– oi, professora! bom dia. tudo bem? gostaria de lhe fazer um convite. sou jornalista, integro a equipe do ceará criolo, um portal negro e antirracista do ceará, e vou estar no copene de alagoas. como a sra também vai estar no evento, acha que seria possível me conceder uma entrevista?
Eram 8h21min de 11 de novembro de 2022. Um sábado. Oito minutos depois:
– Oi Bruno, será um prazer!!
Não só a resposta ao convite foi rápida. Do primeiro contato, pelo Instagram, à realização da entrevista que você vai ler a seguir, apenas 48 horas correram. Era isso ou a oportunidade passar. Afinal, repórter e convidada estavam sob o mesmo céu – de Maceió -, imersos na mesma atmosfera – o Congresso de Pesquisadores/as Negros/as (Copene) – e tinham agendas apertadas.
Na véspera da entrevista, porém, um encontro inesperado em pleno Quilombo de Palmares, no alto da Serra da Barriga, permitiu tudo ser alinhado numa rápida conversa sobre como seria o dia seguinte. Dadas as circunstâncias de ambas as partes, a promessa era de o bate-papo durar, no máximo, 30 minutos.
Passou de uma hora.
E o que testemunhava contra a possibilidade de tudo dar certo ficou só nisso: no testemunho. Porque o tempo deu um jeito de caber nos nossos afazeres todos e Ynaê Lopes dos Santos, a única mulher negra do maior Departamento de História de uma universidade brasileira, falou sobre infância, criticou o atual currículo escolar, lembrou da própria formação, idealizou um ambiente acadêmico e disparou:
“A gente conhece muito pouco e muito mal a história do Brasil”. Uma história que ela propõe ser contada de forma diferente do que os livros fazem há séculos. E que foi exatamente esse o motivo de ela entrar na lista do Ceará Criolo para uma grande entrevista. A subversão que imprime nas palavras, Ynaê pratica também em cada resposta que dá.
De dentro de um vestido multicolorido, com cabelo preso no alto e de malas quase prontas para partir de volta ao Rio de Janeiro, a paulistana de 42 anos é doutora em História Social pela Universidade de São Paulo (USP) e professora concursada da Universidade Federal Fluminense (UFF). Ganhou projeção ao lançar “Racismo brasileiro”, livro no qual afirma, sem rodeios, e comprova o quão central é o preconceito de cor para a formação do nosso país. Obra essa que descortinou, pra mim, um rincão até então inacessível de narrativa.
No saguão do hotel no qual estava hospedada em Maceió, Ynaê me recebeu em meio ao vai e vem da capital do estado de Zumbi dos Palmares, nosso Herói da Pátria, e durante a agitação causada pela proximidade de 20 de novembro, o Dia da Consciência Negra. A mulher, cujo nome remete à rainha das águas, ministrou palestra, prestigiou outras, realizou o sonho de conhecer o maior dos quilombos brasileiros e, entre uma programação e outra, abriu a vida, as impressões e os sonhos.
Confira a íntegra do papo.
CEARÁ CRIOLO: Pra quem não te conhece, quem Ynaê?
YNAÊ LOPES DOS SANTOS: A Ynaê é filha de um militante do movimento negro. Eu sou filha de um casal interracial. Minha mãe é uma mulher branca, meu pai é um homem negro. Os dois nasceram no Rio de Janeiro e viveram a vida toda na Baixada antes de irem pra São Paulo. São, portanto, de família pobre. Mas como meu pai militou no movimento negro muito antes de eu nascer, eu nunca tive dúvidas de que eu era uma menina negra, embora tenha vivido várias experiências em que isso se apresentava não necessariamente de uma maneira positiva, porque eu vivi num mundo branco a vida toda.
Eu nasci em São Paulo e, pelo fato da minha mãe ser professora e coordenadora de escolas particulares lá, eu e meu irmão estudamos em escola de gente com muita grana. E nós éramos os únicos negros da escola toda. Escolas grandes. Então, tinha o racismo na sua pior e mais cruel forma pra criança. Sobretudo o cabelo era uma marca muito forte em que o racismo incidia em mim. “O cabelo bombril”, “o cabelo que não é bonito”, “o cabelo que não tá arrumado”… E minha mãe era uma mulher branca que teve que aprender a trançar cabelo, porque isso o meu pai não assumiu. Ele poderia ter feito, mas não fez. Ficou a cargo da minha mãe.
Então, eu usei trança durante muito tempo. Tanto que hoje, pra mim, é difícil usar. Porque, naquela época, era o jeito de segurar o cabelo. E eu lembro que tinha um colega da turma que era o estereótipo loiro, de olho azul, rico, branco, morava no Alphaville…e ele tinha uma coisa de perversidade com o meu cabelo.
Óbvio que o fato de ser filha da coordenadora me blindava um pouco, mas o racismo sempre chega. Sempre chega. E olhe que eu estudei em duas escolas construtivistas muito interessantes! Mas o racismo estava posto.
Lembro de ter ouvido uma vez a Taís Araújo falando que na adolescência ela era a pessoa que articulava vários namoros mas ninguém queria namorar com ela. Foi a mesma coisa comigo. Em relação às minhas amigas, eu demorei muito pra ter namorado. Tanto que, no final, eu namorei sério. Namorei oito anos o mesmo camarada. Mas tinha isso, uma coisa de…como se aquele lugar nunca pudesse ser meu.
Eu enveredei, então, pra excelência nos estudos. E virei, como dizem, uma nerd. Canalizei pra isso. E isso me organizou durante a vida toda, porque foi a forma como eu me inseri no mundo.
CEARÁ CRIOLO: A escola, então, foi o primeiro espaço onde você experienciou o racismo?
YNAÊ: Ahhhh, com certeza!
CEARÁ CRIOLO: E aí você volta pra esse lugar como professora. Foi pra ressignificar?
YNAÊ: Antes de mais nada, eu queria ser historiadora. Eu queria fazer pesquisa. E coloquei na cabeça que queria ser professora da USP [uma das mais importantes universidades ibero-americanas e da lusofonia]. Porque eu tenho uma coisa de que se você falar que eu não posso eu vou lá e faço.
