Representatividade. Miguel é um jovem negro, LGBTQIAP+ e nordestino. Eu me vejo em Miguel e Miguel se vê em mim. Ele foi meu aluno durante meu estágio docência do mestrado no Programa de Pós-Graduação em Comunicação na Universidade Federal do Piauí (PPGCOM/UFPI). Esse período, para mim, foi marcado não apenas por flores e realizações, sobretudo porque vivi esse momento durante a pandemia sanitária-social da Covid-19.
Em 2021, eu trabalhava em três turnos para me manter, pois apenas a bolsa do mestrado não era o suficiente. Pela manhã, assistia às aulas do mestrado; à tarde, ministrava a disciplina de Redação e Prática de Jornal para estudantes de jornalismo da UFPI; e à noite trabalhava como garçom no King Kobra Bar, um barzinho alternativo da zona norte de Teresina (PI).
Boa parte da minha dissertação foi escrita enquanto eu estava no caixa do bar. Muitos clientes ficavam espantados com os livros no balcão e tela do notebook aberta no Word com escritas acadêmicas. Eles me perguntavam como conseguia me concentrar com as músicas do ambiente e fluxo de atendimentos. Eu sorria e dizia que era o tempo que tinha para escrever.
Foi na reta final dessa tripla jornada que me questionei se “servia” para ser acadêmico, para “ser” professor, se iria conseguir… Afinal de contas, a academia e a ciência no Brasil não foram “pensadas” para e por pessoas negras. Nesse momento, quando eu e meus estudantes estávamos encerrando nossa disciplina, muitos me mandaram mensagens, agradecendo pelo processo de troca de conhecimento construído em conjunto e com afeto.
Entre essas mensagens, estava a de Miguel. Ele me fez chorar. Me fez sentir um nó na garganta. Me fez ver que a nossa lutar deve continuar… Miguel escreveu que foi importante me ter como professor. Disse que isso o fez acreditar que ele poderia ser jornalista, professor e pesquisador. Ele pode ter um professor negro, LGBTQIAP+, jovem e macumbeiro. Eu resumi as palavras de Miguel, mas ele escreveu isso de maneira bonita, com uma escrita poética e potente. Eu me deleitava ao ler os textos que ele produzia para a disciplina.
Pessoas negras na pós-graduação
Através dessa experiência, dou corpo, cor e sentido à palavra representatividade. Nós, pessoas negras, fomos segregadas de muitos espaços, sobretudo espaços de poder como a política, a educação e a mídia. Na pós-graduação, isso é gritante. Os cursos de mestrado e doutorado são ocupados, em maioria, por pessoas brancas, seja como docentes ou discentes. Segundo a Liga de Ciência Preta Brasileira, em 2020, a configuração do corpo estudantil da pós-graduação dava-se em 2,7% pretos, 12,7% pardos, 2% amarelos, menos de 0,5% indígena e 82,7% brancos.
Nós estamos ocupando de fato. Esse lugar não foi dado, mas sim conquistado por gerações de lutas. Foi através da mensagem de Miguel e de outros(as) estudantes, principalmente dos(as) negros(as), que eu reacendi meu sonho e compromisso com aqueles e aquelas que me antecederam, com aqueles e aquelas que virão. Eu fui o primeiro da minha família a entrar na universidade pública e na pós-graduação. Isso se chama compromisso ancestral; entender o que a filosofia sul-africana Ubuntu nos ensina: sou porque somos.
Essa mistura do compromisso ancestral com o desejo de fabular e viver em todos os espaços me moveu e me move. Foi na troca com estudantes de jornalismo da UFPI, na posição de professor, que recordei que há menos de dois anos eu estava lá como graduando e não tive referência de um professor no qual eu pudesse me ver. Foi nesse percurso, no contato com Miguel e tantos outros garotos negros e LGBTQIAP+, que tive a certeza da importância da minha pesquisa de mestrado.
Masculinidade negras homoafetivas no Instagram
Na minha pesquisa de mestrado, me dediquei ao campo da produção de subjetividades pela mídia. Não se tratava apenas de um tema ou um objeto de pesquisa. Era sobre minha vida e a vida de tantos outros como eu. Não é segredo que a ciência no ocidente é predominante branca e orientada pela lógica europeia.
Me permiti pesquisar algo que me tocasse. Me posicionei como sujeito-pesquisador-pesquisado, me apoiei em teóricos e teóricas que abordassem essa relação, como os filósofos Gilles Deleuze e Félix Guattari, que me possibilitaram pensar com o anti-método Cartografia. Contudo, não fiz uma cartografia. Fiz outra coisa dialogando com nossos intelectuais negros e negras: Lélia Gonzalez, Abdias Nascimento, Carla Akotirene, Silvo Almeida, Henrique Restier, Malungo de Souza, Lucas Veiga e tantos outros estudiosos que me antecederam.
Os principais resultados da pesquisa apontaram para uma produção de subjetividades de masculinidade negras homoafetivas orientadas por uma relação (des)contínua social, cultural e histórica – reconhecendo o processo de escravização de pessoas negras no Brasil como um vetor em continuidade – na construção de imagens de homens negros ligadas à exposição desses corpos. Duas imagens foram percebidas no material coletado: o “negão” e a “bixa preta.”
O “negão”: a imagem de corpos negros quase desnudos, corpos definidos, malhados ou volumosos, a demarcação do pênis e conotações de hipersexualização. Já a “bixa preta”: corpos diversificados – principalmente magros e gordos – com expressões de feminilidades presentes nas masculinidades.
Aqui, simplifiquei as imagens coletadas e analisadas na pesquisa, mas elas nos ensinam que os modos de produzir, ver e representar as masculinidades negras homoafetivas no Instagram estão ligados a um fluxo de imagens-discursos de corpos negros para serem exibidos e consumidos, mas não postos como singulares e para afetos. Porém, a pesquisa apontou para as pluralidades dos sujeitos que emergidos numa relação que pré-estabelece modelos há um processo de (re)existência e ressignificação para além daquilo que foi imposto para nós, homens negros homoafetivos.
Encerro esse texto, com fé nos Orixás e nos meus guias, sonhando e lutando para me tornar professor efetivo de alguma universidade pública brasileira. Hoje, estou doutorando no Programa de Pós-Graduação em Comunicação pela Universidade Federal do Ceará (PPGCOM/UFC).
A experiência na pesquisa não tem sido um mar de rosas, mas também não tem sido um martírio. Entre gozos e dores, eu sigo porque me toca e me move fazer ciência. Parafraseando Abdias Nascimento – em O genocídio do negro brasileiro – não me interessa estar na academia por estar, e nada reduz a qualidade da minha produção cientifica por falar sobre os meus e sobre mim.
Trago ainda astúcia de Lélia Gonzalez, que nos ensina que negro tem que dizer seu nome e sobrenome se não os brancos colocam um apelido ao gosto deles. Assim, guiados pelo Ubuntu, seguimos fazendo pesquisa e falando aquilo que não foi falado sobre nós, pessoas negras. Estamos ocupando lugares que são nossos. Além de representatividade, estamos (re)construindo realidades.
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Doutorando em Comunicação pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal do Ceará (PPGCOM/UFC). Mestre em Comunicação pela Universidade Federal do Piauí (UFPI) e graduado em Comunicação Social com Habilitação em Jornalismo pela mesma instituição.