Dona Maria. Assim irei chamá-la, para preservar sua identidade. Foi uma senhora que esbarrei no Terminal Rodoviário Eng. João Thomé, em Fortaleza, no Ceará. Ela e eu estávamos embarcando no mesmo ônibus. Ao tomarmos a fila para despachar as malas, percebi que ela estava desorientada, quase saindo da fila. Então, eu a abordei e perguntei se ela estava bem. Ela disse que sim, só não sabia qual fila iria primeiro porque a única vez que tinha viajado para fora de Fortaleza foi aos 18 anos, com amigas, para o Rio de Janeiro. Desde lá, “não sabe o que é viajar.”
Expliquei para ela permanecer na fila, pois primeiro era preciso despachar a bagagem, apresentar a passagem em seguida e embarcar. Assim, ela me escutou. Falador e amante de histórias que sou, e sentindo que Dona Maria queria conversar mais, perguntei qual seu destino final. Ela, empolgada, disse que visitaria um amigo que conversa há quase três anos por redes sociais. “A gente é só amigo”, repetiu várias vezes…
Dona Maria, falava com tanta empolgação sobre esse amigo… Ela compartilhou que conhecia a família dele, que os dois conversavam todos os dias, mas confessou que ao mesmo tempo estava com medo, por se tratar de contato por Internet.
Seguimos conversando. Perguntei quantos anos tinha aquela senhora de pele negra escura, cabelo crespo totalmente branco e bem baixinho, quase raspado, um sorriso grande e enfeitado com um batom cor de vinho, vestida com um conjunto de calça e camisa com estampas vibrantes. Ela, com leveza, chegou mais próximo, cobriu com as mãos a boca e falou, sorrindo: “meia meia.”
Vendo a alegria que trasbordava de Dona Maria de poder viajar e “conhecer um amigo” de Internet me fez pensar no motivo que a fez demorar 48 anos até essa segunda viagem. Como estava eufórica compartilhando sua aventura comigo, lhe perguntei o porquê. Ela disse que teve que ajudar a mãe a criar e cuidar dos irmãos. E quando a mãe ficou debilitada, também ela quem cuidou, sozinha, até a morte, em 2020, com 93 anos.
Nesse momento, atentei que a data do falecimento da mãe de Dona Maria coincidiu com o momento em que ela conheceu esse “amigo da Internet”. Foi nessa fila de rodoviária que percebi o quanto de privilégio/ acessos eu tive em poder, desde os 15 anos, caminhar pelo mundo. Minha primeira viagem foi um intercâmbio para Nova Zelândia, entre tantas outras pelos estados brasileiros que fiz através de bolsas de estudos e apresentação de artigos científicos. Realizei boa parte dessas viagens utilizando políticas públicas como ID Jovem, com passagens interestaduais com 50% ou 100% de gratuidade.
Ao ouvir Dona Maria, me identifiquei como ela por sermos filhos mais velhos. Mas eu nasci homem e num tempo de políticas públicas. Como amo viajar e conhecer lugares e pessoas, e me questionei: “se eu fosse mulher, eu teria conseguido sair de casa e viajar tanto?”.
Foi inevitável associar a história de vida de Dona Maria a duas situações: o tema da redação do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) 2023 – “Os desafios para enfrentar a invisibilidade do trabalho de cuidado das mulheres no Brasil” – e a personagem Luzia, do livro “Salvar o fogo”, do escritor baiano Itamar Vieira Júnior – que pude ler e discutir com outras pessoas negras no 2º Encontro 2023 do Quilombo Literário, em outubro. Luiza, que foi violentada – fisicamente, psicologicamente e socialmente – , era responsável por cuidar da família; era suporte para tudo e todos e tinha que negar seus desejos e sonhos de ir pelo mundo e viver para si…
Dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD), divulgados pela Agência IBGE Notícias, apontam que 92,1%% das mulheres com 14 anos ou mais realizaram afazeres domésticos e/ou cuidado de pessoas em 2022, enquanto 80,8% dos homens desse grupo etário estavam envolvidos nessas atividades. Os homens da região Nordeste mostraram a menor taxa de realização: 73,9%.
Tanto a história de Dona Maria como o enredo da personagem Luiza escancaram a realidade dos dados da PNAD e do tema da redação do Enem, que provocou um debate público, movimentando muitas pessoas para refletir sobre o lugar da(s) mulher(es) no Brasil. Isso no sentido de que os cuidados, postos cultural e socio-historicamente como responsabilidade das mulheres para com os familiares, não tem visibilidade como trabalho (ou melhor, sobrecarga de trabalho). Trabalho esse que possibilita netos, filhos, maridos/ companheiros e outros sujeitos a realizarem atividades sociais como estudar e trabalhar.
O tema da redação do Enem 2023 nos convida e nos provoca a ver realidades silenciadas: quantas Donas Marias e Luzias estão espalhadas pelo Brasil?
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Doutorando em Comunicação pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal do Ceará (PPGCOM/UFC). Mestre em Comunicação pela Universidade Federal do Piauí (UFPI) e graduado em Comunicação Social com Habilitação em Jornalismo pela mesma instituição.