A internet parou nos últimos dois dias com as farpas trocadas entre Tiago Leifert, ex-apresentador do BBB, e Ícaro Silva, ator global. Quem acompanhou a tour, viu que o comentário de Ícaro ao ser questionado se participaria do reality despertou uma fúria generalizada. Uma destas pessoas foi Leifert que, visivelmente atacado pelo desprezo de Ícaro pelo programa, escreveu:
A resposta do jornalista foi aplaudida, ovacionada principalmente por ex-participantes do reality e celebridades diretamente envolvidas com o programa, que se disseram sentir pessoalmente atacadas com o despeito de Ícaro a este entretenimento.
Desde então, a Internet tem se transformado em um ringue, com torcedores e haters de ambos os lados. Saindo da superficialidade dos egos feridos em questão, resolvemos analisar com o cuidado que merece os argumentos trocados entre os protagonistas da polêmica. A parte principal que chamou a atenção (e de muitos criadores e artistas negros e negras, vale demarcar) foi o seguinte trecho da réplica de Leifert a Ícaro:
Contudo, sua opinião sobre realities não é uma crítica construtiva e, sim, apenas uma agressão gratuita a quem nunca te fez mal (aliás, não só não te fizemos mal como provavelmente pagamos o seu salário nessa última aê!)
Tiago Leifert
É até redundante dizer o quanto esse trecho é absurdo e, ao mesmo tempo, revelador da lógica que o sustenta. Nós, negros e negras, não estamos surpresos que este tipo de argumento possa ser emitido por um apresentador branco, no topo do seu privilégio, pois é o tipo de comentário corriqueiro que já ouvimos de pessoas incomodadas com nossa presença em tantos espaços.
Permita um pequeno prólogo: em toda e qualquer análise discursiva, nunca pode-se deixar de lado quem são os atores envolvidos no discurso em questão porque todas as vivências, materialidade dos corpos, marcadores de diferença social e privilégios entram em jogo quando discursos são emitidos. Os efeitos do discurso variam também quando consideramos quem são esses atores. Neste caso, um corpo preto queer por muito tempo invisibilizado e, do outro lado, um corpo branco cisheterossexual no alto do seu privilégio.
Uma análise discursiva séria, que é a que sempre nos propomos a fazer, pretende-se honesta ao dar relevo a todas estas nuances (cor, gênero, sexualidade, posição social, espectro político etc) quando se analisa o que está dito e, principalmente, o que se quis dizer por trás do dito.
Ao trazer à tona o caráter racial do comentário, a principal alegação dos que não entenderam (ou preferiram não tentar entender) a gravidade do que foi dito por Leifert é:
Ah, mas tudo agora é racismo! Vocês querem enfiar a pauta racial em tudo!
Deixa eu te contar uma coisa: não precisar pautar a questão racial é um privilégio exclusivo da branquitude.
Ao contrário do que muitos possam querer acreditar, pautar a agenda racial não é NADA recreativo. É incômodo, constrangedor. Fere. Porém, NÃO nos é dada a opção de não precisar falar sobre raça quando somos o alvo diário dos ataques raciais e experimentamos na pele, a cada dia, o que significa ser um corpo racializado. Isso mesmo: um corpo “racializado”, já que a branquitude não enxerga seu próprio teor racial e dissemina a ilusão de que é possível falar no mundo e sobre o mundo sem trazer o conteúdo racial.
Se existe um fator no nosso país que separa muitas oportunidades, que determina quais corpos e sujeitos ocuparão espaços de poder, que dificulta mais a vida de uns em detrimento do sucesso de outros, esse fator se chama RAÇA. E a decisão de ignorar esta pauta e compactuar com o tratado da branquitude é inteiramente sua.
Ainda sobre as palavras de Leifert, o editor do Ceará Criolo, jornalista Bruno de Castro, comenta:
Triste do empregado que pensa que é patrão e oprime outro trabalhador. [Leifert] Entendeu só NADA do antirracismo que pregou quando deu lição de moral num dos participantes da última edição. Nada mais colonial do que um homem cis, hétero e branco se prestando ao papel de dizer a um homem, cis, gay e preto como ele deve se comportar. E pior: expor que “eu pago seu salário”. A branquitude espera que a gente, povo preto, dê graças a deus pelas oportunidades que eles, brancos, nos dão por serem condescendentes. E não. Não somos assim.
Bruno de Castro
Que fique escuro: assim como Ícaro tem todo o direito de emitir uma opinião (embora seja tida como equivocada e ofensiva, para muitos), também teria Leifert ou qualquer outro ser humano, com direito a palminhas e “lacrou” nos comentários. Mas jamais, em hipótese alguma, você tem o direito de dizer a alguém de colocar-se em seu próprio lugar, porque “seu salário está sendo pago por alguém”. Percebe o caráter subserviente deste comentário? E vamos contextualizar: em um país que data pouco mais de um século da abolição do regime escravocrata, é muito sintomático que uma pessoa branca sinta-se na liberdade de escrever algo assim, com a certeza de que nada lhe acontecerá. Ou mais: de que o país, em sua esmagadora maioria, o apoiará.
O branco medíocre, que é considerado excelente, nao consegue sequer defender o que acredita sem apelar para o racismo.
— Pré-doutora Mara Karina (@marakarina) December 22, 2021
Se o privilégio branco e a mediocridade correlata tivessem um rosto, uma profissão e um local de trabalho saberíamos quem, o que faz e onde!
A realidade é que vivemos em um contexto social (o qual o professor Silvio de Almeida brilhantemente intitula “racismo estrutural”, recomendamos a leitura!) em que somos o tempo inteiro taxados de raivosos e traumatizados quando denunciamos o racismo escancarado que insistem em chamar apenas de “opinião”. Até que, claro, venha um branco nos endossar e dizer “é, gente, eles têm razão; isso de fato é racismo e não é bacana!” para que todos o aplaudam e o chamem de sensato, de “necessário”. Ser preto no Brasil é pagar um alto preço por se posicionar.
Li muitas opiniões do tipo “ah, quanto mimimi”, “vocês agora só querem lacrar”, “lumena e karol conká fizeram escola”, reduzindo-nos e estereotipando-nos, no intuito de dizer que a treta de UMA pessoa preta representa TODA A AGENDA ANTIRRACISTA da população negra. É muito sintomático e revelador ler este tipo de comentário, porque nós, pessoas negras, somos constantemente reduzidas às nossas pautas (“ih, lá vem com história de racismo de novo…”), pagamos todos pelo “erro” de uma pessoa preta, somos todos encapsulados em caixinhas com rótulos porque tudo o que a branquitude consegue é exotizar a nossa existência, jamais alterizar.
No pacto da branquitude, não cabe alteridade com os considerados “não-iguais.”
Para finalizar este pequeno e leve artigo de opinião (contém ironia), deixamos vocês com a tréplica de Ícaro a Leifert, que deixou a todos nós de alma lavada.
Publicitária cearense. Canceriana. Doutora e mestre em Psicologia. Amante da docência. Integrante do Grupo Interdisciplinar de Estudos, Pesquisas e Intervenções em Psicologia Social Crítica (Paralaxe-UFC). Defendeu em sua tese de doutorado um estudo sobre mulheres em transição capilar. Atualmente, dedicada aos estudos de gênero, raça, feminismos negros e decolonialidade.
Louca por fotografia, design, viajar e colecionar carimbos no passaporte. Uma pessoa extremamente curiosa.