Uma pipa cortou hoje o céu que cabe no meu olhar. Estava desde a varanda de minha casa e testemunhei a queda lenta de um papel deltoide. É tal qual uma dança bonita. Rodopia, o rabo flutua em seguida, mais voltas em si. E a pipa cai onde só sei porque ouvi o vozerio dos moleques na rua. Tem sido assim todo dia há alguns bons e longos dias.
Não via uma temporada de revoadas fazia tempo. Tanto tempo que imaginei nem existir mais esse tipo de entretenimento nesses séculos modernos e pandêmicos. Mas a periferia me mostra, de novo, o quanto resiste. Porque primeiro, antes mesmo de as raias voarem, quem atravessa o ar quente da tarde é a excitação de quem vai ao asfalto correr atrás de papagaio cortado no céu.
A gente sabe que a rua está diferente quando ouve o burburinho dos garotos. Uma voz, duas, três, dez, alegres. Todas alegres. Agora, me parece, mais alegres do que o habitual. Foi tanto tempo presas dentro de casa, dentro do peito e dentro da garganta que agora querem mais é preencher o mundo. Um mundo cheio de vazios deixados por uma morte dolorida, silenciosa, asfixiante e covarde.
Perdi muitos pra ela. Ex, amigo, colega de trabalho, prima, vizinho. Até onde contei, nove. Cada uma eu penso ser que nem uma pipa no céu, no auge da vida, e repentinamente cortada. Cada pipa que cai eu penso ser alguém se apagando. Uma família chorando. Uma felicidade indo embora. Uma dor.
Mas também penso que pode ser o contrário de tudo isso. Pode ser um novo começo, já que um outro dono lhe dará um outro destino. Prefiro imaginar a vida assim. Em recomeços. Ciclos. Oportunidades. Tal qual o amor. Porque, afinal, é ele quem nos sustenta. O amor. É quem não permite que a gente enlouqueça. Ou que enlouqueça pelo que vale a pena. Por algo que valha.
Vejo céu atrás de céu sendo cortado por pipa atrás de pipa e menino atrás de menino atrás de pipa atrás de céu. Não tem fim, a esperança. A gente se fia nisso. Mas é também a esperança um jeito de amar. De amor. De continuar. De ser a continuação de alguém. De quem não pode mais estar aqui. De quem foi repentinamente cortado do céu.
Cada sorriso de um menino que pega uma raia é uma certeza de o mundo ser possível de resistir. De existir. De ser possível juntar cada pedaço de linha e remendar de uma ponta a outra. De uma vida a outra. De uma esperança a outra. De um amor a outro.
Eu olho pra pipa que despenca do céu e penso no tanto que ainda quero viver e não sei se haverá tempo suficiente pra isso. Pra mim. Pra nós. Pra todos nós. Porque a gente tem feito tudo errado. “Está tudo ao contrário e ninguém reparou”. Reparou, mas preferiu deixar assim. Mudar cansa. Viver cansa. Viver é um verbo muito longo, já dizia uma tia antiga. Cansar, portanto, deveria ser comum. É humano.
Da minha janela quadrada, espio os meninos. E tenho vontade de ser um deles. De viver nesse mundo onde morrer é uma abstração e a preocupação primeira mora na ânsia de correr ligeiro para chegar antes dos amigos ao terreno abandonado onde a pipa caiu.
Pegar, consertar e fazê-la voar de novo.
Viver é isso.

Comunicólogo e mestre em Antropologia, é especialista em Jornalismo Político e Escrita Literária e tem MBA em Comunicação e Marketing em Mídias Digitais. Foi repórter e editor dos jornais O Estado e O POVO, correspondente do portal Terra e colaborador do El País Brasil. Atua hoje como assessor de comunicação. Venceu o Prêmio Gandhi de Comunicação, o Prêmio MPCE de Jornalismo e o Prêmio Maria Neusa de Jornalismo, todos com reportagens sobre a população negra. No Ceará Criolo, é repórter e editor-geral de conteúdo. Escritor, foi finalista do Prêmio Jabuti de Literatura 2020.