CEARÁ CRIOLO: Você é de que signo?
YNAÊ: Sou capricorniana.
CEARÁ CRIOLO: Tá explicado…
YNAÊ: É! (risos) Experimenta falar pro capricorniano que ele não consegue! Pode ser até devagar, a gente vai construindo, mas chega! Enfim…eu tive várias experiências de racismo quando comecei a namorar. Esse camarada com quem eu fiquei oito anos era um menino branco, de uma família de alemães e italianos… A primeira vez que eu conheci o “não” de ojeriza foi com o avô dele, que disse “eu não quero conhecer; não me interessa”. Isso eu tinha 15 anos. Porque também era isso: era um mundo branco, mas politicamente correto mais ou menos, sabe? Então, o racismo escapava e não era uma coisa tão incisiva.
Mas o problema foi menos com ele [o avô do namorado] e mais com a avó progressista, que nunca disse “não”, mas dizia aqueles “nãos” sutis, sabe? Nossa senhora! Aí foi bem pesado! Com o avô, depois, eu não estabeleci uma relação de afeto, mas era minimamente uma relação cordial. Com a avó, não. Era uma coisa difícil. Porque nunca foi dito e eram sempre umas mensagens subliminares. Foi muito forte. Eu namorei muito tempo com ele, mas não tinha possibilidade de pensar em construir família com uma pessoa que tem essa família, sabe?
Então, é isso: eu tive uma experiência de viver muito num mundo branco, de experimentar o racismo muito dentro desse politicamente correto e na sutileza das experiências cotidianas, e eu sempre me reconheci e sempre fui reconhecida como mulher negra. Porque eu também era a única. Não tinha outra pessoa. Os outros eram meus irmãos. Então, tinha essa marca, que só vai ser tensionada e mudar um pouco quando eu entro na universidade, na USP, que, na época, há mais de 20 anos, era muito elitista. E eu entrei no vespertino, porque entrei muito nova. Tinha 16 anos. Fiquei no vespertino na primeira metade do curso, até que assisti uma aula à noite e falei: “caraca! Esse é o lugar de um respiro”. Porque a presença negra na USP à noite era muito maior. De dia, era muito pontual. Tinha muito mais à noite. E isso foi muito importante pra mim.
CEARÁ CRIOLO: Mas você ainda pega uma universidade que privilegia autores brancos…
YNAÊ: Só homens brancos e mulheres brancas. Só. Eu tive um professor negro, que foi o Wilson Barbosa, o Wilsão, que fez um curso incrível de História Contemporânea. Ele era super marxista e dava umas sacolejadas na galera. Mas o resto foram só professores brancos. Professores muito bons, obviamente. Mas eu não tive uma formação por uma intelectualidade negra que passasse pela universidade.
CEARÁ CRIOLO: Pondero isso por imaginar você também foi apresentada na escola regular à versão branca da história que nós conhecemos: do descobrimento, do desenvolvimento…
YNAÊ: Fui. Mas até de uma maneira mais crítica, sabe? Eu tive excelentes professores de História. Eram escolas bem construtivistas, de uma galera com grana e que tinha uma coisa de Humanas muito boa. Eu li Robert Darnton [historiador estadunidense] com 14 anos. Eu li Karl Marx com 13. Eram escolas bem ousadas. Os professores eram bem ousados. Eles meio que adaptavam o curso da graduação e colocavam ali pra gente. Mas sim, só utilizavam autores brancos. Quem me garantiu que eu tivesse uma base pra pensar a intelectualidade negra foi meu pai. Eu li Maria Carolina de Jesus também com 13 anos! Eu li Lima Barreto com 12 anos! Meu pai é professor de Literatura. Então, na casa dos meus pais tinha um quadro de dois metros do continente africano na sala. É uma coisa que é pouco comum. E que, no meu contexto familiar, tá muito vinculado à figura do meu pai.
CEARÁ CRIOLO: Você lembra o que passava na sua cabeça de criança quando via na sala esse quadro de dois metros do continente africano?
YNAÊ: Passava que eu queria ir pra lá! (risos)
CEARÁ CRIOLO: E já conseguiu?
YNAÊ: Já. Fui uma vez. E foi muito legal, porque eu fui com a família toda. Fomos os cinco: eu, meu pai, minha mãe e meus dois irmãos. A gente foi pra um festival de vodum no Benim [país da África Ocidental]. Foram 18 dias. Eu passei meus 30 anos lá. Fui virar balzaca no Benim. E foi incrível! A gente fez um almoço em Cotonou [maior cidade do país], foi junto com um grupo de pesquisadores e, além de visitar o festival de vodum, a gente visitou vários artistas.
Quando a gente tava saindo, a gente ouviu o barulho de uma festa de uma menina que havia nascido tinha dois dias e estavam escolhendo o nome dela. Disseram que era meu aniversário também e a festa da menina virou meio que a minha, sabe? A gente ficou umas seis horas na casa das pessoas. E, pra mim, era tudo muito louco porque era o que eu tinha estudado sobre a constituição de famílias africanas, sobretudo da África Ocidental: um homem com três mulheres, cada uma com sua casa, e um pátio central no qual as pessoas conviviam. E tinha uma coisa muito legal de ver: quem segurava a criança não era a mãe biológica da criança e sim a mulher mais velha. Tudo o que eu estudo estava acontecendo ali. Foi tipo uma mudança de paradigma mesmo.
CEARÁ CRIOLO: Quando você opta pela História?
YNAÊ: Eu decidi fazer História aos 13 anos. Muito nova, né? Eu queria ser jogadora de futebol, mas não deu certo. Aí, aos 13 anos, eu tive um professor de História incrível que fez uma atividade maravilhosa pedindo pra gente ler Adam Smith, Karl Marx e Bakunin. E a gente tinha que decidir qual desses sistemas – o capitalismo, o socialismo e o anarquismo – era mais coerente a teoria com a prática. Quando eu fiz a leitura crítica e caiu a ficha do que eu tava fazendo, eu achei aquilo tão maravilhoso e pensei: “cara, é isso o que eu quero fazer pro resto da vida”. E fui fazer História! Mas eu gostava…
CEARÁ CRIOLO: Não, calma! Você chegou a qual conclusão nesse exercício?
