Esta semana, uma criança de apenas dez anos sofreu ataques racistas de um colega de sala em Jaboatão dos Guararapes, Pernambuco, dentro da escola. Para além da questão sócio-étnico-racial, que por si só já é um completo absurdo, o caso ganhou repercussão pelo contexto político no qual se deu. O argumento utilizado no ataque a Ayanna foi: “Bolsonaro já ganhou e garantiu que vai resolver essa mistura. Se seus pais vierem falar merda, a gente mete bala.”
A reprodução do diálogo foi feita pela própria garota aos pais, que de pronto acionaram professores e a coordenação do colégio. A solução: “forçar” o garoto a um pedido de desculpas e a abraçar a menina, de quem ele disse sentir nojo pelo simples fato de ela ser negra.
Surreal, para dizer o mínimo.
Da mesma série de Ayana, o garoto não tem ideia do discurso de ódio que profere. Certamente apenas reproduz o que ouve em casa, o que vê nas redes sociais, o que escuta no rádio e o que assiste na televisão. E pra essa era de fake news, o melhor instrumento é (ironicamente) a informação.
Em meio a um momento eleitoral de ânimos tão acirrados e com o candidato que lidera as pesquisas à Presidência da República autodeclaradamente racista, a reportagem perdeu uma excelente oportunidade de colocar em pauta a necessidade de os estabelecimentos de ensino cumprirem a Lei Federal nº 10.639. Ela estabelece a obrigatoriedade do ensino da história e cultura afro-brasileira.
Essa é uma lei de 2003. Ou seja: tem 15 anos e até hoje é praticamente ignorada pelas escolas, sejam elas públicas ou privadas, que insistem em ignorar a existência da população negra no Brasil para além do caráter escravagista. Se a implementação tivesse ocorrido de forma imediata, nós hoje já estaríamos colhendo algum fruto de um currículo escolar menos eurocêntrico, menos patriarcal e menos racista.
É especialmente nestes casos de grande visibilidade que nós, repórteres, precisamos nos valor do nosso título de COMUNICADORES SOCIAIS. A gente precisa dar visibilidade a causas esquecidas. Como uma matéria sobre caso de racismo dentro do ambiente escolar não trata, em nenhum momento, da desobediência a uma lei federal criada para agir na causa deste tipo de situação?
Não discuto aqui o fato de as matérias de diversos portais terem sequer informado ao leitor que racismo (ou injúria racial, caso alguém ache que o caso se adequa melhor nessa tipologia) é crime. E não faço isso porque, afinal, estamos falando de crianças em plena formação de caráter e personalidade.
O que precisa ser colocado em análise aqui é uma lei estudantil ser ignorada por um estabelecimento de ensino que ganha dinheiro às custas da péssima educação pública e a reportagem não se indignar diante disso. O que a escola teria a dizer? A mãe da garota atacada diz que gosta da metodologia do colégio, mas ele cumpre a lei ou o fato de Ayanna ser a única negra da sala faz a diretoria considerar desnecessário discutir a dignidade de uma parcela tão significativa da população?
É exatamente pelo fato de a lei ser ignorada pelas escolas e isso não ser fiscalizado pelo Estado que muitos pais não sabem da existência dela. Logo, não reivindicam o direito à própria história e até à integridade moral e física dos filhos, que ali sofrem todo tipo de bullying.
Tão fundamental quanto os colégios enxergarem os negros como pertencentes à história brasileira é a imprensa posicionar-se no sentido de cobrar tanto o cumprimento de uma lei quanto o respeito aos milhões de cidadãos do nosso país que se autodeclaram negros e só se enxergam nas páginas de jornais quando estão envolvidos em casos de violência.
Essa lógica tem que mudar.
[na foto, a mãe de Ayanna]
Comunicólogo e mestre em Antropologia, é especialista em Jornalismo Político e Escrita Literária e tem MBA em Comunicação e Marketing em Mídias Digitais. Foi repórter e editor dos jornais O Estado e O POVO, correspondente do portal Terra e colaborador do El País Brasil. Atua hoje como assessor de comunicação. Venceu o Prêmio Gandhi de Comunicação, o Prêmio MPCE de Jornalismo e o Prêmio Maria Neusa de Jornalismo, todos com reportagens sobre a população negra. No Ceará Criolo, é repórter e editor-geral de conteúdo. Escritor, foi finalista do Prêmio Jabuti de Literatura 2020.