Estamos carentes de atenção. A preocupação com a saúde mental ou até mesmo o escancaro da nossa rotina exaustiva e desigual em várias camadas do cotidiano foram expostas pela crise sanitária-social durante o processo pandêmico da Covid-19, enfrentado nesses últimos três anos.
“O Brasil enfrenta uma segunda pandemia, desta vez na saúde mental. O impacto emocional das perdas familiares, o sentimento de medo, a falta de socialização e a instabilidade no trabalho aumentaram o nível de estresse e sofrimento psíquico dos brasileiros”, diz nota do Conselho Federal de Enfermagem (Cofen) sobre o aumento dos episódios de ansiedade e depressão no contexto pós-pandêmico.
Atualmente, podemos ver pessoas lotando consultórios terapêuticos e espaços religiosos. Isso pode ser um saldo do trauma causado pelo isolamento social, vivido pela necessidade e medo de não contrair a Covid-19. Talvez esse trauma possa ter levado muitas pessoas a entrar em contato com partes suas que desconheciam ou até mesmo avaliar melhor as presenças e as ausências – comportamentais e de pessoas – em torno das suas vidas.
Terapia – Psicanálise
Tamires Marinho é graduada em Psicologia e possui formação em Psicanálise. A profissional da saúde mental atende presencial em Fortaleza (CE) e também na modalidade online e presta serviço de demanda social, com valores mais acessíveis para dois grupos: pessoas negras e professores(as), considerando as circunstâncias socioeconômicas do(a) paciente que busca seu trabalho.
Na opinião dela, “a pandemia mudou todo um projeto e a forma da gente atender as pessoas. Não só o número de pessoas aumentou, mas a disponibilidade de profissionais e o preço diminuiu. O próprio processo da pandemia revelou muitos problemas psíquicos num Brasil que já era adoecido, mas a gente não falava em terapia. Não se tinha um discurso social para esse tipo de cuidado. Parecia ser coisa de gente rica.”
Tamires ainda pontua que além da demanda baixa para terapia, anterior à pandemia, outras questões como estrutura para o atendimento em consultórios, a falta de pacientes para uma agenda fixa e a precarização do serviço via planos de saúde, implicavam diretamente no acesso à terapia, e, por conta do baixo custo no formato de atendimento online, facilitou mais pessoas fazerem uso da terapia sem precisar pagar clínicas ou taxas para planos de saúde.
Para a psicanalista, esse contexto possibilitou não apenas a ampliação do debate sobre o psiquismo como também a redução de custos para classes baixas acessarem esses serviços. Ela compartilha que o cenário de pandemia e o atendimento online lhe impactaram sobre os aspectos de raça e classe.
“As pessoas que eu costumava atender presencial eram pessoas classe média. Eu nunca tinha atendido uma pessoa negra até o momento da pandemia. Foi ali que percebi que a Psicanálise clássica tinha suas limitações, pois estava pensando um sujeito universalizado – a partir do sujeito europeu e burguês. Quando a gente pensa a atuação da saúde mental com pessoas negras e de classes baixas, precisamos escutar questões que vão desde ter medo de ser linchado na rua e ser acusado de um furto que não cometeu até sofrimentos relacionados à vulnerabilidade financeira”, exemplifica.
Tamires relata que “essas demandas (socioeconômicas) não apareciam na clínica presencial porque as pessoas com essas demandas não tinham acesso à saúde mental. Isso faz com que a gente precise adaptar nosso formato de escuta.”
A psicanalista convoca a pensar que não tem como tratar da ansiedade de alguém se tal problema está ligado a uma necessidade material e financeira. Por exemplo: uma pessoa que não tem a certeza que terá dinheiro para garantir o alimento da família, um moto-boy que trabalha horas e horas com o sentimento de medo de ser acusado de furto ou fato de alguém que sofre por ser o único negro em um espaço branco.
“Quando a gente começa a receber essas pessoas por conta da pandemia, temos que problematizar uma Psicanálise que, por mais que não resolva as questões materiais relacionadas a raça e classe, possa pensar tais relações. Para pensarmos isso, temos exemplos pioneiros de autores e autoras nas relações raciais e sociais em psicanálise, desde Frantz Fanon até Grada Kilomba e Lélia Gonzalez, que se utilizam da estrutura teórica da Psicanálise para dar conta desses fenômenos”, ensina Tamires.
