Quem vê aquela mulher de vermelho, cabelão afro, toda empoderada e superexpressiva em cima do palco, falando das belezuras da vida e dos amores, possíveis e infinitos, ao som de percussões e ritmos negros nem imagina. Mas Vanessa da Mata é de uma voz tão macia e serena, dita num tom tão baixo quando está trocando dedos de prosa, que exige atenção redobrada de quem a ouve.
Só assim, com olhar miúdo lendo os lábios (também vermelhos) de uma cantora pós-show, para não perder as palavras que saem da boca de quem canta maravilhas há 20 anos. Não romantize, porém, essa suavidade na fala. Os dizeres são incisivos, diretos, sem melindre algum se o assunto é pertencimento étnico.
Vinda do miolo do Brasil, Vanessa reconheceu a negritude dentro de casa muitos anos antes de ser eleita uma das mulheres mais criativas do país. Defendeu a própria identidade da ignorância e preconceito de familiares e do mercado fonográfico muito antes de embalar casais apaixonados com os versos de “Ainda bem” e “Amado.”
Nesse domingo (24/11), ela levou 45 mil pessoas para o Festival Elos, no aterro da Praia de Iracema, em Fortaleza, onde logo após uma apresentação marcada por sons, letras e referências da cultura afro-brasileira, recebeu o Ceará Criolo para um bate-papo no camarim.
Ela fala sobre o novo CD (Quando deixamos nossos beijos na esquina), infância, ser filha de pai branco do olho azul e de mãe negra e índia, influências na trajetória musical e da necessidade urgente de a humanidade – nascida de uma mulher, como ela bem destaca – ter outra atitude diante da vida.
Confira.
CEARÁ CRIOLO
No teu mais recente CD, você trabalhou à frente da produção. Visualmente, sonoramente e textualmente, o álbum perpassa muito o pertencimento negro – algo que também reflete no show que nós vimos. Como isso te atravessa na produção e no teu dia a dia enquanto artista e mulher?
VANESSA DA MATA
Eu fui a primeira a pontuar a força negra lá de casa. A gente é de uma época em que meu pai, sendo branco e de olho azul, a gente achava que a gente era branco. (risos) A família do meu pai dizia assim: “o fulaninho preto, a família da sua mãe é negra…”. E eu dizia: “mas a gente é negro; você tá falando da gente”. As pessoas ficavam: “a gente não é assim”. E eu dizia: “a gente é assim”. E quando a gente sentia preconceito, a gente ficava paralisado. E ficava pensando: “a gente é ou a gente não é?”. Porque você olhava pro meu pai e ele tinha o olho azul. E minha mãe era uma mistura de negro com índio e branco. Mas quando a gente sofria preconceito ninguém dizia que a gente era filho de branco, entendeu? Era uma confusão lascada!
CEARÁ CRIOLO
É que o imaginário popular diz que negro é só aquela pessoa de pele escura…
VANESSA
Exato. Mas o preconceito vinha pelo cabelo, vinha pelos traços, vinha pelo corpo, pelo nariz, pelo bocããão… A ex do meu ex-namorado dizia: “mas ela é preeeeeta”. E eu rebolava até o chãããão! E adorava. (risos) Demorei a entender que ela tava querendo me ofender. (risos)
CEARÁ CRIOLO
Se você já tinha consciência da negritude, sabia que não era ofensa…
VANESSA
Ofensa nenhuma. É que eu vejo [a negritude] muito mais como uma força do que depreciação. Aí, eu demoro mesmo a entender. É tão rico. E na música, principalmente. Porque isso é forte. É riqueza. É mais mérito do que demérito, que não tem como dizer que é demérito da música. E num disco isso, desde o início, é muito mérito. Isso é riqueza.
CEARÁ CRIOLO
E essa base negra na música vem desde o teu primeiro CD. Não é algo que a gente tá vendo agora…
VANESSA
Sim. Sempre. Isso é base de pesquisa pra mim, até. De cultura. Eu sempre pesquisei muito. Desde o início da minha infância, minha avó me levava pra igreja católica e eu sempre queria entender as culturas indígenas e as culturas africanas. Eu não entendia por que eu tinha que estudar uma cultura judia. Porque eu não tinha nada de judia. Ou achava que não tinha. Mas enfim. Era muito mais próximo o músico do meu avô por parte de mãe, negro, e um bisavô por parte de mãe, índio, cheio de ervas medicinais, e negro também, cuja minha bisavó morreu entornada numa camisa de força porque tinha uma herança do candomblé e não quis assumir, de medo, porque a igreja católica dizia que isso era coisa do mal…
CEARÁ CRIOLO
Afora o estigma da mulher negra de ser sempre tachada como histérica, maluca…
VANESSA
A mulher poderosa, né? A mulher poderosa ela tem que ser de alguma maneira aprisionada porque ela pode dominar tudo, né? Na verdade, é o medo do domínio que ela pode ter sobre todos. No dia em que as pessoas entenderem que o homem vem da mulher de verdade isso vai causar medo geral. Isso está no inconsciente ainda. Porque não é só doar um cromossomo. É toda a feitura da história. Quando as pessoas entenderem a feitura da coisa, que o sangue todo tá ali, que hoje em dia nem de espermatozoide se precisa mais… Quando os homens machistas, inseguros entenderem isso vai ser um caos pra muitos homens…
Eu acho que é preciso ter consciência e viver mais de bem com a vida. Porque se houver medo e se houver guerra um vai tentar dominar o outro. E não é esse sentido. Se começar a dominar, a mulher domina. A gente tem que se acertar de uma outra maneira. A gente tem que ter outra atitude. Mais abrangente. Com afeto. De uma outra maneira.
VANESSA EM NÚMEROS
7 CDs de estúdio
6 CDs com composições próprias
1 CD em homenagem a Tom Jobim
2 DVDs
7 turnês
5 prêmios de música
1 Grammy Latino pelo álbum “Sim”
5 indicações ao Grammy Latino
1 livro (A filha das flores, lançado pela Companhia das Letras em 2013, com reedições em Portugal, México e Alemanha)
PERFIL
Vanessa Sigiane da Mata Ferreira nasceu em Alto Garças, no interior do Mato Grosso. Tem 43 anos e três filhos. É cantora, compositora, modelo e escritora. Seu mais recente trabalho, intitulado Quando deixamos nossos beijos na esquina, foi lançado há cinco meses é o primeiro no qual a cantora atua como produtora e o que mais tem referências negras de toda a carreira.
FOTOS DO SHOW: Eden Barbosa./ FOTO DO CAMARIM: Yves Klavdian.

Comunicólogo e mestre em Antropologia, é especialista em Jornalismo Político e Escrita Literária e tem MBA em Comunicação e Marketing em Mídias Digitais. Foi repórter e editor dos jornais O Estado e O POVO, correspondente do portal Terra e colaborador do El País Brasil. Atua hoje como assessor de comunicação. Venceu o Prêmio Gandhi de Comunicação, o Prêmio MPCE de Jornalismo e o Prêmio Maria Neusa de Jornalismo, todos com reportagens sobre a população negra. No Ceará Criolo, é repórter e editor-geral de conteúdo. Escritor, foi finalista do Prêmio Jabuti de Literatura 2020.