade é uma outra coisa. Você vai sendo incorporado por um método e, de repente, você é o idealista. O que olha primeiro para a concepção para, depois, olhar a vida social. Aí, pesou em mim e eu pensei: “eu preciso me localizar nesse lugar pra saber onde eu tô e como eu dialogo”. Porque uma coisa não pode estar sobre a outra. Precisa haver uma harmonia, não precisa haver uma harmonia, mas essas coisas ocupam determinados lugares e produzem as suas significações.
Inclusive, na minha monografia, foi muito complicado porque eu tava o tempo todo dizendo que eu ia referenciar. Minha monografia foram, sei lá, 50 páginas. Eu não ia pegar dez páginas pra discutir um autor e um conceito, cara! Se eu vou falar sobre a experimentação de sociedade e a ocupação institucional de jovens surdos não letrados, que não sabem usar a língua de sinais, eu não vou passar 15 páginas discutindo o conceito de um autor sobre o que é o viver. Mas eu estou observando o viver e eu posso descrevê-lo. Ou evocar o sujeito; centralizar o sujeito. Minha monografia essencializou meu percurso acadêmico, porque foi o tempo inteiro um pé na academia e um pé no mundo.
Sobre o referencial branco, a Unilab foi bem mais tranquila quanto a isso. Com exceção de alguns professores, que realmente acham, por exemplo, que (Frantz) Fanon não é saber, que a Grada Kilomba ou a Angela Davis são militantes, porque tem esses, no geral, foi bem tranquilo. Mas a gata revolucionou o pensamento científico moderno, cara! Não dá pra pensar as Ciências Sociais sem a Angela Davis hoje, cara! E vagabundo restringe a mulher à condição de militante? Quando a lê.
CC: Mas a tua passagem pela Unilab não se restringe à Unilab. Enquanto aluno, você participa de congressos, submete produção a periódicos, tem textos avaliados por professores de outras universidades etc, e isso pode gerar um choque com a perspectiva mais progressista da Unilab. Como foi isso pra ti?
SAMUEL: Foi não. Tá sendo. O Foucault foi um choque pra mim, tá ligado? Porque eu lia o Foucault de uma forma, quando eu tava na graduação. Quando eu saí da graduação pra pós-graduação, eu tô lendo ele de outro jeito. Algumas coisas dele são muito complicadas. Na real. Inclusive, quando eu li a aula inaugural dele de 1976, que ele critica o Marxismo, minha cabeça deu uma bugada, mano.
Como eu trabalho com construção de identidade como marcador diferença, da forma como ele apresenta as relações de poder, você vai ter que recorrer a elas pra construir essas relações de identidade: quem eu sou? Perante a o quê? Você vai ter que recorrer a isso. Subjetivação etc. Mas quando você chega à defesa da sociedade, aí fica mais complicado. Quando ele vai chegando na crítica ao Marxismo? Que você entende a dimensão do pensamento político e do pensamento das relações de poder? Aí é loucura. Você pensa: “não, cara! Peraí, pô! Tem alguma coisa aqui, mano”.
Depois de ler Foucault, eu cheguei a Gilles Deleuze, pra conhecer essas relações de poder. Depois, no Byung-Chul Han, pra pensar essas relações de poder também. Eu recorro aos clássicos, mano. Pra referenciar, mas também pra dar uma alfinetada. Esses dias, eu tô comprando o “Socialismo”, do (Ludwig Von) Mises. Eu discordo veementemente dele. Mas eu e ele concordamos quanto ao fato de que não houve comunista na terra maior do que Cristo. Tá ligado? Mas ele concorda de um jeito abjeto, porque ele acha que você tem que exterminar o que representa Jesus. Mas pra fazer a crítica eu tenho que me aproximar do autor e compreender. Mas essa aproximação é mais do pensamento crítico. Porque da experiência a gente só se distancia.
CC: No teu perfil do Instagram, você se apresenta como alguém “violentamente pacífico, verídico. Vim pra sabotar seu raciocínio”. É uma referência explícita aos Racionais. A galera saca isso e sabe o que vai encontrar nas tuas postagens?
