Na verdade, seria “a patologia social do branco brasileiro”, como dizia Guerreiro Ramos. E como o Ceará faz parte do Brasil, diríamos que sim, seria. O desejo de provar sua origem europeia por muitos brancos cearenses é doentio, patológico, beirando a esquizofrenia. Tal anseio é tamanho que se nega o processo histórico das migrações e o cruzamento ocorrido entre os diferentes povos. É negar a brasilidade. Branco no Brasil é ser estrangeiro.
A história das relações raciais no Brasil é marcada pela luta política da implantação da branquitude em detrimento dos outros povos. O projeto de nação criado em nosso país não irá contemplar índios e nem negros. Principalmente estes últimos. Estes, serão entregues à própria sorte.
Na luta política das relações raciais no Brasil e no Ceará, os descendentes de africanos sofreram com o processo de invisibilidade e de embranquecimento. No Ceará, na disputa ideológica de elaboração de uma identidade do cearense, o negro é um grupo social sempre invisibilizado e esquecido. Encontramos citações em artigos do Instituto Histórico do Ceará e jornais locais referências ao português, ao galego, árabes e, recentemente, aos nórdicos, vikings.
Considero que esse silêncio e invisibilidade do negro na história do Ceará é proposital e fruto de posturas racistas de quem produziu tais estudos, causando o que o sociólogo português Boaventura Sousa Santos chama de “epistemicídio”. O que é o epistemicídio?
Epistemicídio é a morte que começa antes do tiro.1 A invisibilidade da produção de conhecimentos, história, cultura e vivências dos negros e negras do Ceará é o primeiro passo para a morte do corpo, já que a alma está vazia. No jogo político das relações raciais no Ceará, tem-se aqui um ato de perversidade da branquitude. Mas sabe-se que isto é uma invenção. Uma outra abordagem da história pode romper esse silêncio proposital.
Rompendo o silêncio e a negação2
Na busca de romper o silêncio sobre a vida cotidiana dos negros escravizados, libertos e livres no Ceará do século XIX, me deparo com uma afirmação do historiador Geraldo Nobre3, que considero de uma importância ímpar e que merece uma maior atenção, a saber: “Daí resultou que o povoamento e a colonização do Ceará apresentou, em seus começos, uma característica possivelmente única no Brasil: a de dever-se a uma população já miscigenada, com forte ascendência africana…”.4
Considero esta informação valiosíssima para nossa temática. Primeiro, revela algo óbvio: temos em nossa origem “uma população já miscigenada”. Contudo, esta obviedade não é considerada ou é propositalmente esquecida, pois dizer que somos miscigenados não impede as discriminações sofridas pelos negros cearenses no presente nem explica por que os cearenses de pele mais escura se encontram em situação socioeconômica claramente desigual a daqueles de pele mais clara. E segundo: a de que somos uma “uma população já miscigenada, com forte ascendência africana.”
Esta afirmação aponta para uma realidade sobre a formação do povo cearense que põe em cheque o discurso de superioridade e de uma possível “pureza racial” dos brancos deste Estado, que costumam afirmar que possuem descendência direta dos portugueses ou de outros europeus.
Toda negatividade intencionalmente elaborada nos livros sobre os negros do Ceará (que negros são inferiores, são naturalmente escravos, são incapazes de produzir cultura, são preguiçosos e que são parte de uma raça de degenerados) atinge os cearenses como um todo, pois, segundo a informação de Nobre, somos, desde a origem, um povo miscigenado “com forte ascendência africana.”
Em outro livro5, bem anterior ao citado acima, Geraldo Nobre fundamenta essa afirmação com uma rica documentação, revelando uma presença negro africana e crioula expressiva no processo de construção do que podemos chamar de sociedade cearense. Houve uma presença forte de africanos por aqui. E essa forte presença não deve ser entendida somente do ponto de vista numérico, mas também considerando que a presença desses africanos os levaram a produzir, reelaborar e reproduzir suas culturas nesta região, disseminando-a por toda sociedade cearense.
Culturas estas materializadas nas festas do Congo, nos sambas de umbigada, na burrinha, no vocabulário ainda presente entre nós – palavras provenientes dos idiomas quicongo e quimbundo. Ações de estratégias e resistência à escravidão, que tinha como fonte de referência a própria cultura de origem desses africanos, a exemplo de se negarem ser separados dos seus, evitando a quebra de laços afetivos – entre a cultura tradicional africana a ideia de pertencimento ao grupo6 era/é algo valioso.
