Pessoas trans são foco de projeto da deputada Erika Hilton que propôs reservar 5% das vagas em universidades federais e outras instituições de ensino superior para essa população
“E o outro lado do outro?”
“E o outro lado do outro? Gostaria de ver mais das realidades boas e possíveis”. Carol, uma amiga que conheci na pós-graduação em Comunicação na Universidade Federal do Ceará (UFC), fez esse comentário enquanto discutíamos a forma como a mídia representa periferias de Fortaleza (CE) – questões de classe, raça e outras realidades – e como existem muitas outras histórias além do crime e da violência.
Ao dizer isso, Carol compartilhou a própria vivência enquanto mulher trans: existe transfobia, mas também há famílias como a dela, que a acolheu quando iniciou a transição de gênero, assim como o fato de ser uma pessoa branca facilitou o acesso à educação, da graduação à pós-graduação.
Carol é Carolina Tavares: graduada em Rádio, TV e Internet pela Universidade Estadual do Rio Grande do Norte (Uern), mestranda em Comunicação pela UFC e pesquisadora da área do audiovisual. Produz dissertação sobre o cinema cearense.
A voz dela me ressurgiu esses dias: “E o outro lado do outro?”. A mídia tradicional fala sobre a relação que pessoas trans vivenciam com o ensino superior? Nas graduações das universidades públicas, apenas 0,2% dos estudantes se autodeclaram como homens trans (0,1%) ou mulheres trans (0,1%), segundo pesquisa da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes/2018).
Esse dado é reflexo de um país transfóbico. O Brasil ainda é o país que mais registra crimes contra a vida de pessoas trans pelo 15º ano consecutivo, segundo o relatório anual da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra/2025). Essa violência se materializa ao vermos a pouca presença de pessoas trans na universidade. Mas, para além dessa face da violência, existe não só resistência, mas vivência.
É sobre vivência: dizer o “outro lado do outro”. Assim, convidei um casal de amigos – Cardoza e Oliwer – para compartilhar experiências. O foco é a vivência na universidade.
“Nós três estudamos na federal”
Cardoza Santos é formada em Farmácia pela Universidade Federal do Piauí (UFPI) e mestra em Saúde Pública pela UFC, onde deu continuidade à pesquisa no doutorado. Tem experiência profissional e acadêmica na área da Saúde Coletiva, principalmente nos debates sobre aleitamento materno, farmácia, educação em saúde, saúde pública e determinantes sociais da saúde.
Mas, junto a tudo isso, como diz: “Eu sou Cardoza Santos, tenho 31 anos, sou nascida em Teresina, Piauí, sob o sol de Áries”. Ela se apresenta assim ao contar que ingressou na universidade em 2012, aos 18 anos, pela modalidade de ampla concorrência.
“Eu sou uma pessoa negra e periférica que já passou fome, e não só fome, mas desnutrição na infância. Minha família foi beneficiária do Bolsa Família. Minha mãe é uma professora negra que, quando teve a mim e meus irmãos, teve que deixar a sala de aula por conta da maternidade, porque ninguém queria contratar uma professora que era mãe solo com três filhos para criar. Isso a levou a todos os trabalhos possíveis: cuidadora, faxineira, na roça… Meu ingresso na universidade vem do projeto da minha mãe de colocar os três filhos na universidade pública”.
Para Cardoza aprendeu com a mãe que não poderia aceitar o que os outros diziam sobre si. “Lélia Gonzalez fala sobre a Mãe Preta, que tem que ser a cuidadora de todo mundo e nunca a figura que é cuidada, que tem seus próprios sonhos. Minha mãe consegue subverter essa lógica. A subversão dela permitiu que meus sonhos existissem. Na universidade, enquanto pessoa trans e negra, minha mãe ainda é minha inspiração”.
A partir desse lugar de subversão, Cardoza fala sobre a experiência em espaços acadêmicos. São 13 anos contínuos ocupando a universidade. Após a conclusão do curso de Farmácia, fez Residência Clínica na Maternidade-Escola Assis Chateaubriand, mestrado e atualmente cursa doutorado.