SAMUEL: Não. Alguns não. Alguns não entendem nada e ficam perdidos. Tem vagabundo que não sabe que eu sou do Ceará. Muita gente que eu encontro na rua me pergunta: “o que você tá fazendo aqui?”. E eu preciso dizer: “mas eu sou daqui, cara”. Eu preciso dar um jeito de dizer que eu sou nordestino. Mas o “violentamente pacífico”, quando eu vejo os comentários nos vídeos e o vagabundo em choque, eu acho que eu consegui cumprir aquilo que me propus. Saca? Porque há uma proposta ali que é pra causar desconforto. O objetivo é o desconforto.
Se você reparar, o tom dos vídeos que eu faço é avermelhado. Sempre. Porque é uma hora do sol, entre duas da tarde e três da tarde, que o sol tá naquela tonalidade. E é a hora que eu gravo. Aí, eu coloco a câmera de um jeito que um lado do meu rosto fique em evidência e o outro fique escuro. Tem um movimento no vídeo que é super desconfortável pra quem tá assistindo. Eu quase não gesticulo, pra não ter expressão nenhuma. A tonalidade da minha voz muda. Tá ligado? E um texto com muitos cortes, que é tipo assim: uma ideia, fechou, pá; outra ideia, fechou, pá; outra ideia, fechou, pá. Pra causar incômodo! É uma antropologia do incômodo. Imagética do incômodo. Essa é a proposta. Aí que é violentamente pacífico. Porque é como um pano de fundo que é percebido, mas com um escrutínio muito analítico. Então, é muito pacífico. Mas o incômodo é muito violento e vagabundo fica: “caralho, mermão, não dá pra parar de ver o vídeo”. E tudo isso foi pensado.
CC: Nesse sentido, você dialoga com a perspectiva do afropessimismo?
SAMUEL: Tem que ter uma disrupção. Tem que ter. Eu dialogo com a violência como resultado, não como busca. Uma hora vai faltar lugar, fi. Não é que a gente vai chegar na violência porque a gente vai trabalhar para chegar nela. A gente trabalha inconscientemente, pela escassez. Uma hora vai ter uma garrafa de água só pra duas pessoas. Se o outro bebe, não morre; se eu bebo, não morro. Aí, nós vamos ter que chegar nas ideias. Escassez, porra! É um sistema que procura o infinito num mundo que é finito. Claro que vai ter escassez, filho. Aí, a vida que vai valer. Como? Só tem essa água. E aí: só tem tu e ele; é matar ou morrer. Vai ser como? Tá ligado? Aí, vai ser a escassez, mano.
Ou nós vamo se matar uns aos outros pra se manter vivo ou vamo olhar pra quem fez essa porra toda e deixou o mundo desse jeito e vamo ter que cobrar eles. Aí vai ser a violência. Não como uma busca. Mas porque a gente vai resultar nela, pela escassez. Vai faltar recurso. Vai faltar lugar. Vai ter muita gente e pouco recurso. Recurso mesmo, de vida. Uma parada que você compra dura dois dias, pra depois você ter uma nova. Porra! Nada é feito pra durar, mano. Nada. Então, uma hora vão tirar de onde? Da terra sempre, sem repor? Aí vai ser como? Violência. Vai ser o resultado. Não vai ter jeito. Tá ligado?
Vagabundo acha que a Terra não vai acabar. Vagabundo espera Jesus Cristo chegar pra acabar a Terra. Vagabundo espera a segunda vida. Quando Jesus Cristo chegar, mano, vai ter mais nada. Quando Jesus Cristo chegar, a gente já vai ter destruído tudo. Vai ser um atraso.
