Se mesmo que rapidamente você passeou por alguma rede social nos últimos dias, então sabe qual movimento inspira neste texto. Foi Bolsonaro vencer para as timelines serem inundadas pelos dizeres “ninguém solta a mão de ninguém”. Uma campanha de solidariedade feita por eleitores do candidato derrotado.
É uma forma de dizer que todos estão unidos contra os absurdos proferidos pelo presidente eleito durante os 45 dias de campanha. Mas lamento informar: a verdade é que a gente já largou a mão um do outro há muito tempo. Todo dia, o dia todo, de diversas formas.
Faz isso quando uma menina bonita passa na balada e o macho-alfa-hétero se sente no direito de puxá-la pelo braço e tentar beijá-la à força. Quando uma travesti é cruelmente assassinada numa ruela de periferia. Quando um porteiro impede a entrada de um negro num condomínio de luxo.
A gente também larga a mão do outro sem remorso quando vê um idoso tentando atravessar a rua e não para o carro. Quando xinga o amigo de bicha, como se ser bicha fosse algo ruim. Quando diz que “bandido bom é bandido morto” e relativiza a coisa ao saber que o criminoso é um amigo (ou a gente mesmo).
Não existem mãos solidárias na rotina da mulher chefe de família. Só as dos assediadores nos transportes coletivos; as dos companheiros agressores; as dos filhos de comportamento agressivo por causa da droga e as das mulheres que não praticam a sororidade. Muitas, milhares, sequer sabem o que é isso.
Quando o Estado se nega a amparar diversas populações desde que o Brasil é o Brasil, talvez até antes disso, as mãos dele, Estado, não estão dadas com as dessas populações. Com a negra, então… Cada tapa na cara de mãe em defesa do filho, cada murro na cara de “vagabundo”, cada tiro em corpos pretos, nada disso é estar de mãos dadas.
Está mais para atar punhos.
Tivesse o Estado cumprido com sua mínima obrigação, nós estaríamos agora de mãos dadas para outra coisa, qualquer coisa, que não para essa defesa do óbvio. Quando postamos “ninguém solta a mão de ninguém”, seja onde for, da forma que for, nós estamos defendendo o óbvio.
Ser contra entregar a Amazônia aos Estados Unidos é o óbvio.
Defender as cotas sociais e raciais nas universidades e concursos é o óbvio.
Levantar a bandeira LGBTq é o óbvio.
Criticar o fim do 13º salário é o óbvio.
Não aceitar salário menor para mulheres porque elas engravidam é o óbvio.
Indignar-se com a fala “gay é gay porque não apanhou” é o óbvio.
Revoltar-se com um presidente eleito pesando negros por arroba é o óbvio.
Ter que explicar sobre o direito das pessoas à felicidade é a prova da falência da humanidade. É admitir que chegamos a uma barbárie impensável. E o pior: que mesmo a partir de agora, enfim, estando todos – ou pelo menos muitos – de mãos dadas, ainda há risco de retrocedermos.
Mas sigamos na resistência.
Comunicólogo e mestre em Antropologia, é especialista em Jornalismo Político e Escrita Literária e tem MBA em Comunicação e Marketing em Mídias Digitais. Foi repórter e editor dos jornais O Estado e O POVO, correspondente do portal Terra e colaborador do El País Brasil. Atua hoje como assessor de comunicação. Venceu o Prêmio Gandhi de Comunicação, o Prêmio MPCE de Jornalismo e o Prêmio Maria Neusa de Jornalismo, todos com reportagens sobre a população negra. No Ceará Criolo, é repórter e editor-geral de conteúdo. Escritor, foi finalista do Prêmio Jabuti de Literatura 2020.