“A universidade detém uma série de violências psicológicas e materiais contra corpos negros e periféricos. Convivi, explicitamente, com muitos professores e colegas racistas. Perseguição, abuso e assédios diários passaram por atos de racismo. Essa perversão racial tem a ver com o ingresso de pessoas negras na universidade, que modifica também a matriz de pensamento nesse lugar, e isso implica diretamente nessas violências. Nesses 13 anos de universidade, vivi vários processos de transformação e de conhecimentos emancipatórios, mas a universidade opera violências institucionais, psicológicas e morais contra pessoas que não foram pensadas para estar lá”.
Cardoza ainda relata ter sofrido violências durante esse período por ser uma pessoa negra, LGBT e dos movimentos sociais, por lutar por causas. “A universidade é um lugar que conserva estruturas de opressão e violência, seja de forma simbólica, seja discursiva, seja nos silenciamentos que justificam a transfobia e o racismo. Até xenofobia eu passei quando vim estudar no Ceará, sendo do Piauí. Acho isso até engraçado, porque existe esse tipo de disputa interna em regiões tão próximas”.
Ela também ressalta que, ao longo desses 13 anos de formação acadêmica não teve professores(as) trans. “Conheço algumas pessoas trans no ensino superior e conheço a professora Letícia Carolina Nascimento [autora do livro Transfeminismos, 2023], que é docente na UFPI. Infelizmente, as poucas pessoas trans que são professoras não são da minha área. Por eu ser do campo da saúde, é mais explícita essa exclusão dos corpos trans, principalmente porque a saúde patologiza a gente. Quantas enfermeiras trans existem? Quantas médicas trans? Quantas professoras de anatomia trans ou farmacêuticas trans conhecemos? Quantas farmacêuticas trans conhecemos? Uma grande dificuldade é a empregabilidade, porque as pessoas trans se formam nas universidades, mas o mercado de trabalho não tem políticas de inclusão. Então, nós somos qualificadas, mas ainda ocupamos subempregos e estamos na informalidade trabalhista”.
Para Cardoza, isso configura um apagamento. Pesquisa da Agência Pública, realizada em 2024, revelou que apenas duas das 27 universidades federais localizadas nas capitais brasileiras reservam cotas para pessoas trans, travestis e não binárias. Essa realidade deve ser tratada como um problema social a ser enfrentado pelo poder público.
Cotas para pessoas trans: um projeto em disputa
A discussão sobre cotas vem sendo mobilizada institucionalmente pela deputada Erika Hilton, do Psol. Eleita em 2022, ela é a primeira parlamentar trans e negra a ocupar uma cadeira no Congresso Nacional.
Em 2023, Erika propôs o Projeto de Lei nº 3.109/2023, que visa criar cotas de 5% para pessoas trans em universidades federais e outras instituições de ensino superior. O PL contempla graduação, pós-graduação e outras instâncias do ensino superior. Além disso, prevê medidas de inclusão e permanência, além do combate à discriminação.
Em um cenário ideológico em que a ultradireita exerce políticas com base no conservadorismo e na religião, o tema das ações afirmativas para pessoas trans e travestis transforma-se em um verdadeiro campo de batalha. A Antra, em 2024, publicou nota técnica para debater a questão.
Nela, são apresentados indicadores de múltiplas fontes que expõem a exclusão de pessoas trans dos espaços educacionais. Além disso, o exto apresenta modelos de documentação que podem orientar a construção de políticas públicas e servir como instrumentos de avaliação para seleção de candidatas e candidatos aos programas de ações afirmativas destinadas à população trans.
“Embora estejamos em um campo de disputa frente ao ultraconservadorismo no campo da educação, fomos surpreendidas com o reconhecimento, pelo Ministério da Educação, da importância da adoção de cotas para pessoas trans nas universidades. Tal ação afirmativa deve ser acompanhada de políticas de permanência de estudantes no Ensino Superior e acesso ao mercado de trabalho. Portanto, temos um enorme desafio pela frente”, diz a nota.