Moleque…a escravização de pessoas negras é a essencialidade do que é a psicopolítica neoliberal. Quando o ser humano espreme a psicopolítica neoliberal, ele chega numa coisa. E qual é? A escravização do ser humano pelo ser humano. Vamo lembrar onde nasceu a revolução burguesa, que deu origem a essa porra toda: na França, na Inglaterra, na Europa. Aí, eles pegaram o que eles criaram pra justificar a escravização de outros sujeitos. Eles essencializaram essa psicopolítica. Aí, eles começaram a escravizar quem? Pessoas pretas, indígenas… Só que uma hora, fi, nós vamos ter que chegar nas ideias…
CC: Você fala da psicopolítica liberal, mas se a gente olhar pra esquerda progressista não tá muito distante não…
SAMUEL: É uma esquerda liberal. É uma esquerda liberal, fi. Nós vamo chegar nessa? Vamo lá. Imagine que você é um processo revolucionário e eu sou outro. Eu sou brasileiro e você é outro. Aí, eu digo assim: “moleque, a minha esquerda tá na rua”. Aí, tu: “pra quê?”. E eu: “pra defender a democracia social burguesa” (risos). Aí tu: “a tua esquerda defende a democracia social burguesa?”. E eu: “é. E o pior: a nossa direita é que é contra a democracia social burguesa”. Olha como é uma anomalia, mano! É o Brasil, fi. Brasilzão! A esquerda confia nas instituições, mano. Tá ligado? Eu olho pra isso e fico: essa conta não fecha, pô.
A esquerda confia nas instituições. Instituições que foram criadas pra resguardar uma democracia social burguesa que só beneficia poucos. E a esquerda confia. Vai pra rua e defende. Quem é que vai pra rua contra a democracia social burguesa? Os bolsonaristas. Tá ligado? A esquerda vai pra rua pra defender o STF, a garantia do direito do voto… Porra! Qual processo revolucionário você viu uma coisa dessa? Nós ainda vamos defender a democracia social burguesa bem muito.
A democracia social burguesa é uma parada só. Um organismo reparador. O jogo é sempre o mesmo: vem alguém, pega a tessitura social que é produzida por uma psicopolítica, que é o capitalismo, pra deixar pessoas em situação de vulnerabilidade, criar uma massa e precarizar, pra que outras pessoas lucrem muito com isso. Aí, começa: “caralho, não dá mais pra sustentar! É a crise, é a crise, é a crise. Quem a gente chama?”. Chama a esquerda e, bum! Consertou. Pacificou tudo. Tá tudo certo. E a democracia social burguesa segue. E eles seguem. É uma esquerda liberal progressista. Não tem jeito.
Comigo, a pegada é outra. Eu sou Krenakiano. Eu digo que sou Marxista, mas com todas as ressalvas possíveis ao pensamento marxista. Eu sou Krenakiano. Porque não há pessoa hoje no Brasil, e há pouquíssimas pessoas hoje no mundo, que conseguem desenvolver uma corrente de pensamento que aponte uma criticidade tão essencialista à psicopolítica liberal como Krenak. A gente só não valoriza o cara. A gente valoriza uns cara que são lá da puta que pariu ou que nunca viu ou que já tá morto ou que nunca pisou no Brasil. Os nossos a gente não percebe como uma corrente de pensamento. Pra pensar mesmo. Se organizar. Estruturar uma crítica. Por isso que eu digo que sou marxista-krenakiano…
CC: Olhando tuas postagens, a gente percebe que você publica algumas coisas tirando onda de alguns haters. Muita gente questiona tua negritude? Pergunto isso porque a gente acabou de sair de uma temporada do Big Brother, essa que o Davi ganhou, na qual a questão racial foi muito forte e pautou quase o programa todo. E quando o tema tá em voga aparece porteiro de Wakanda em todo canto…
SAMUEL: Mano, o Davi é o preto que o Brasil gosta, fi. É o preto que tá passando pela pressão racial mas não aponta ela. Se o Davi tivesse se racializado na primeira semana, ele não teria sido o campeão. Ele até se racializou, mas de um jeito muito sutil. Se ele tivesse acusado a galera de racismo no primeiro momento, ele não teria vencido. Ele é o preto que o Brasil gosta. Aquele que passa pela porra toda e passa calado. Sabe o lugar dele. Esse preto aí o Brasil adora. É o preto resiliente. O preto que não diz que é racismo. Vai só passar pelo sofrimento. Tá ligado? É o preto que agrada.