YNAÊ: O anarquismo, pra desespero do meu professor! (risos) Ele era socialista e foi a primeira vez que deu um dez num trabalho. Ele chorou na sala, dizendo: “os argumentos que vocês trazem me obrigam a dar isso mesmo”. Foi super emocionante. Foi muito bacana. Mas, como eu dizia, eu gostava era da Idade Média. Entrei na universidade pra ser Medievalista.
Eu era bem formatada. Eu tinha toda a formação de uma crítica racial, sem sombra de dúvidas. Sabia dizer o que era racismo. Sempre me posicionei. Mas tinha o que me era apresentado positivamente pelo mundo, que era a Europa. Então, eu falei: “vou estudar isso daí”. Entrei na USP e o professor que era o grande nome tinha acabado de se aposentar e não tinham aberto concurso. Eu pensei: “ah, tudo bem. Eu não preciso decidir isso agora”. Aí, comecei a estudar escravidão no Brasil Colônia. Eu gostei, um professor me chamou pra um grupo de pesquisa e eu comecei a fazer pesquisa já no segundo semestre. Comecei iniciação científica sobre escravidão urbana, que é meu tema até hoje, e me apaixonei. Eu li o livro do João José Reis, que pra mim é a sumidade na História, sobre a Rebelião dos Malês e falei: “é isso! Eu quero fazer isso.”
Aí, eu enveredei pro estudo da escravidão urbana. Escolhi o Rio de Janeiro um tanto por uma questão familiar, mas também porque era um tema que, em tese, parecia ter pouco documento, porque geralmente a gente estuda escravidão rural e não urbana. Então, eu pensei em pegar uma cidade que alguma coisa eu iria encontrar porque, afinal, foi a maior cidade escravista do mundo. Aí, eu comecei a fazer a pesquisa sobre o Rio na iniciação científica.
Fiz dois anos e meio de iniciação científica. Peguei, na graduação, o início do governo Lula. Então, tinha bolsa e condições pra estudar. Dava pra estudar, mas não dava pra viajar. Então, eu analisei os viajantes que visitaram o Rio de Janeiro no século 19. Aí, no mestrado, eu fiz um recorte mais específico, que era sobre os tipos de moradia que esses africanos recriaram. E, aí, eu fui pro Rio pra fazer pesquisa. Me organizei pra ter dinheiro e morar por um ano.
Mas, antes de ter bolsa, eu dei muita aula particular. E isso foi uma coisa muito importante na minha vida. Comecei com 18 anos e gostei demais. Primeiro, eu dei aula numa escola bem pequenininha, que a dona era super complicada. Mas depois eu dei aula numa escola super construtivista, que não tinha prova, não tinha nota… Era uma chácara, não tinha uma das paredes, você via o que tava acontecendo nas outras salas… Era muito incrível! As crianças mais bem educadas que eu já vi na minha vida! E ali uma coisa ficou muito latente: havia a diferença entre aquilo que eu pesquisava e aquilo que era ensinado.
Tinha muita diferença, sobretudo sobre escravidão. Mesmo os livros didáticos mais legais tinham um olhar um pouco pasteurizado sobre o que era a escravidão, a vida dos escravizados. Isso foi uma coisa que sempre me acompanhou, tanto que meus dois livros não são acadêmicos e sim pro público mais amplo. E esse público mais amplo parte desse lugar de professor, porque não dá pra gente ficar escrevendo pra cinco ou seis pessoas. Por mais que essa seja uma ação fundamental, eu não quero fazer só isso.
CEARÁ CRIOLO: Mas quando você volta o olhar pra escravidão, mesmo vindo de família racialmente consciente, quando você se depara com as leituras e tem acesso a outras perspectivas, dá uma bugada?
YNAÊ: A bugada vai acontecer depois. Porque, num primeiro momento, as minhas leituras são principalmente de historiadores brancos e historiadoras brancas. Eu me encanto pelo tipo de proposição que essas pessoas estão fazendo da história social, que é entender as dinâmicas desses escravizados e numa condição humana mais real. A capacidade de negociação com os saberes que eles trazem do continente africano foi outra coisa.
Eu fiquei muito tempo na dúvida se eu ia me especializar em África ou América. Como eu fazia leituras de experiências africanas também nas américas a partir da experiência terrível da escravização, eu consegui criar uma leitura ampla sobre o continente africano interessante, pelo menos até o final do século 19. Mas, no final, o que me fez decidir foi a revolução do Haiti. Aquilo era bom demais e eu queria pensar o mundo a partir dali. Mas isso foi só no doutorado. Eu li no final do mestrado o Sir James [historiador Cyril Lionel Robert James] e me liguei que era outro olhar pro mundo. Era outra parada, saca?
Eu já tinha lido Guerreiro Ramos. Já tinha lido Clóvis Moura. Meu primeiro artigo, ainda na graduação, foi sobre Zumbi [dos Palmares]. Isso deve ter 20 anos já. Meu orientador foi chamado pela Caros Amigos, uma revista de esquerda, pra fazer uma coletânea sobre os heróis da pátria. O primeiro herói era Zumbi e ele me convidou pra escrever. Eu tava no segundo ano da graduação. Então, imagina…
CEARÁ CRIOLO: Estar ontem, então, em Palmares deve ter sido uma experiência e tanto…
YNAÊ: Pra mim, aquilo foi, tipo, surreal. É voltar pro lugar que marca a minha formação que eu entendo como importante. O modo como eu enxergo o mundo. O lugar a partir do qual eu quero escrever sobre história. Pra mim, foi muito importante. Eu já tinha vindo pra Maceió, mas nunca tinha subido a serra. Foi muito forte. Foi entender essa dimensão da experiência humana desses homens e mulheres.
