A primeira vez que fui chamado de “doutor” eu tinha sete anos. Talvez oito. Foi uma tia, a quem ofereci um copo de soro caseiro por vê-la esbaforida após um passamento. Ela bebeu, melhorou e disse: “obrigado, dotô Bruno”, como quem me dá um prêmio por tê-la “curado” milagrosamente com uma garapa de água, sal e açúcar, receita aprendida dias antes na escola.
Depois disso, a vida me ensinou que eu não podia ser “doutor” porque no Brasil “doutor” é título de gente importante – médico, advogado e, sobretudo, gente rica. E branca, coisa que eu, um menino negro, de trejeitos afeminados e família pobre e com origem sertaneja, não era. Havia também um outro tipo de “doutor”, aquele que estuda muito e conquista esse diploma na universidade. Mas desse aí eu estava ainda mais distante.
Nenhum dos meus tios era doutor. Nenhuma das minhas tias também. E nenhum dos meus antepassados, assim como não tínhamos nenhum amigo ou agregado da família que fosse. Doutores conhecidos mesmo eram só os médicos com os quais mamãe trabalhava ou de quem papai engraxava os sapatos na principal praça da cidade quando era menino.
O “doutor” dito por tia Alice era, portanto, um sonho. E, no meu contexto de infância, embora minha narrativa não seja a de extrema pobreza e fome, ainda era o de algo impossível. Na verdade, para muitos da minha família, principalmente para os meus tios, sonhar era luxo. Antes disso, era preciso escapar das investidas de um pai bêbado, lavar a farda usada pelo irmão de manhã para ter o que vestir ao ir para a escola à tarde e, em alguns casos, como o de meu pai, trabalhar para colocar comida na mesa. Não havia tempo para ter vontade de ser “doutor”.
Cresci com (sem) essas referências. Ouvindo que era impossível. Ainda mais por ser preto. Já adulto, ouvi a mesma tia me chamar de “dotô Bruno”. Desta vez porque estava nos meus braços, nua e encharcada, após cair durante o banho e ter sido eu a socorrê-la, limpar os ferimentos e dar novamente a garapa de água, sal e açúcar pra se acalmar. Morávamos juntos e Alice era um pouco minha filha. Esta semana, dez anos depois da morte dela, fui mais uma vez chamado de “doutor”.
Estava a trabalho em um evento da advocacia cearense no qual a estrela era um ministro de Estado. Prédio suntuoso e muita, muita gente em ternos de cortes e tecidos finos. Doutores. E eu, durante algum tempo, fui a única pessoa negra dos bastidores da cerimônia (e da cerimônia em si). Por onde passava, os olhares de estranhamento me informavam que eu não deveria estar ali. Que aquele não era meu lugar.
Homens de meia idade, gravatas coloridas e fisionomias sisudas me olhavam da cabeça aos pés. Franziam o rosto, em espanto, como quem diziam para si mesmos: “o que esse negro pensa que faz aqui?”. Nenhum teve coragem de falar isso, pelo menos não que eu tenha ouvido, mas era notável o susto sempre que eu me aproximava. Uma rápida varredura com o olhar confirmava: a julgar pela maioria que lotava a sala, eu deveria estar fora dela. Na portaria, como segurança ou manobrista, quem sabe?
Atravessei alguns salões até o auditório no qual o evento com o ministro aconteceria e eis que ao cruzar com uma senhora, alguém de estatura mediana, ouço: “pois não, doutor, pode passar”. Ela abriu espaço e eu segui, antes agradecendo as gentilezas. Dentro do meu paletó de loja de departamento, meu coração aqueceu e eu lembrei de Alice. Senti como se o “dotô Bruno” dito por ela na minha infância, 30 anos atrás, se apresentasse agora como uma profecia cumprida. Enchi os olhos d’água, em especial porque a mulher em questão era branca e gozava do privilégio de ser “doutora”.
Ela era desembargadora do Tribunal de Justiça do Ceará (TJCE). Uma sujeita conhecida pelo fino trato por onde passa e com todas as pessoas. Alguém que de pronto reconheci por já ter cruzado o caminho algumas vezes quando naquela corte trabalhei, há uma década. Ao dizer “obrigado”, quis também dizer a ela como aquele modo de se referir a mim me emocionou. Mas silenciei. Tive receio de chorar e transformar o que seria uma memória bonita em um vexame. Mas não pude deixar de pensar em como a vida é irônica.
Porque estou eu hoje, aos quase 40 anos, em vias de terminar um doutorado. Aquele mesmo tipo de doutorado que se mostrava o mais distante de todos na minha infância: o conquistado depois de muito, muito, muito estudo. Serei, em breve, se assim for da vontade do destino, “doutor em Comunicação pela Universidade Federal do Ceará”. Ao fim do curso, vou poder, enfim, reivindicar uma titulação que a tanta gente rica é dada sem que qualquer esforço seja feito. Ou que se transformou em um status social, como é o caso de médicos e advogados, que até hoje são doutores sem terem doutorado.
Tem sido obrigatório fazer muito mais esforço do que muita gente para ter um mínimo reconhecimento e, quem sabe, conseguir valer-se dele para conquistar alguma estabilidade na vida. Isso me faz valorizar ainda mais as noites de sono perdidas para escrever artigos, participar de eventos científicos e elaborar minha tese. Estar no ensino superior, principalmente na universidade pública e em especial sendo negro, de família pobre e bicha, é passar por testes de sobrevivência diários.
Penso todos os dias em desistir. Aí, a vida se encarrega de sussurrar no meu ouvido a voz de tia Alice dizendo “obrigado, dotô Bruno”. Ou coloca no meu caminho alguém como essa desembargadora, que para abrir espaço para eu passar não carecia de me chamar de “doutor” e mesmo assim o fez, pela liturgia do espaço no qual estávamos. Por respeito.
Como tem que ser.
(PS: ela talvez não me chamasse de doutor se eu não estivesse vestido a caráter (de paletó), mas aí é outra conversa. Por enquanto, prefiro lembrar de tia Alice. Com afeto)
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Comunicólogo e mestre em Antropologia, é especialista em Jornalismo Político e Escrita Literária e tem MBA em Comunicação e Marketing em Mídias Digitais. Foi repórter e editor dos jornais O Estado e O POVO, correspondente do portal Terra e colaborador do El País Brasil. Atua hoje como assessor de comunicação. Venceu o Prêmio Gandhi de Comunicação, o Prêmio MPCE de Jornalismo e o Prêmio Maria Neusa de Jornalismo, todos com reportagens sobre a população negra. No Ceará Criolo, é repórter e editor-geral de conteúdo. Escritor, foi finalista do Prêmio Jabuti de Literatura 2020.