Mas comigo acontece pouco de a galera dizer que eu não sou negro. Acontece pouco. Umas duas vezes só. Mas porque eu tenho um outro jeito de me afirmar. Não me reconhecem como um homem retinto. Mas também não dizem que não sou preto. Tem um lance: a gente teve referências de masculinidade negra que a gente se construiu nelas inconscientemente. Mano Brown, Sabotage, tá ligado? E é sempre uma masculinidade sisuda. O homem preto fechadão. E ela é reconhecida. Porque são pessoas reconhecidas. Você reconhece um padrão, entendeu?
Mas também desde muito cedo, quando você vai se defrontando com a diferenciação, não tem como você não pensar sobre isso. Eu ia pro shopping muito criança ainda, uns seis ou sete anos, pisei numa calçada em construção e a dona da casa gritou: “porra, seu neguinho, seu macaco!”. Meu primeiro apelido na escola foi “macaco”, porra! Você daria um apelido desse pra uma criança branca? Jamais, pô! Eles me chamavam de Donkey Kong, de King Kong…e eu ainda andava com um macaquinho de pelúcia do lado, porque eu adorava o King Kong. Pra qualquer coisa que eu fazia, eu era macaco. E eu adorava o King Kong. Eu achava ele fodido. Pra mim, o rei da selva nunca foi o leão. Sempre foi o gorila. Sempre. Vagabundo me chamava de macaco e eu já me sentia o rei da selva. Imponente.
CC: Nas postagens, a galera tenta deslegitimar tua negritude?
SAMUEL: Não ocorre. Não ocorre de alguém querer deslegitimar minha negritude. Não quando eu racializo [o conteúdo das postagens]. Tentam me deslegitimar por outra coisa. Na estética, por exemplo. Dizem: “o cara tá falando isso na frente de uma parede sem reboco?”. Mas quando racializo, não. Na verdade, até ocorreu. Foi com um menino da Guiné-Bissau [país da África]. Mas porra! Óbvio que ser negro na Guiné-Bissau não é a mesma coisa que ser negro aqui! Outra vez que rolou foi num comentário no Instagram. Um cara falou da cor da minha pele.
CC: Você está no mestrado agora. Teu plano é concluir o mestrado, fazer doutorado e dar aula?
SAMUEL: Mano, eu não sei qual meu plano, tá ligado? Porque meu plano era um. Mas o plano de Jah pra mim é maior do que meus próprios planos pra mim. Desde que eu soube o que era um mestrado que eu pensei: “eu vou passar no mestrado”. Eu trabalhei pra isso. Só faz um ano, mais ou menos, que saí da graduação. Tentei o mestrado uma primeira vez na Unilab. Não botei muita fé, mas passei na primeira fase. Na etapa seguinte foi que não rolou. Aí tentei mestrado na UFRN e passei. Tentei um concurso lá e também passei. Pra intérprete de Libras. Conjecturando: faço os dois anos do mestrado e faço os dois anos do concurso. Depois? Não sei como vai ser. Porque eu só pensei minha vida até o mestrado. Pra mim, era o maior sonho era isso. Não fiz planos. Quando eu passei, comecei a chorar, mano. Eu não pensei em dar aula, mas dar aula já aconteceu como maneira de complementar renda. Entendeu? O que vai ser de mim depois do mestrado tá nas mãos de Deus.
CC: E como tu pretende conciliar a vida acadêmica com toda a visibilidade que tu tem conquistado nas redes sociais?
SAMUEL: Mano, eu tento não deixar essa porra subir pra minha cabeça. É foda gerir esse tempo. Uma hora falta em algum lugar. Mas eu não faço planos. Eu não penso, por exemplo: “daqui a tanto tempo, eu quero ter tantos seguidores”. Eu evito pensar sobre. Porque eu não quero fazer planos pra minha vida com base nisso. De jeito nenhum. É uma parada que não quero pensar nisso. Tem uma parte que é massa, que é conhecer as trajetórias de vida das pessoas. Mas tem outra que é bagaceira. Tem umas paradas que são insanidade. Por isso, eu não faço planos.
