No mês de maio, as homenagens são para as mulheres mães. O tema da maternidade há tempo tem despertado meu interesse pela complexidade e mitos que carrega. Não sem motivo, estudei-o no mestrado e no doutorado.
Na sociedade abrangente, o mito do amor materno se apresenta como sentimento imanente à condição feminina. Porém, este amor como inato foi totalmente desfeito por Elisabeth Badinter (1985), que acredita ser ele social e historicamente construído.
No exercício da maternidade, o dizer, sentir e fazer expressam contradições e ambiguidades, prenhe de simbolismos relacionados aos imaginários sociais. Vale entender que nem toda mulher tem necessariamente uma pulsão irresistível de ser mãe, de ocupar seu tempo com o/as filho/as. As mulheres mães por mim pesquisadas elucidaram que querem, cada vez mais, viver livremente, instruir-se e administrar suas vidas. Não negam a função de mãe, mas querem vivê-la em liberdade, assumindo-a por amor e não por imposição.
As práticas de maternidade brasileira, desde os tempos coloniais, retraduziram o imaginário em torno da “boa e santa Mãe” (DEL PRIORI, 1993), como também da mãe disciplinada pela medicina social através do Projeto de Higiene que definiu o padrão do que é ser mãe e ser pai, a partir do século XIX (COSTA, 1998). No entanto, outros modelos de maternidade, não hegemônicos, foram experimentados por famílias indígenas, negras, pobres.
A trajetória histórica da vida de muitas mulheres negras tem mostrado que estas, ao assumirem a maternidade, a fizeram com grande influência da cultura e da religião de matriz africana e afro-brasileira. Conseguir criar o/as filho/as, constituir famílias, tem sido um ato de resistência para esse grupo étnico. As mulheres conseguiram revalorizar essas religiões, resistindo e preservando cosmogonias, ritos e símbolos. Daí a importância de analisar outros tipos de maternidade simbólica, como a das mães de santo dentro da Umbanda, com destaque para as práticas socioculturais dessas guardiãs de uma tradição, considerando as ressignificações e as conexões culturais do tempo presente.
Nesse campo religioso, o feminino e a maternidade das sacerdotisas se constituem a partir das referências simbólicas dos orixás e das entidades espirituais que lhes guiam no cuidado, na proteção e nas relações de poder que exercem nas famílias de santo. Por meio deste simbolismo, constroem-se novos espaços de luta contra o sexismo, racismo, de transgressão aos poderes e discursos oficiais que circunscrevem os domínios das mulheres. Partilham o imaginário social e histórico no espaço das festas, giras, cerimônias e rituais. Tal imaginário não se constitui abstratamente. É indissociável das estruturas sociais, econômicas, políticas e culturais da realidade brasileira.
As mães de santo tomam como referências de feminino e maternidade em Iemanjá, Oxum, Iansã, Obá, Nanã, Pomba-Gira e Pretas-velhas, Ciganas e Caboclas e outras. As divindades que acessam são modelos de identificação. Como não poderia deixar de ser, agenciam e incorporam certas características de suas entidades protetoras, tornando-as parte de si.
Em particular na Umbanda, as mães de santo, como guardiãs de uma tradição, tentam manter vivas as heranças culturais e religiosas como parte da função de seus sacerdócios. São zeladoras de entidades, santos, orixás, de divindades, com competência e carga afetiva de fazer o iniciado e garantir-lhe o desenvolvimento mediúnico, conquistando a obediência e o respeito dos filhos-de-santo. Por meio da autoconfiança e do prestígio espirituais, elas, de uma forma ou de outra, contribuíram para que a cultura e a religião afro-brasileiras saíssem do confinamento e ocupassem espaços públicos.
Como autoridade do terreiro, as mães de santo contam com o respeito, a admiração da comunidade do povo de santo e também por parte daqueles que lhes procuram para atender e acolher suas demandas. Elas não só protegem e cuidam. Vão além: convivem com o incerto, o que provoca nelas o poder de criar e reinventar suas práticas na vida cotidiana.
É preciso compreender que embora seja forte o imaginário de que ser mulher é ser mãe, boa e santa, nas religiões afro-brasileiras convivem tanto as representações de bondade quanto de maldade, abrindo-lhes a possibilidade de aproximar essas polaridades da condição verdadeiramente humana e encontrar formas de viver no mundo marcado pela estruturação da classe social, gênero e raça. Assim, a única forma de compreender adequadamente os percalços da função materna é não esquecer a condição feminina da mãe.
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Professora da graduação e do Mestrado em Serviço Social da Universidade Estadual do Ceará (Uece). Assessora Especial de Acolhimento aos Movimentos Socias do Ceará – ASEMOV/Casa Civil.