Quando eu subi aquele platô e vi o que eles conseguiam ver, eu pensei: “essa galera era foda!!”. Porque é isso: era a construção de um outro Estado. E isso só reforça como a gente sabe muito pouco e muito mal a história do Brasil. Isso é uma coisa que me incomoda há muito tempo e cada vez mais. Eu trabalho com Cuba, trabalho com Estados Unidos e trabalho com Haiti em comparação com o Brasil, mas aqui a gente tem muita coisa pra recontar. Muita coisa.
CEARÁ CRIOLO: E é desse desejo de recontar a história que te leva à escrita do livro “Racismo brasileiro: Uma história de formação do país”?
YNAÊ: É. Mas tem um livro anterior a esse (“História da África e do Brasil Afrodescendente”), que é de 2017, que também é desse desejo de recontar a história. Mas é um desejo muito específico, em relação ao que parece uma dificuldade de aplicar a Lei 10.639 [que tornou, desde 2003, obrigatório o ensino da história e da cultura afro-brasileira e africana nas escolas desde o Ensino Fundamental até o Ensino Médio]. Eu participei de formação de professores, sobretudo quando mudei pro Rio, e era um hiato. Dei durante muito tempo História da África e os alunos não sabiam coisas básicas.
Alunos da rede pública, da rede particular do alto estrato, da universidade…eles não conheciam o continente africano. Eu perguntava cinco países e eles falavam, sei lá, três. E porque estavam na Copa do Mundo de Futebol, sabe?
Eu fazia a mesma atividade independente da idade, que era trabalhar com o mapa pra eles decorarem que país fazia fronteira com qual país. Os alunos de 12 a 45 anos amavam essa atividade porque era, por um lado, entrar em contato com esse não conhecimento de “porra, então o Sudão tá aqui?”. As pessoas não sabem.
CEARÁ CRIOLO: Deve ter tido muito choque mesmo porque ainda hoje muita gente não sabe, por exemplo, que o Egito fica na África. Ou que o Marrocos é um país africano…
YNAÊ: Exatamente! Eu dei aula numa escola de elite do Rio de Janeiro, pro sétimo ano, ou seja, pra alunos com idade média de 12 anos, e o período que eu pegava da dita “história universal”, com muitas aspas, era o Império Romano e a Idade Média. Tudo na Europa. Mas eu sempre dava o meu jeito e colocava a história da África. Porque é isso: a Lei 10.639, se você falar de alguma questão relativa à África em qualquer momento, já tá valendo. Aí, as escolas trabalham o Egito no sexto ano e só depois, no segundo ano do Ensino Médio, trabalham a independência do continente africano. Isso é muito pouco!
Minha ideia era trazer as questões relativas ao continente africano em todos os anos, pra que esses alunos criassem o mínimo de repertório. E, ao mesmo tempo, desenvolvessem uma percepção que nessa faixa etária nem sempre é óbvia, que é a da simultaneidade. Ou seja: tá acontecendo isso na Europa, mas o que tá acontecendo na África? E na América? E na Ásia? Essa sempre foi uma preocupação minha.
Uma vez, eu decidi começar um estudo de África tradicional. Primeiro, eu queria entender o que eles sabiam do continente africano. Me deparei só com estereótipos: morte, savana, “O rei leão”… Eu perguntava: “vocês nunca estudaram nada sobre o continente africano?”. Eles falavam: “não, Ynaê! Um absurdo, né?”. E eu falava: “mas vocês não passaram três meses estudando o Egito no semestre passado?”. E eles se assustavam. Então, o Egito continua não sendo apresentado como uma sociedade africana e sim como uma sociedade que, por acaso, está na África. Isso é uma coisa que o Cheikh Anta Diop [historiador senegalês] tá falando há décadas…
O livro que eu escrevi em 2017 [“História da África e do Brasil Afrodescendente”] tinha esse recorte: vamos ampliar o repertório. Se vocês não sabem sobre a África, então eu vou contar umas histórias sobre a África. Na Antiguidade, na Idade Média, na Idade Moderna, no Contemporâneo, no Brasil… A ideia é essa: são capítulos curtos pra que o professor e a professora possam usar. Por exemplo: se eu tô dando a matéria de Império Romano, qual foi a maior guerra que o Império Romano travou? Contra Cartago. O Cartago tá na África, gente! Você não precisa fazer um movimento muito mirabolante pra colocar as histórias africanas dentro da história universal! Da dita “história universal”, enfim. Então, esse livro foi mais propositivo nesse sentido.
Já o segundo livro, o “Racismo Brasileiro”, eu escrevi em 2021 basicamente. Mas a ideia nasce em 2020, com o assassinato do George Floyd. Mas menos, infelizmente, pelo assassinato em si, porque eu sou especialista em História das Américas e sei que Georges Floyds já morreram e outros vão morrer na história dos Estados Unidos, e mais pela repercussão no Brasil como se isso não tivesse nada a ver com a nossa história. Todo mundo revoltado, indignado, “Black Lives Matter” e num sei o que lá, mas não se olhava pra cá [onde um jovem negro é morto a cada 23 minutos].
Então, teve, ao mesmo tempo, um “nossa, que absurdo” e, das pessoas que tinham um olhar um pouco mais crítico, e aí são pessoas sobretudo brancas, vinha o questionamento: “por que vocês, negros, não fazem isso aqui também e não fazem essa mobilização como os Estados Unidos fazem?”. Aí, eu falei: “ah, eu vou escrever um livro que mostra que a história do Brasil é uma história de racismo do começo ao fim.”
O fato de eu ser professora de escola faz com que eu tenha uma compreensão do arco da história do Brasil relativamente extensa. Por mais que eu seja especialista em século 19, eu tenho bastante noção dos outros períodos. Eu tava no meio da pandemia, meu segundo filho tinha meses e foi uma coisa meio doida. Mas eu lembro que acordei de madrugada, entre uma mamada e outra do Antônio, e falei: “eu vou escrever esse negócio”. A ideia inicial era mais enxuta. Era pra ser um livro de bolso. Falei com o Leandro, da [editora] Todavia, ele topou e eu comecei a escrever. O assassinato do George foi em maio e em junho eu já tava com o contrato assinado com a Todavia.