Ao contrário do que se pensava (e creio que ainda se pensa), a presença negra e mestiça em muitas vilas da província do Ceará era bem superior à de brancos. Os dados que apresento em um estudo anterior7 revelaram, a partir dos censos de 1808, 1810, 1813 e 1872, uma realidade radicalmente oposta à que “naturalmente” somos levados a perceber. Tal resultado rompe com o silêncio intencional a que a população negra foi condenada, já que os estudos oficiais referentes a negros no Ceará, durante um longo tempo, se limitaram a trabalhos relacionados a dois assuntos: escravidão e abolição.
Esta análise dos censos da população do Ceará para os anos de 1804, 1808 e 1813, que procurou somar os números dos pardos, mulatos livres, pretos e pardos cativos, pretos livres e cativos, mostrou que a quantidade destes foi bem superior ao da população branca livre nas respectivas vilas analisadas.
Portanto, fico a pensar, ao escrever sobre esses fatos a partir de referências e documentos históricos, como essas fontes que estão no Arquivo Público do Estado do Ceará, Biblioteca Pública Menezes Pimentel e Instituto Histórico do Ceará falam, se comunicam sobre a história, formas de resistências e vivências desses africanos e negros e negras cearenses durante o povoamento desta região.
Mas não consigo imaginar esses documentos revelando essa cultura nórdica presente na identidade do cearense. Isso nada mais mostra que tudo não passa de desejo de um neto que quer “provar” por quaisquer meios a teoria do avô.
1 Disponível em: https://www.almapreta.com/editorias/realidade/epistemicidio-a-morte-comeca-antes-do-tiro
2 Este texto é parte de um artigo: Os mais interessados é que lutaram: a abolição no Ceará.
3 Historiador, pesquisador e ex-diretor do Arquivo Público do Estado do Ceará e membro do Instituto Histórico do Ceará.
4NOBRE, Geraldo da Silva. Historicidade da Associação Comercial do Ceará : 1866 – 1991. (Edição comemorativa do CXXV Aniversário de fundação) Fortaleza; Stylus Comunicações, 1991.Pág. 6.
5 NOBRE Geraldo. Ceará em preto e branco – 1988: ano do centenário da Abolição da Escravatura no Brasil. Fortaleza: [Instituto Histórico do Ceará], 1988.
6 Ver introdução. FERREIRA SOBRINHO, José Hilário “Catirina, minha nêga, tão querendo te vendê…”: escravidão, tráfico e negócios no Ceará do século XIX (1850-1881). Fortaleza : SECULT/CE, 2011, v.1
7 Ver cap.1. FERREIRA SOBRINHO, José Hilário “Catirina, minha nêga, tão querendo te vendê…”: escravidão, tráfico e negócios no Ceará do século XIX (1850-1881). Fortaleza : SECULT/CE, 2011, v.1
Especial 85
Em novembro de 2018, o Ceará Criolo publicou o especial “85”, no qual detalha as 85 comunidades remanescentes de quilombo existentes no estado e que comprovam a importância do povo preto para a formação dos cearenses. Confira!
O Ceará Criolo é um coletivo de comunicação de promoção da igualdade racial. Um espaço que garante à população negra afirmação positiva, visibilidade, debate inclusivo e identitário.
4 comentários
Boa noite, interessante a matéria mas acho que poderiam fazer um suspense e depois no final dizer que não essa ligação com os norte europeus, porque, eu li a matéria até a metade e ja fiquei satisfeito. Abraço.
Sera`, sera` e sera`. Mas corrigindo isto, favor nao esquecer os povos indigenas, os arabes, os judeus e tantos outros grupos etnicos que sao parte integral da historia do nordeste. Claro que houveram galego–ibero-Celtas, geralmente louros mas nunca Vikings, houveram uns poucos franceseses da Normandiam basicamente Vikings, os raros alemaes, anglo-irlandeses, escoceses, alguns holandeses e outros grupos depigmentados. Mas nos cerenses fariamos bem em ouvir repetidamente o “Sarara`” de Gilberto Gil. Sara, saram Ceara desta mania de querer perder a cor. Estas lindo como es na realidade, nao como a imagem fugaz criada por um sonho louco de um fantasista iberico. Houveram visigodos, sim, mas favor lembrar os fenicios.
A vdd é q o próprio negro é racista. No Brasil pessoas morenas se dizem pardas, negros ricos só relacionam com loiras, etc… O povo brasileiro se esquece q é mestiço e com análise de DNA todos vão encontrar traços negros. Provavelmente quem apoia essa tese viking deve ser os próprios pardos..
Interessante esses debates. Para quem tiver dúvidas sobre sua ancestralidade sugiro fazer um teste de DNA. Hoje em dia se popularizou muito, estão bem baratos e qualquer um consegue fazer. Através do teste pode-se descobrir definitivamente sua ancestralidade com qualquer que seja o povo 😉