Eu tenho acompanhado com muita empolgação todo o frenesi em torno de Pose, a série de canal FX sobre os bailes clandestinos dos anos 1980 nos Estados Unidos. Mas uma “coisinha” tem me chamado bastante atenção nessa farra toda.
Estamos, mais uma vez, “esquecendo” de colocar nos devidos termos a questão racial. Porque sim: Pose é uma série sobre o povo preto. Tanto quanto é sobre a comunidade LGBTQIA+. Ou até mais, a depender do prisma de observação.
Vejo todo mundo celebrando o fato de o casting contemplar praticamente todas as letrinhas. Mas caso a galera não tenha percebido, e às vezes não percebe mesmo, os atores e as atrizes são negros, quase todos. Billy Porter, que muita gente comemorou quando ganhou o Emmy deste ano pela atuação em Pose, é negro. Antes mesmo de ser gay.
E, aí, gostaria de lembrar algo aos desatentos e/ou desmemoriados: essa é a regra. Quase todos ali (e aqui, na vida de verdade) são notados socialmente primeiro por terem a pele escura e só depois por serem gays, mulheres trans, lésbicas ou qualquer outra parte importante do LGBTQIA+.
Então, uma dica: se você já devorou as duas temporadas e não se deu conta disso, assista novamente. E faça o exercício de tentar enxergar o mundo da Blanca, do Damon, da Elektra, da Candy, do Pray Tell e de quase todos os outros personagens também pela perspectiva esmagadora da cor da pele.
Eles unem-se não só por serem LGBTQIA+. Unem-se, antes de tudo, por serem pretos. Muitos personagens, inclusive, sequer encaixam-se no estereótipo do gay afeminado, ainda forte hoje em dia e àquela época o auge da desinformação junto da ignorante tese de que a aids era o castigo divino pros viados profanos.
A cor da pele de todos os personagens negros chega aos lugares antes da sexualidade deles. Porque sexualidade até pode ser disfarçada (não que deva ser) quando a gente não desmunheca nem fala fino (ou vice-versa, conforme os padrões sociais que determinam comportamento de macho e fêmea). Mas fenótipo é coisa que está na casa do sem jeito. Você é negro e ponto. Não há como esconder.
Assim como devemos encarar Pose como um seriado também sobre negros, a prática de enxergar pessoas a partir da cor da pele é fundamental nas nossas rotinas. Na sua empresa, onde estão os negros? Na diretoria ou nos serviços gerais? Já indaguei isso aqui no Ceará Criolo.
É urgente que a gente note a diferença gritante e ensurdecedora entre pessoas de cor e indivíduos brancos, sempre privilegiados ou herdeiros de uma ditadura étnica que nos esmaga há séculos. A população negra norte-americana, onde Pose se passa, é diminuta em comparação com a brasileira.
Por aqui, nós somos maioria. Mas ainda temos um bocado de caminho pela frente em termos de conscientização e educação racial. Muita gente atravessa uma vida inteira sendo excluída pelo racismo e sequer se dá conta de que é negra. Nosso olhar é colonizado. Pra tudo. E isso impede que a gente enxergue os absurdos aos quais somos submetidos todo dia.
Pose tem prestado um serviço incrível ao mundo, LGBTQAI+ ou não. Aborda tabus de maneira tão seca e direta quanto didática. Desenha na cara dos caretas o que eles se recusam a enxergar. E mesmo falando pouco sobre questões raciais dá claramente o recado de que todos somos humanos e merecemos respeito.
Agora, se você nunca assistiu Pose ou sequer ouviu falar da série, bom, tenho duas notícias: 1) você está noutro planeta 2) prepare-se para viciar em mais um seriado ESPETACULAR E NECESSÁRIO.
PS: Pose entrou no catálogo da Netflix Brasil neste fim de semana. Cuida!
Comunicólogo e mestre em Antropologia, é especialista em Jornalismo Político e Escrita Literária e tem MBA em Comunicação e Marketing em Mídias Digitais. Foi repórter e editor dos jornais O Estado e O POVO, correspondente do portal Terra e colaborador do El País Brasil. Atua hoje como assessor de comunicação. Venceu o Prêmio Gandhi de Comunicação, o Prêmio MPCE de Jornalismo e o Prêmio Maria Neusa de Jornalismo, todos com reportagens sobre a população negra. No Ceará Criolo, é repórter e editor-geral de conteúdo. Escritor, foi finalista do Prêmio Jabuti de Literatura 2020.