CEARÁ CRIOLO: Foi bem rápido, então… Porque, via de regra, um livro como esse leva bastante tempo pra ficar pronto…
YNAÊ: Foi rápido. Esse livro foi escrito em nove meses. Foi uma gestação. Eu brinco dizendo que foi meu terceiro filho. Eu me organizei pra escrever e comecei pelo o que eu sabia menos. Mas aí tive Covid no fim do ano [2021] e pedi à editora pra suspender os prazos porque não sabia como que ia ser. Era a época em que não tinha vacina, nada… Era um momento muito tenso. Eu entreguei no comecinho de 2022. Foram nove, dez meses de escrita. Claro que antes disso eu li. Tem uma dimensão de que o século 19 é um lugar fácil pra mim, embora eu também tenha lido bastante coisa. O problema foi quando fui escrever sobre a República. Porque uma coisa é você falar sobre racismo durante a vigência da escravidão, outra é falar quando não tem escravismo.
CEARÁ CRIOLO: Esse, inclusive, é o grande debate de hoje entre as teorias defendidas por Silvio Almeida [de que o racismo é estrutural] e Muniz Sodré [de que o racismo é intersubjetivo e institucional]…
YNAÊ: Exatamente. E eu fiquei muito mal impressionada com a historiografia sobre a República. Eu vi que eu ia comprar uma briga. Isso foi uma coisa que me paralisou em alguns momentos. Os maiores nomes da historiografia da História Política brasileira não abordam o racismo no período republicano. Como que você faz qualquer análise sobre a história brasileira a partir de 1989 e a questão racial não está posta? Isso me paralisou. Eu ficava pensando: “o que será que o autor tal vai falar do que eu vou escrever?”. Mas as pessoas que eu pensava que fariam as piores críticas foram as que melhor receberam o livro.
No geral, eu tive uma surpresa bem ruim com a historiografia sobre a República. Na primeira República, a gente tem mais coisas por conta de quem trabalha com pós-abolição. Quem trabalha com história política no Brasil, não trabalha com questão racial. E a história política é quem dita as regras de como a gente ensina história no Brasil. Os grandes marcos não abarcam as questões raciais. Você puxa de vez em quando, quando é interessante. Isso foi me deixando emputecida. Eu cheguei a cogitar cortar o livro e não chegar no século 20, porque eu não sou especialista nesse período. Mas aí foda-se. Se não tem produção, não tem. E eu vou falar que não tem. Ou que tem pouco. Ou como tem. Enfim.
Pra mim, ficou ainda mais chocante quando eu fui estudar a Ditadura, que, curiosamente, foi um tema que eu nunca quis estudar. Porque se comprovou a sensação que eu tinha: de que a Ditadura parecia que foi o momento em que as pessoas brancas entenderam que tinha violência no Brasil pelo Estado. É como se tivesse sido o único momento. Começou e acabou ali. Eu consegui algumas dissertações e teses de historiadores negros e historiadoras negras que me ajudaram a organizar como eu iria falar sobre. Mas a ideia sempre foi essa: pontuar que o Brasil é um país racista desde o momento em que a gente tem a chegada dos portugueses aqui, mas sobretudo a partir dessa escolha de 1822, de uma construção de um estado nacional. Porque é uma nação e aí você pode inventar o que você quiser. E a invenção e a proposta que se fez foram as de manutenção do sistema abertamente racista e escravista naquele momento. Então, esse foi o mote que organizou todo o livro.
Eu fiquei bem mal escrevendo esse livro. Eu ainda não sabia que ia ser o final do bolsonarismo, mas era sempre uma coisa…Eu via televisão, os jornais, e pensava: “gente, como a gente chegou até aqui?”. Depois de escrever o livro, é óbvio que eu sei como a gente chegou até aqui. O bolsonarismo não é uma novidade.
CEARÁ CRIOLO: Só tem outro nome…
YNAÊ: Exatamente. Não pode ser compreendido como algo episódico na história brasileira. Mas eu também não podia não falar das lutas negras. Então, eu tive que criar algum sistema na minha escrita pra que eu consiga colocar personagens negros que foram fundamentais. Óbvio que eu não ia dar conta de todos, nem era esse o objetivo, mas que a disputa aparecesse. Você tem uma luta que é macro, mas você tem um acúmulo de lutas que é micro. Então, geralmente, eu abro ou fecho com um protagonismo negro e no meio eu quero mostrar contra o que esses homens e mulheres estavam lutando. É algo muito maior e o foco é nas ações do Estado, de uma elite que tá muito vinculada a esse Estado.
CEARÁ CRIOLO: A referência da capa a “O Quilombismo” é intencional?
YNAÊ: Claro! A primeira capa que veio, eu falei “não”. Eu mandei o Quilombismo, do Abdias [do Nascimento], como referência e falei: “cara, ele ta brincando com a bandeira do Brasil, com a ideia de brasilidade e com afrocentrismo. Pensem a partir daí”. Então, você não fez uma leitura equivocada. Isso foi bem proposital.
CEARÁ CRIOLO: E aí você divide o livro em três partes. Como o leitor recebeu a obra? As pessoas compreenderam a pegada do livro?
YNAÊ: Eu acho que sim. O que eu mais recebi foram feedbacks positivos, tanto de pessoas negras quanto de pessoas brancas, no sentido de que “eu nunca tinha parado pra pensar nessa perspectiva”. Pra mim, um dos maiores elogios foi do Nei Lopes, que falou: “eu adorei seu livro porque tinha coisa que eu sabia e você disse de um jeito que facilitou a compreensão.”