Eu vou resguardar a minha individualidade o máximo possível. Não quero nem que seja minha fonte de renda. Eu tô tratando isso na minha terapia, mano. Não quero ficar escalonando metas. Tento tratar como algo normal, pra não virar uma porra. Busquei até uma terapeuta preta.
CC: Mas a terapeuta ser preta não é garantia de nada…
SAMUEL: É, tá certo. Porque tem uma galera que não se racializa, né? Mas na minha terapeuta eu encontrei um lugar de conforto, mano. Ela mudou minha vida. Às vezes, eu mando mensagem pra ela do nada pedindo ajuda. A gente conversa e tal e é sempre um lugar de conforto. E olhe que eu nunca tinha feito terapia. Eu não achava necessário. Até que eu passei por situações que destruíram minha cabeça e eu vi que precisava de ajuda profissional porque não ia dar conta. E se fosse um terapeuta branco eu não sei como seria… Eu não queria toda vez que fosse falar da minha cor ter que explicar o óbvio. Na primeira sessão que eu fui, só chorava. Chorava que soluçava. E ela só olhando pra mim. Eu tentava falar e chorava mais. Baixava a cabeça e chorava mais.
CC: Tu lida bem com isso de chorar?
SAMUEL: Mano, agora, sim. Antes, era muito complicado. Mas ainda me sinto numa condição de fragilidade. Quando eu tô num momento de animação ou que eu me comporto de maneira emocionada, eu já me sinto numa condição de fragilidade e penso: “eu tenho que me conter! Tô muito expressivo”. Eu já acho que tô falando muito e era uma coisa que me pegava demais…
CC: O homem negro é ensinado a isso, né? A ser forte…
SAMUEL: E é uma coisa que a gente, sem a nossa corporeidade, é pouco. Porque a nossa corporeidade é ancestral, pô. O falar, o se mexer, o agir, o pensar, o andar, tudo tá na nossa corporeidade ancestral, que é o que vem muito antes de nós e que já acompanha a gente antes de a gente estar aqui. A gente se expressa, a gente fala, a gente dança, anda comenta, ri, se move… Tá ligado? E aí você tem uma educação que é: “não se expresse tanto, porque as menininhas não vão querer você”. A depender do lugar onde você tá, você perde até a credibilidade.
Eu já trabalhei numa empresa que minha credibilidade era questionada porque eu sempre me expressei demais. Inclusive, aquela linguagem formal que eu uso nas redes sociais é um recurso que eu procurei desenvolver porque senão eu não teria validade nas minhas postagens. A tonalidade da fala, a maneira como você recorre a uma estrutura frasal, o modo de vestir e se expressar, tudo eu precisei pensar, senão vão me tirar pra doidim. Vagabundo queria me tirar de palhaço. Se liga? Se você for só uma pessoa preta querendo ser você, vagabundo não vai te dar atenção. Se você for só você, normal, existindo do jeito que você é, vagabundo vai te tirar de tempo.
Várias vezes em reuniões na universidade ou no trabalho ou em empresa, quando eu chegava falando como eu falo, vagabundo tirava onda. Eu tinha que adotar outra postura. E muitas vezes era pra fazer a pessoa não me compreender mesmo. Não era pra precisar disso, mas é uma estratégia de sobrevivência. Tem gente que é otária. Então, se quer jogar esse jogo, a gente joga e vê até onde ela consegue.
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Comunicólogo e mestre em Antropologia, é especialista em Jornalismo Político e Escrita Literária e tem MBA em Comunicação e Marketing em Mídias Digitais. Foi repórter e editor dos jornais O Estado e O POVO, correspondente do portal Terra e colaborador do El País Brasil. Atua hoje como assessor de comunicação. Venceu o Prêmio Gandhi de Comunicação, o Prêmio MPCE de Jornalismo e o Prêmio Maria Neusa de Jornalismo, todos com reportagens sobre a população negra. No Ceará Criolo, é repórter e editor-geral de conteúdo. Escritor, foi finalista do Prêmio Jabuti de Literatura 2020.