“Sempre foi muito mais fácil (porque sempre pareceu mais seguro) dar um nome ao mal externo do que localizar o terror interno. E, contudo, o terror interno é muito mais verdadeiro e muito mais poderoso que qualquer um de nossos rótulos: os rótulos mudam, o terror é constante. E esse terror tem algo a ver com esse fosso irredutível entre o eu que inventamos — o eu que assumimos enquanto seres, que é, contudo, e por definição, um eu provisório — e o eu não detectável, que sempre tem o poder de estilhaçar o eu provisório.”
— JAMES BALDWIN, “Nothing Personal”, 1964.
“Estavam todos armados com facas-laser que cortam até a vida.”
— CONCEIÇÃO EVARISTO, “Maria” em “Olhos d’água”, 2016.
Com a maior rejeição da história do Big Brother Brasil em todo o mundo (99,17% dos votos), a cantora curitibana Karol Conká foi a quarta participante eliminada do programa antes de completar um mês de participação na “casa mais vigiada” do país. Arthur e Gilberto escaparam da berlinda com 0,54% e 0,29% dos votos, respectivamente. No último domingo (21/2), a líder Sarah indicou Karol direto ao paredão, impossibilitando-a de participar da prova de bate e volta.
Não me recordo de ter visto nas edições anteriores tamanha mobilização social, memes, piadas, propagandas comerciais e, inclusive, publicações de diferentes artistas, personalidades engajadas nas redes sociais propagando rejeição não somente às participantes do BBB 21, mas também a tentativa de deslegitimação das supostas “bandeiras de lutas” que uma ou outra BBB afirma defender. Entretanto, as questões que emergem são bem mais complexas e cheias de armadilhas.
Que espécie de força-motriz mobiliza um país como o Brasil a não somente votar mas torcer promovendo verdadeiras campanhas pela eliminação de uma pessoa por meio do efeito-manada das hashtag nas redes sociais digitais (Twitter, Instagram e Facebook)?
Inédita talvez apenas nas formas, é possível afirmar que sempre tenha sido assim contra determinadas formas de existências no Brasil. Uma época na qual privilegiamos a separação, o cancelamento e os movimentos de ódio, nos juntamos ao espetáculo do linchamento protagonizado pelas multidões-invisíveis sobre aquele [já] corpo caído no chão. Onde, se não no Brasil, o terror racial, o corpo-negro desmembrado e o gozo da Branquitude encontrariam palco tão perfeito?
Contra o inimigo (esse Outro que sou eu), ao mesmo tempo em que propagamos e afirmamos em nossas telas-perfis nossas identidades-lacres apaixonadas pela nossa própria imagem refletida nas telas dos ecrãs, viramos códigos, fluxos. Por outro lado, não obstante, entramos em zonas de vizinhança com aqueles e aquelas que, prostrados a um deus que os mantêm no lugar da subserviência, nos vimos à semelhança de rebanhos encerrados em cercas, pastoreadas por lobos e regidos pela lógica branca-falocêntrica e seletiva de um pastor que divide o mundo entre os santos e pecadores.
É bem curioso que certo serviçal do interior da Casa-Grande que não deseja a morte de seu Amo, ao aprender e adentrar outros códigos de linguagem e conduta, incorra na possibilidade de nutrir o auto-ódio: o sobrevivente da Casa-Grande não somente deseja a eliminação do outro-semelhante, ele tem prazer em vê-lo sucumbir.
Essas políticas do ódio, do medo e do terror circulam na e entre a plantation, a senzala e a Casa-Grande. Toma formas e contornos distintos e similares. Nessa antieconomia, por não participar efetivamente de nenhum tipo de humanidade, ele insiste, ele bajula o Amo, mas seu medo e o seu fim são o açoite e a humilhação, ambos mediados pelas mais diferentes promessas de uma recompensa-adiada. Talvez em outra vida, junto ao Onipotente, Onipresente e Onisciente.
A cegueira-inumerável que invisibiliza e, em seu reverso permanente, fixa e emoldura o Outro. Em uma sociedade racista, o pacto colonial do Mundo-Branco está organizado como uma arena lotada de pessoas brancas, masculinas e cishetero em seus AP em frente às telas finíssimas de plasma 100 polegadas fazendo apostas de qual melhor prete-de-estimação, enquanto (des)semelhantes corpos-pretes em alguma quebrada correm no fio da navalha a todo-instante.
O Grande-Irmão, por sua vez, disputa certo regime de Verdade, cancela e replica o cancelador, reivindica ser o militante-isentão que não assiste o BBB mas consegue tecer uma crítica na disputa por outra economia. Por ser Branco, o soberano performa um Mundo-Preto. Ao inventar metafísicas canibais, ele alimenta-se de sua própria criação colonial.
Não é nova a informação de que o colonialismo não é simplesmente um período histórico e sim uma força multilinear em um mundo sob máscaras maniqueístas, um emaranhado de sutilezas: um gesto, um olhar, um desdém, uma humilhação, enfim, um cancelamento-permanente contra os “sem”: sem-agência e sem resistência ontológica. A eliminação de Conká já estava programada, assim como a de Lumena, Lucas…
Impossível de ser definido, o colonialismo é uma máquina que não pensa. É uma efusão de sangue, um estômago vazio, um “não” constante, um esmagamento psicológico. Explodimos. É a violência não somente no seu estado bruto, mas, e, sobretudo agora, o próprio ar que respiramos. Dentre seus muitos efeitos, a Verdade que escrevi sobre as tábuas da minha Lei têm como norma a política do “todos-contra-todos”. É, portanto, narcisista. É niilista.