CEARÁ CRIOLO: Te pergunto isso porque lembro do meu período de estudante, dos livros de História que eram calhamaços, com uma escrita maçante, e o teu livro é o oposto disso. Eu sou um desses leitores que te diria que nunca se deparou com uma narrativa como essa… E o fato de você ser uma mulher negra escrevendo sobre racismo dá um simbolismo maior a tudo… Porque é a figura da mulher negra, que foi quem mais sofreu violências no período escravista, agora escrevendo sobre ele. Isso ressignifica muita coisa. E eu imagino que você tenha passado por momentos de invalidação da sua voz enquanto mulher negra…
YNAÊ: Opa! Eu lidei muito com isso no mestrado e no doutorado. O doutorado, especialmente, foi muito difícil. Eu tive questões com o meu orientador. Mas acho que eu também tive alguns escorregões de ingenuidade, sabe? Muito eu aprendi com meu orientador de ter um olhar macro, de querer entender como o Estado está sendo organizado, de como as elites estão operando pra fazer valer as próprias vontades, em fazer o sistema rodar. Mas teve um momento em que eu falei: “olha, eu sou uma mulher negra que escreve sobre escravidão e eu nunca vou falar do mesmo lugar que você [um homem branco].”
Eu precisei de alguns anos de terapia pra chegar e falar: “ó, não! Eu não vou fazer o que você quer que eu faça. A minha abordagem sobre a história da escravidão é essa: vai ter que ter África, vai ter que ter pequenas histórias de amor… Vai ter que ter! Senão, pra mim, não faz sentido”. E eu fico entre duas escolas da historiografia que brigam, porque eu acho fundamental uma perspectiva macro, mas não dá pra perder o chão da tessitura e da organicidade da história. Hoje, isso é quase um mantra pra mim. E eu tentei trazer isso pra esse livro. Tudo o que eu escrevo, eu tento trabalhar esse jogo de escala. Porque uma perspectiva não invalida a outra. Pelo contrário. Elas se complementam.
CEARÁ CRIOLO: É por estar nesse lugar que você se diz muito crítica ao currículo escolar que a gente tem hoje pra História?
YNAÊ: Ah, sim! É um currículo eurocentrado, né? Quanto tempo a gente fica estudando a história da Europa? Se a gente colocar em proporção, eu diria que pelo menos 60% do nosso currículo é história da Europa.
Eu sou crítica primeiro do ponto de vista dos conteúdos. Eu acho que os conteúdos estão mal organizados. E estão organizados a partir de uma premissa racista. E acho que a gente não aprende, a não ser pelas ações pontuais dos professores, sobretudo negros, a gente não aprende a pensar historicamente. A gente não é ensinado a olhar pro passado e tentar entender que nesse passado existem disputas. E, por mais que a gente tenha um vitorioso, e geralmente esse vitorioso é um homem branco, a gente tem uma cacetada de lutas. E essas lutas também vão tensionar.
Eu não gostava de História do Brasil porque eu achava que História do Brasil chata. Não acontece nada. Não é assim que a gente aprende? Ela é ensinada de uma maneira que parece que nada muda. Mas a História do Brasil é interessantíssima. E profundamente violenta, que é uma coisa que eu tentei trazer nesse livro. Então, a minha crítica é essa: a gente tem pouco repertório sobre histórias não europeias.
O que a gente sabe sobre outros países americanos? Os nossos vizinhos? O que a gente sabe sobre o continente africano, ainda totalmente cheio de estereótipos? E é um continente que nos formou tanto quanto ou mais do que a Europa! Tanto que a gente se refere como “africanos” e não pelos termos como esses povos se reconhecem no mundo. Mas o que eu quero é meio revolução, né? Enquanto ela não vem, a gente vai procurando outros mecanismos.
Escrever esse livro me ajudou a sistematizar muita coisa. Depois que eu escrevi, eu olhei pro departamento do qual eu faço parte e falei: “caraca!”.
CEARÁ CRIOLO: Você é a única professora negra?
YNAÊ: Óbvio, né?! Eu sou a única professora negra do maior departamento de História do país! E a segunda na história de um departamento que tem 50 anos. É muito bizarro! Tem hoje eu e mais dois professores negros. Eu sou a única mulher negra, mas tem outros dois homens: um mais velho, que está perto de se aposentar, e outro com a minha idade. São 70 professores. É enorme.
Um dia, eu queria montar alguma coisa e fui olhar as ementas das disciplinas. Fui olhar as ementas de teoria e não tinha nenhum homem que não fosse europeu citado. E tinha uma que não tinha nenhuma mulher. Eu falei: “porra, bicho, as pessoas não estão nem lendo o que tá sendo publicado? Nem pra não pegar mal não vão colocar um Frantz Fanon [filósofo martinicano] ou um Achille Mbembe [filósofo camaronês]?”. Então, meu livro foi melhor recebido por esse público mais amplo, sobretudo por um público mais jovem.
CEARÁ CRIOLO: O departamento recebeu bem o livro?
YNAÊ: Olha…nunca foi dito nada. Mas a história do racismo no Brasil é uma história dos não ditos. Então, talvez, tenha um certo incômodo porque os alunos gostam de mim. Tem uma coisa: eu sou a única professora negra numa universidade que tem cotas. Tem uma coisa de representatividade. Eu vejo que as meninas olham pra mim e compreendem que também podem estar ali. É importante, é emocionante, mas tem um peso. Eu sei que é importante e eu tenho que fazer o que eu posso pra, inclusive, transformar a vida dos meus alunos, sobretudo negros, em algo um pouco mais tranquilo. Eu tenho um grupo de estudos que só tem alunos negros. Os meus orientandos são 100% negros.
CEARÁ CRIOLO: Você enxerga isso como algo positivo? Não pode acabar sendo uma armadilha?
YNAÊ: Sim e não. Eu acho que tem uma coisa, sobretudo na graduação, de uma busca de acolhimento. Eles querem um lugar que eles não precisem explicar o que acontece. Eles precisam disso. Porque tem várias situações de racismo entre colegas, com professores, com a instituição… Então, eu acho que comigo tem aquela coisa do “com a Ynaê, eu não vou precisar o que tá acontecendo porque ela entende e vai tentar atuar pra ajudar.”