Além da escuta profissional, outros saberes são acessados para a escuta, como terreiros de religiões de matriz afro-brasileira e oráculos espirituais (como tarô, baralhos e búzios).
Chão de terreiro – Umbanda
Calos Moysés é um sacerdote de Umbanda carinhosamente chamado de Pai Moy de Ogum. Ele é dirigente da Casa de Axé São Jorge Guerreiro Ogum Dilê, localizada na região Norte de Teresina (PI). Essa Casa de Axé foi gestada durante o período da pandemia, mas só veio a nascer e abrir as portas este ano, junto com a coroação – torna-se graduado e consagrado Pai de Santo – do sacerdote.
Pai Moy de Ogum relata que “até os guias mudaram na pandemia. Eles passaram a ser convocados a situações mais delicadas, porque o mundo viveu um colapso nervoso, principalmente que o psicológico do ser humano estava fragilizado num grau alto. E os guias tiveram que dar importância a certas situações que antes eram muito simples, por conta do holocausto da pandemia ter trancado a gente, por termos parado as giras, os tambores, as consultas e as curas, eles tiveram que remodelar.”
O sacerdote observa essas mudanças fazendo comparação com as histórias de sua Mãe de Santo – sua mais velha, a que o preparou na Umbanda e para o sacerdócio –, conhecida em Teresina como Mãe Toinha de Oxóssi, uma das sacerdotisas de Umbanda mais velhas e respeitadas do Piauí.
“Talvez por eu ser um dos pais de santos mais novo dos que eu conheço, e considerando a vivência da minha Mãe de Santo, percebo que ocorreram mudanças. O diálogo dos guias para com seus filhos, afilhados e consulentes ficou diferente. Os guias transmutam em hoje em dia numa ligação cósmica cada vez maior. Acredito que a busca pela encanteria, pelo espiritual e a Deus acima de tudo, ficou bem maior. Acho que a fé cresceu demais, principalmente pelo medo de morrer a qualquer momento [contexto durante e pós-pandemia]”, diz Pai Moy de Ogum.
O médium com mais de oito anos de atuação espiritual, compartilha que desde o início da sua jornada recebeu uma função de cuidar das pessoas e aprender sobre a encanteria. Pai Moy de Ogum nos ensina que os guias espirituais, sobretudo o guia de trabalho – nome dado a entidade chefe de um terreiro de Umbanda – de um Pai de Santo, vem para orientar e ajudar as pessoas, e que a conversa e a orientação com eles fazem parte das práticas de um terreiro de Umbanda.
O sacerdote explica que a maioria das pessoas procura as entidades “para serem ouvidas”. “Nós, consulentes, que eu já fui, antes de assumir as funções de Axé, buscamos orientações para sermos direcionados. Isso independente da entidade que esteja ali para ouvir e orientar. Os guias em suas personalidades múltiplas têm a função com seus pensamentos e situações da vida. Quando a gente chega num encantado, a gente percebe que tem um auxílio, mas nós que tomamos as decisões da nossa vida”, detalha.
A atenção e amor dos guias, segundo Pai Moy de Ogum, dão acalento e colo para quem os buscam. O sacerdote também partilha que eles, os encantados, ajudam a lapidar nossos sentimentos e compreender as situações na vida como fases, que fazem parte da trajetória de vida e do processo de amadurecimento. “Os guias são conselheiros. Nos ajudam a passar pelas dificuldades da vida. Nós, humanos, vemos os guias como seres superiores, com características fortes, que nos motivam, fortalecendo os pensamentos e a alma. Mas a chave de tudo isso é o amor. O que as pessoas buscam na escuta é o amor”, externa Pai Moy de Ogum.
Cartomancia – Tarô
Enock é um cartomante do interior do Piauí. Ele se compreende como bruxo natural, estuda magia, astrologia, ervas e cristais há anos. Com seu conhecimento, abriu uma loja virtual durante o período da pandemia para a venda de artesanato esotérico. Além dos produtos, há quase quatro anos oferece consultas com oráculo de Santa Sara e tarô.
