Ao contrário do que pensa um certo senhor presidente da República, o carnaval brasileiro não é só putaria e golden shower. É lugar de mandar a real pra quem, como ele, anda desconectado da realidade do país. Caso você, leitor, também não tenha percebido, lá vai a dica: TODAS as quatro escolas de samba eleitas campeãs no Rio de Janeiro e em São Paulo contaram a história do povo negro.
No Grupo Especial carioca, a Mangueira foi eleita campeã por dar visibilidade a heróis esquecidos, quase todos negros, mulheres, índios e pobres. No Grupo de Acesso, a Estácio cantou o Cristo Negro e ganhou passaporte para em 2020 juntar-se à elite do carnaval.
Já no Grupo Especial paulista, a Mancha Verde homenageou Aqualtune, a princesa africana e negra avó de Zumbi dos Palmares, um dos mais importantes personagens abolicionistas do Brasil. No Grupo de Acesso, a Pérola Negra venceu com o tema “Da majestosa África, tu és negra mulher guerreira a verdadeira Pérola Negra.”
Ironia ou não, justamente os pretos têm sido alvo recorrente de declarações bizarras deste mesmo certo senhor presidente, que já deu provas pra lá de suficientes de ignorância e arrogância quanto ao papel determinante dos negros para a formação do povo brasileiro e do Brasil em si.
A vitória dessas escolas significa, então, que o mínimo devido por esse senhor aos pretos é nada menos que respeito. Termos todas as campeãs do maior espetáculo do planeta coroadas com enredos enaltecendo o valor do povo preto mostra o quanto nosso povo é sedento da própria história. E o quanto precisamos tratá-la melhor.
Sem deboche. Sem relativizações. Com inclusão. Com reverência a quem de fato importa e a quem de fato lutou por dias melhores. Marielle Franco não esteve em mais de um desfile à toa. Dragão do Mar também não. Nem Aqualtune. Todos eles – e milhões de outros negros – morreram por uma causa que quase todo dia nós, inclusive muitos negros, ignoramos.
Se todas as escolas de samba do Rio e de São Paulo decidirem num mesmo ano homenagear negros decisivos para os rumos do Brasil, acredite, faltariam escolas de samba. Nosso povo é imenso. Só precisa se dar conta disso. E isso só vai acontecer se debates como esses levantados pelas escolas de samba neste carnaval forem cada vez mais presentes nas escolas, com o cumprimento da Lei nº 10.639, no nosso trabalho, nas nossas relações, na nossa vida.
Enquanto a gente ignorar que o Brasil tem preto, que a maioria da população é preta, que nosso sistema sociopolítico é excludente (e exclui principalmente o preto) e que o nosso senhor presidente é um racista irrefreável, nós vamos continuar precisando de sambas-enredo politizados, de militância nas ruas, de resistência.
O banho deste carnaval, na verdade, senhor presidente, não foi dourado. Nem tem nada de cunho sexual. Foi um banho negro. Político. E dos bons. Uma aula que o senhor deveria assistir até aprender um pouco de civilidade.
Enquanto isso, como bem cantou a Mangueira: “Brasil, chegou a vez de ouvir as Marias, Mahins, Marielles, malês.”
Comunicólogo e mestre em Antropologia, é especialista em Jornalismo Político e Escrita Literária e tem MBA em Comunicação e Marketing em Mídias Digitais. Foi repórter e editor dos jornais O Estado e O POVO, correspondente do portal Terra e colaborador do El País Brasil. Atua hoje como assessor de comunicação. Venceu o Prêmio Gandhi de Comunicação, o Prêmio MPCE de Jornalismo e o Prêmio Maria Neusa de Jornalismo, todos com reportagens sobre a população negra. No Ceará Criolo, é repórter e editor-geral de conteúdo. Escritor, foi finalista do Prêmio Jabuti de Literatura 2020.