Na pós-graduação [cursos de mestrado e doutorado], eu acho interessante, mas, ao mesmo tempo, fico um pouco preocupada porque eu também quero que pessoas brancas estudem a questão racial e tenham a questão racial como central. Porque senão a gente mantém a ideia de que o racismo é um problema do negro no Brasil.
É uma construção. Eu já entendi que não vou ver as grandes mudanças. Mas espero que daqui a 100 anos elas possam existir. Porque a universidade é um espaço que nos diz o tempo inteiro que a gente não devia estar lá.
CEARÁ CRIOLO: Quando esmiúça a Primeira República no livro, você fala em “arquitetura da exclusão”. Existe alguma diferença dessa arquitetura hoje pro que você vê no decorrer da história?
YNAÊ: Eu acho que é uma máquina de moer gente ainda. Eu tento mostrar no livro que o racismo é historicamente determinado. O racismo do século 19 não é o mesmo do século 16! Mas ele tem uma dimensão estrutural que é a organização hierarquizada da sociedade pelo atributo racial, pela pertença racial dos sujeitos. Isso não mudou na história do Brasil e, na minha percepção, se mantém.
Agora, eu acho que a gente tá num momento agudo da história, porque a gente nunca teve tanto debate público sobre essa questão. Tantas vozes, tanta produção. E isso tá vinculado, inclusive, à tecnologia. Quem permite que isso aconteça são as redes sociais, que retiram os grandes monopólios de fala e geram uma fissura.
Aquele Big Brother Brasil da Karol Conká [em 2021] foi uma das experiências de racismo mais perversas da história do país! O que fizeram com aquela mulher… E a ideia era exatamente “estamos sendo antirracistas”. Então, a gente tá num momento muito crítico por isso: por um lado, a gente tem uma criação muito significativa de repertório, muita gente falando, muita gente se descobrindo negra… Porque a gente é criado para não ser negro, a não ser que você seja preto da pele retinta… E, mesmo assim, muitas pessoas, do ponto de vista político, não vão se afirmar nesse lugar porque a tônica do Brasil é a da miscigenação pacífica, é a democracia racial. Essa é a estrutura do país! A gente não pode achar que isso é pouco. E a gente também não pode achar que isso não diz respeito às pessoas negras.
Muita gente me pergunta: “por que as pessoas negras se curvaram a isso?”. Porque é muito melhor você viver num país pacífico do que num país em guerra. E o que a gente vive é um país em guerra. Guerra racial. É muito melhor eu acreditar que o problema tá comigo do que acreditar que o problema tá numa estrutura e quase não importa o que eu faço.
CEARÁ CRIOLO: E ainda tem a perspectiva de: se eu declarar guerra, vou declarar guerra contra quem? Vai ser só eu lutando?
YNAÊ: Exatamente. Exatamente. Eu acho que a gente tá nesse momento de criação de repertório. Mas tem uma questão aí que é o capitalismo, né? Acho que a gente tem que tomar muito cuidado com as possibilidades de caminho que o debate racial pode levar. Eu acredito que a luta antirracista é revolucionária e pra mudar o tipo de sociedade que a gente vive. Mas são muitas camadas. Muitas.
Tem uma Ynaê que foi ver o filme da Viola Davis e vibrou. Eu não quero saber se tem erro histórico ou não. Isso não me importa, mesmo eu sabendo quais são os erros. Não importa! Eu quero ver uma mulher negra na tela, dominando e controlando um exército contra a escravidão. Eu quero ver! Não quero saber se tem erro, porque a gente viveu uma ausência de representatividade a vida inteira!
Eu só fui ler um livro em que me senti contemplada com uma personagem, do tipo “ah, podia ser eu e ela vive questões parecidas comigo”, aos 34 anos, com “Americanah”, da Chimamanda [Adichie, escritora nigeriana]. E eu sou uma pessoa que lê bastante. Então, demorou muito.
Ao mesmo tempo, eu tenho muito medo de transformarmos a luta antirracista em mercadoria. Porque aí a gente perde. No que a gente é totalmente cooptado pelo capitalismo, a gente perde. Porque o capitalismo é uma estrutura de exclusão. De marginalização. Então, a ideia de um topo significa que tem base. Pra alguém estar no topo significa que alguém tá lá embaixo. E esse tipo de sociedade não me interessa.
Eu tenho falado cada vez mais: é uma revolução que a gente precisa fazer. Não sei qual é o modelo de revolução. E eu acho que o que pode fazer isso, inclusive pelo fato de ser estrutural, é o antirracismo. Porque o racismo é anterior à construção do capitalismo. Não tem como você ter uma sociedade igualitária do ponto de vista racial dentro de uma estrutura capitalista. Não tem. É historicamente incompatível. Ao mesmo tempo, eu não sei exatamente qual o caminho, mas nós, pessoas negras que temos a possibilidade de sermos escutadas dentro dessa estrutura que também elege quem fala, quando fala, como fala e por que fala, a gente tem que estar atento a tudo isso.
A gente tem que ter um comprometimento sério com a causa. Não se deixar tanto levar por seduções do sistema, que estão aí. Obviamente que todo mundo quer reconhecimento, mas tem uma dimensão do coletivo e de transformação que essa estrutura não permite que exista. A gente tem que estar atento. E estar atento também que muita gente veio antes da gente. E a história do Brasil é uma história de descarte sistemático dessas pessoas!
CEARÁ CRIOLO: Você citou uma dessas pessoas: Guerreiro Ramos!
YNAÊ: Guerreiro Ramos! Como é que a gente não lê Guerreiro Ramos? Eu comecei a fazer uma pesquisa sobre intelectuais negros e negras, e esse pessoal já tá propondo uma crítica desde sei lá quando, Bruno! É fundamental fazer esse resgate histórico!
