Coube a Maria Júlia Coutinho a ingrata tarefa de entrar na casa de milhões de brasileiros no horário mais nobre da nossa televisão para noticiar uma reportagem sobre Pedro Gonzaga. Os dois têm mais em comum do que uma aparição no Jornal Nacional na noite do último sábado (16).
Maju e Pedro são negros.
Mas enquanto ela, jornalista em ascensão, fazia história ao ser a primeira mulher preta a sentar na bancada do telejornal mais importante da segunda maior emissora do mundo, ele, um jovem DJ de periferia e dependente químico, era enterrado.
Enterrado após uma abordagem desastrosa do segurança de uma unidade do supermercado Extra na Zona Oeste do Rio de Janeiro. O mata-leão de Davi Ricardo Moreira, o tal segurança, foi, na verdade, um mata-preto. Um mata-sonhos. Um mata-esperança. Um matar despropositado.
Maju e Pedro são negros num país de maioria autodeclarada negra e que testemunha, ano após ano, negros e mais negros, aos montes, envolvidos em episódios de violência. Seja como vítima ou autor do crime, é quase sempre um homem preto quem está lá. E quase sempre um homem branco é quem o investiga (impiedosamente, se o caso ganhar visibilidade). Assim como quase sempre é outro homem branco quem noticia tudo na televisão (de preferência, com doses cavalares de sensacionalismo para o caso ganhar visibilidade).
Maju é, por isso, um marco no telejornalismo brasileiro. Quebrou no sábado um paradigma de 50 anos ao chegar a um olimpo até então frequentado só por mulheres brancas. Muitas inegavelmente talentosas. Mas brancas, de traço afilado e cabelo liso, reforçando a total falta de representatividade de um produto assistido por um público majoritariamente parecido/identificado, veja só a ironia, justo com Maju: pele escura, cabelão black, lábio carnudo, nariz mais redondo…
A gente, orgulhoso da própria cor, celebra mais um espaço importante conquistado. Ocupado. Por Maju e, por consequência, pelo povo negro. Mas também aproveita para refletir sobre o que a diferencia de Pedro, um moleque empurrado para o outro lado da bancada do jornal. A bancada do racismo estrutural. Do sufocamento. Da morte.
A palavra é oportunidade. Foi isso o que levou Maju ao Jornal Nacional. Era isso o que Pedro teria ao ser encaminhado a uma clínica de reabilitação. Ele trataria a dependência química e os transtornos mentais. Poderia recomeçar. Recomeçar aos 19 anos, quando a maioria de nós sequer tem nada. Mas ele já tinha um filho. E morreu um dia antes de essa chance lhe ser dada.
O acesso à educação e a vivência numa família bem estruturada, com formação crítica, foram duas coisas as quais Maju teve acesso e Pedro não. O ensino público sucateado e a desestrutura familiar são a rotina da população negra brasileira, boa parte vivente em regiões pobres, onde a mão do Estado chega só pra baixar a porrada quase sempre na mesma proporção do mata-leão do segurança do Extra. Invade, mete bala, mata e cai fora.
É por isso que cada vez mais Majus precisam apresentar telejornais em horários nobres. E mais atores negros precisam ser protagonistas de novelas. E mais negros precisam tornar-se escritores e ter seus livros como best sellers. Só assim negros como Pedro vão ligar a televisão e perceber, pelo “simples” fato de verem a Maju num cargo de destaque, toda linda, feliz da vida, famosa e bem sucedida, que eles também podem ser assim.
Podem ser o que quiserem, desde que tenham acesso às mesmas oportunidades do povo branco privilegiado, sejam talentosos, se esforcem, lutem pelo o que sonham e encontrem pelo caminho quem acredite neles.
Maju certamente não subiu fácil. Muito menos da noite pro dia. Deve ter esbarrado em muita gente que deu pouca importância ao seu talento, aos seus méritos, como muitos tentam fazer desde sábado espalhando maldosa e equivocadamente que a primeira negra a apresentar o Jornal Nacional foi Glória Maria.
Outro mal do racismo é tentar nos matar ideologicamente. Acham que nós, negros, somos todos iguais. Que basta um preto, qualquer que seja, ocupar um lugar de destaque e estaremos todos satisfeitos. Que temos de estar satisfeitos, como uma obrigação. Como se nos fizessem um favor.
Mas não, senhores.
Nem vocês nos fazem um favor quando ocupamos esses espaços nem estamos satisfeitos com a conquista da Maju. Felizes, sim. Satisfeitos, nem tão cedo. Queremos mais. Merecemos mais. Reivindicaremos mais.
Porque negros sentem, sonham, podem, amam, importam. Negros devem viver. E como bem disse Maju: “Que isso não seja notícia daqui a um tempo”. Pelo “isso”, faça o favor, entenda duas coisas:
1) mais negros ocuparem cargos de destaque
2) negros serem menos assassinados pela mão de quem, na verdade, deveria nos proteger.
https://www.youtube.com/watch?v=1tJ7sF8x35U
Comunicólogo e mestre em Antropologia, é especialista em Jornalismo Político e Escrita Literária e tem MBA em Comunicação e Marketing em Mídias Digitais. Foi repórter e editor dos jornais O Estado e O POVO, correspondente do portal Terra e colaborador do El País Brasil. Atua hoje como assessor de comunicação. Venceu o Prêmio Gandhi de Comunicação, o Prêmio MPCE de Jornalismo e o Prêmio Maria Neusa de Jornalismo, todos com reportagens sobre a população negra. No Ceará Criolo, é repórter e editor-geral de conteúdo. Escritor, foi finalista do Prêmio Jabuti de Literatura 2020.