“Iniciei meus trabalhos com terapias naturais através de atendimentos com a massoterapia holística e reiki. Durante o período de isolamento, me privei de trabalhar e coloquei em prática todo conteúdo que havia reunido, me dedicando inteiramente à minha formação em baralho cigano e tarô. A partir daí, criei o perfil Bruxo da Terra, onde posso unir minhas terapias aos meus trabalhos de artesanato esotérico, variando desde peças de barro e bambu, a amuletos e cristais”, conta.
Sobre o tarô, Enock explica que as cartas são ferramentas “para enxergarmos nossa própria vida como uma porta, e não somente como janela, para que o acesso a nossa essência seja liberto. A cartomancia, assim como a busca por novas mancias, cresceu bastante nesse período de pandemia. Muitas pessoas adoecidas mentalmente buscaram muitas formas para se aliviar, buscar se acalmar e diminuir a ansiedade. As mídias sociais passaram a ofertar mais esse tipo de serviço. O tarô sempre foi associado a um atendimento presencial e recentemente aumentou o atendimento online. Hoje, nas redes sociais, é normal a gente ver pessoas trabalhando através de perfis.”
O cartomante ainda ponta que a disseminação da cartomancia nas redes sociais tem auxiliado no processo de normalizar esse tipo de consulta, pois as pessoas se sentem mais confortáveis para buscar atendimento com cartas. Porém, Enock chama atenção para o fato de que essa ferramenta é utilizada há séculos em culturas e povos distintos.
Na visão de Enock, a cartomancia pode ser entendida como uma terapia, pois possibilita a pessoa ouvida poder enxergar os problemas ou questionamentos do dia a dia por uma lente mais ampla e externa à visão do consulente. Para Enock, o tarô é um facilitador que guia o consulente a partir da sua própria percepção de mundo e experiências a compreender e encontrar respostas para seus dilemas pessoais, amorosos, financeiros, dentre outros campos da vida.
A desmitificação do tarô é explicada por Enock. Segundo o jovem bruxo, “ao contrário do que muitas pessoas pensam, o tarô não exige um dom, mas sim dedicação, prática, respeito e conhecimento.” O cartomante aconselha aos que desejam buscar essa ferramenta a estudarem como funciona a prática para, assim, escolherem um(a) cartomante qualificando(a) para atendimento.
Enock detalha como funciona a lógica do tarô: “ele, como oráculo, é uma ferramenta neutra. O tarô não julga nossas ações, dizendo o que deve ou não ser feito. Isso vai da ética profissional de cada cartomante de responder certas perguntas, como por exemplo, questões de terceiros que o consulente pode trazer. O tarô também pode ser utilizado para descobrir traumas ou barreiras que você não percebe que limitam o consulente a crescer em determinada área da vida. O processo de escuta vai muito além de interpretar uma mensagem e de ser um canal para a mensagem, mas sim saber como receber determinado conhecimento e absorver as orientações.”
Ele compartilha que a maioria das pessoas que não tiveram contato com o tarô acreditam e estereotipam a cartomancia enquanto adivinhação e, na verdade, “o tarô é uma jornada de autoconhecimento, um mergulho ao nosso íntimo, a fim de trazer à superfície as respostas que estão ocultas na nossa alma, no nosso coração, nas nossas ações e nosso dia a dia. Com o tarô, temos a oportunidade de ampliar nossos horizontes e enxergar que colheita temos dentro de nós”, afirma Enock.
Estamos carentes de atenção
A Covid-19 e todas as problemáticas causadas por ela trouxeram traumas coletivos. Escutar se tornou um desafio que requer atenção, seja na escuta de nós mesmos – emoções, sentimentos, tempo e corpo –, seja na escuta das pessoas que nos rodeiam. Todos os lugares de escuta são bem-vindos quando auxiliam as pessoas a exercitarem uma melhor relação consigo e com o mundo.
Apreendemos com as experiências de Tamires, de Pai Moy de Ogum e de Enock que a escuta atenciosa é um caminho valioso para sarar feridas causadas pela pandemia (que ainda vivemos). Em cada um dos conhecimentos compartilhados pela psicanalista, pelo sacerdote e pelo cartomante, encontramos a centralidade de entender as particularidades de cada pessoa. Aprendemos que a escuta se trata de atenção, afeto e conhecimento.
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Doutorando em Comunicação pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal do Ceará (PPGCOM/UFC). Mestre em Comunicação pela Universidade Federal do Piauí (UFPI) e graduado em Comunicação Social com Habilitação em Jornalismo pela mesma instituição.