Acho maravilhoso Lélia [Gonzalez, intelectual brasileira] sendo recuperada, Beatriz Nascimento [historiadora brasileira] sendo recuperada…mas ainda é pouco! Meu objetivo agora é pensar esses homens e essas mulheres. Tenho até um projeto com meus orientandos no qual a gente faz isso com gente estudando os Estados Unidos, estudando o Caribe…
Aí é criar repertório mesmo, pra gente entender que tem uma crítica sendo consolidada há muito tempo. Porque como o debate ganhou outro volume, e ainda bem, parece que ele começou anteontem com a ideia de lugar de fala. E não começou anteontem! Ou pela morte do George Floyd. Também não! São momentos fundamentais, sem sombra de dúvidas, mas tem uma história longe. E ter essa noção de lastro é importante. Porque o racismo tira a nossa noção de lastro.
CEARÁ CRIOLO: Qual modelo de universidade você imagina a curto prazo?
YNAÊ: Que eu imagino ou que eu desejo?
CEARÁ CRIOLO: Que você imagina.
YNAÊ: Eu imagino uma universidade com mais alunos negros e alunas negras, por conta das cotas; um crescimento ainda tímido dos professores negros; e uma mudança que passa, sobretudo, por esses alunos, mas também pelos professores.
Esse livro [“Racismo brasileiro”] conta muito pouco pra minha carreira acadêmica. É um investimento que eu fiz como militante, um investimento político e não necessariamente acadêmico. Porque se eu escrevesse um artigo de 30 laudas e publicasse numa revista A1 [de abrangência internacional], isso valeria muito mais do que um livro desses, que, pra mim, é muito mais importante. Então, esse tipo de questão também precisa ser levada para a universidade: quem escreve “para fora” é mal visto. Ou pouco reconhecido. Qualquer coisa que sai um pouco da linguagem da academia muitas vezes não é bem vista pela academia. E isso é grave, porque a academia se encastela e a gente tem que lidar, como eu tive há pouco, com um motorista de aplicativo tentando me convencer de qualquer modo a não acreditar na ciência. Eu queria entender o funcionamento da cabeça dele, mas eu não soube sequer chegar nesse homem. E eu sei que ele é uma parcela significativa da população brasileira. O cara falou que não pegou Covid porque decidiu que não ia pegar. Como a gente lida com esse mundo? Não é só publicando artigo. Claro que o artigo é fundamental, porque é fruto de um processo de pesquisa. Mas eu acho que a universidade precisa se abrir ou, pelo menos, reconhecer quem está pleiteando essa abertura.
Eu acho que, na verdade, tem que se abrir mais. A universidade é um espaço profundamente elitista. É um espaço de poder e, consequentemente, de privilégio. Mas que está sendo tensionado pela maior presença negra.
CEARÁ CRIOLO: Você acha que essa maior presença negra é incontornável?
YNAÊ: Não. Porque no Brasil eu não acho que nada é incontornável. Acho que esse é o nosso grande problema. Acho que a gente tá numa janela de oportunidades agora. Se o Bolsonaro tivesse sido reeleito, talvez a lei de cotas talvez tivesse sido suspensa ou aprovada a sua continuidade em outros termos. Mas eu acho que a gente tem que disputar mesmo esse território. E a disputa se faz desde esse aluno se sentir parte desse lugar até a política de bolsa, permanência…
Eu tive uma aluna negra que se matou, sabe? Entrar por meio de cota não é uma coisa tranquila. Eu não fui cotista porque na minha época não tinha cota. Mas é muito difícil, pelo o que eu vejo dos meus alunos. Porque é o tempo todo o mundo falando que [a universidade] não é o seu lugar. Ou, no máximo, um “isso aqui tá bom pra você”. Então, eu acho que a gente ainda tem uma fragilidade. É uma conquista que tem uma capacidade transformadora muito significativa. Não tem como não reconhecer isso. Talvez seja a política afirmativa mais importante da história do Brasil. Mas ainda é frágil. Porque há uma dificuldade, inclusive da esquerda brasileira, de dialogar abertamente com a centralidade da questão racial.
O Ministério da Igualdade Racial era pra estar em todos os ministérios. Tinha que ter uma capilaridade enorme. Mas não tem nem dinheiro! A gente tem que ficar muito atento. Mas eu gosto muito mais da universidade que eu dou aula do que a universidade que eu fui aluna. Isso pra mim é bem sintomático. Pra mim, já é muito importante.
CEARÁ CRIOLO: E é um lapso temporal que não é tão grande…
YNAÊ: Não. É uma geração só, né? Eu fui uma das poucas alunas negras na graduação. Quando entrei no mestrado, era uma das poucas. No doutorado, eu era a única pessoa negra da minha linha de pesquisa, que tinha bastante gente. Isso tem mudado.
CEARÁ CRIOLO: Mas tem também os componentes regionais, né? Em algumas localidades, o debate racial e o debate das cotas ainda é raso…
YNAÊ: Cada vez mais é evidente que a gente não pode falar sobre a questão racial sem trazer a questão indígena, inclusive pontuando as suas diferenças em relação à questão negra. E também não podemos falar da história do Sudeste como a história do Brasil. Quando você chega no Nordeste, são outras dinâmicas. São outras relações raciais que são brasileiras. Mas a gente tá muito pautado pelo eixo Rio-São Paulo, Minas e um pouquinho da Bahia, no máximo. Quando você vai pros cursos de História das universidades do Sudeste, a história do Brasil é a história do Sudeste. Aí tem a tal “história regional”, que é uma expressão que eu odeio. Porque regional é qualquer região!
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Comunicólogo e mestre em Antropologia, é especialista em Jornalismo Político e Escrita Literária e tem MBA em Comunicação e Marketing em Mídias Digitais. Foi repórter e editor dos jornais O Estado e O POVO, correspondente do portal Terra e colaborador do El País Brasil. Atua hoje como assessor de comunicação. Venceu o Prêmio Gandhi de Comunicação, o Prêmio MPCE de Jornalismo e o Prêmio Maria Neusa de Jornalismo, todos com reportagens sobre a população negra. No Ceará Criolo, é repórter e editor-geral de conteúdo. Escritor, foi finalista do Prêmio Jabuti de Literatura 2020.