“Homens trans e pessoas não binárias também gestam”
Um dos indicadores do relatório da Antra refere-se à população transmasculina, da qual Noah Oliwer de Carvalho Gomes da Silva, de 26 anos, faz parte. Ele é estudante de Psicologia pela Universidade Estadual do Piauí (Uespi).
“Eu escolhi Psicologia por não me sentir acolhido em Teresina enquanto pessoa, em relação à minha saúde mental. E eu queria mudar isso, sabe? Acredito que posso dar início a alguma mudança no setor da saúde mental na minha cidade. Teresina é uma cidade adoecida. Ter pessoas que compartilhem de um ideal através da Psicologia, para além da saúde mental, mas como posicionamento político e social”.
Atualmente no sétimo período do curso, Oliwer lamenta que, até o momento, não teve professores(as) trans. Já pensando na conclusão do curso, escolheu como tema de pesquisa o puerpério – período que se inicia após o nascimento do bebê – de homens trans.
Essa ideia surgiu durante sua experiência no Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (Pibic), ao perceber que a literatura existente sobre o puerpério só tratava de cuidados voltados a mulheres cisgêneras.
“Quando vi isso, pensei que hoje em dia muitas pessoas trans, que tomam ou não hormônio, estão gestando. Então, esse puerpério tem que ser analisado para esse público. A literatura fala apenas da mulher, da mãe. E os pais? Os homens trans e pessoas não binárias que gestam não estão lá [na literatura sobre puerpério]”.
Ele acredita que essa análise é importante, pois esse período envolve a relação do sujeito com o próprio corpo e com as relações sociais que mantem. No caso de pessoas trans, somam-se as violências e preconceitos ao impacto hormonal, o que deve ser acompanhado pelas ciências da psi (mente). Para Oliwer, ocupar a universidade tem um sentido profundo:
“Apesar de ter consciência das dificuldades que pessoas trans enfrentam para entrar e permanecer na universidade, minha vivência tem sido boa. Digo isso porque reconheço meus privilégios enquanto uma pessoa branca. Sei que vários fatores me possibilitaram disputar uma vaga na ampla concorrência e ingressar no ensino superior. Estar na universidade é muito bom. Me permite estudar, desconstruir e pesquisar sobre o público do qual faço parte, além de me dar perspectiva de vida”.
Ele conta que estudar numa universidade pública possibilita acesso à formação sem gastos adicionais, o que é essencial, já que mora sozinho e concilia trabalho e estudos. Para ele, estar no ensino superior representa esperança e o desejo de ser um bom profissional e contribuir com a saúde mental de Teresina.
“Eu queria que todas as pessoas trans conseguissem ter acesso à universidade. Faz total diferença podermos estudar e produzir conhecimento. Quanto mais produzimos, mais fortalecemos nossa luta”, partilha.
A importância da presença trans na saúde e na educação
As trajetórias de Cardoza e Oliwer revelam o quanto a universidade ainda é um território de disputa. Suas presenças ampliam os sentidos da educação pública e tensionam as estruturas que, historicamente, negam acesso a corpos trans.
Tanto ela quanto ele aconselham outras pessoas trans a não desistirem de ingressar e permanecer na universidade. Mas também reforçam o quanto ainda há barreiras estruturais que impedem uma grande parcela dessa população de acessar esse espaço.
Ancorada na trajetória da mãe, Cardoza enxerga a universidade como um lugar de realização ancestral. Avalia que estar na universidade lhe proporcionou um conhecimento emancipatório. Já Oliwer vê esse espaço como um lugar capaz de despertar comprometimento social e político, além de oferecer perspectivas de vida.
Mais do que resistir, eles vivenciam. Pesquisam. Ensinarão. Têm corpos que também produzem ciência, saber, cuidado.
Que a educação seja, de fato, um direito. Que as políticas afirmativas avancem, e que Cardozas e Oliwers estejam em todas as salas de aula, laboratórios, universidades. Do Piauí do Brasil inteiro.
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Doutorando em Comunicação pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal do Ceará (PPGCOM/UFC). Mestre em Comunicação pela Universidade Federal do Piauí (UFPI) e graduado em Comunicação Social com Habilitação em Jornalismo pela mesma instituição.
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