Seja intra ou extra-muros BBB, Instagram ou Twitter, ainda somos como pássaros que cantam presos na gaiola sem portas da representatividade. A tentação de ser modelo/representante nasce do desejo de soberania e não da vontade de potência. Nesse “beco-sem-saída”, multiplicam-se os cercados e reinventam-se as clausuras. A regra do mundo agora parece ser a da lógica de sobrevivência. Ou seja, a lógica do “antes ele do que eu”, isto é, não somente o fato de que cada pessoa agora é inimiga de qualquer outra pessoa, mas o horror que outrora sentimos perante a morte do outro agora transformou-se em satisfação – isso quando é a outra pessoa na condição de cadáver.
As telas-planificadas dos celulares, computadores e TVs são o novo “espaço público”. A era computacional se caracteriza cada vez mais pela indistinção entre viventes e máquinas. De ordem planetária, não circunstancial e muito menos circunscrita localmente, nosso tempo é regido pela prática sistemática de transformação e gerência de tudo que é vivo como sendo dejetos ou lixo.
Os cancelamentos/linchamentos vêm, portanto, ganhando notoriedade nas redes sociais virtuais. Sabemos que o linchamento não é uma novidade. Sobretudo de cunho racista e falocêntrico, o linchamento significa reduzir a pó os indesejáveis, os dessemelhantes por meio do gozo-coletivo de punir um suposto transgressor1. Não antes sem passar por um rito público de compartilhamentos virais que conjugam a ridicularização e desumanização, a imagem do indivíduo viraliza como “modelo-a-não-ser-seguido” e reduzido a um suposto erro, jogado e eliminado sem nenhuma chance de habitar o lugar da reparação e restauração.
Agora, cada ser humano aparece na nova arena pública como um fluxo: códigos cada vez mais abstratos e fungíveis. Este “espaço-público” é regido não somente por duas ordens coexistentes (a dos perfis-engajados e a dos não-engajados) ou pela abolição da distância entre a ficção e a realidade, mas tornou-se gerador de verdade. Embora seja ilusória a ideia do Ser em vez do “estar sendo”, estamos apaixonados por um Eu que inventamos e cultuamos. Somos induzidos a nos tornarmos nosso próprio juiz, promotor, advogado, Messias e carrasco.
Diante disso, precisamos interrogar o espanto e a naturalização das violências. Golpear imagens do pensamento do “eu menos o outro” sem recuar. Pois se faz necessário lembrar que, conforme as lógicas deste Mundo-Branco, toda forma de cancelamento é colonialista.
Se é possível afirmar que se organizam por todos os lados, a nível planetário, novas formas de lutas cada vez mais celulares, transversais e horizontais, características da era computacional, por outro lado – diferente do que muitas pessoas são levadas a crer –, um reality-show não tem o poder de suprimir as múltiplas trincheiras de lutas históricas e atuais dos movimentos negros no Brasil.
É possível, em diferentes línguas, construir a Torre?
Embora o racismo continue a ser a nossa Besta, existe em nós algo que não pode ser domado, que é despistador e inventivo. Nesse sentido, para citar Beatriz Nascimento, cada corpa e corpo-negro é um quilombo. Somos a própria fuga, fumaça e cinzas. Uma arma inventada e abandonada a um só momento. Somos água e a própria fronteira.
1 Vale lembrar que a “lei de Lynch” deu origem à palavra linchamento. Vinda do sobrenome de um homem-branco dos EUA, a lei servia de base para perseguição de negras e negros pelos conhecidos “Comitês de Vigilância”, fonte de inspiração para a Ku Klux Klan.
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TEXTO-PERFORMANCE DE ALINE FURTADO
(A ação) A propósito…
É como se você estivesse separada do mundo por uma barreira que intercepta qualquer
percepção. Entre você y o mundo: há um abismo! Você fala, mas ninguém te ouve!
(Quem fala? Quem não ouve?) Você pode até gritar, espernear, mas nada acontecerá!
(Quem se importa? Quem importa?) Ou pelo menos, nada tem acontecido (Ou tudo
acontece diante de nossos olhos adormecidos… assim mesmo, sem vermos) As pessoas
(imóveis) olham-te desconfiadas.
“-Será?” /
“ – Não! Acho que não! ”/
“-Você tem certeza?”/
“ – Mas, por que você fala isso? O que te disseram?”
A mim, disseram que eu era diferente! A marca da diferença? A minha pele (preta), o meu corpo (preto). Não, não sou eu quem constrói a diferença. Construíram-na e elegeram-nos como “o Outro”. Agora, chegou a hora de questionar: Diferente, quem? Criaram um sistema no qual a partir de si mesmos dizem quem somos (insistem, minoritários!). E não só, possuem o privilégio da transparência, onde não se atrelam – y não são atrelados – à violência que produzem com suas estruturas, e por isso mesmo, seguem protegidos, pois não são marcados com a diferença! A ordem diz quem está
dentro. Quem está fora, que se ajeite! Mas quem está fora? EU saí do seu olho.
Ana Aline Furtado.
Jornalista. Mestre e doutorando em Sociologia. Pesquisador do Laboratório de Estudos e Pesquisas Conflitualidade e Violência (Covio/Uece).