Apesar de acertada, merece um adendo a decisão do governador do Ceará, Elmano Freitas (PT), de acabar com o mausoléu do ditador e ex-presidente Humberto de Alencar Castello Branco (1897-1967). Transformar o espaço numa homenagem a abolicionistas é louvável. Mas precisa ser feito com cautela, sob pena de, do contrário, o poder público mais uma vez apagar a real história do estado brasileiro pioneiro na libertação dos escravizados. Explico.
Muitos são os livros que reproduzem narrativas sobre o abolicionismo ter ocorrido aqui graças à articulação de um seleto grupo de homens. Homens brancos. E é aí onde mora o perigo. Embora tenha tido o apoio importante dessas pessoas, a luta pela liberdade negra no Ceará teve o desfecho que teve – ou seja: foi bem sucedida quatro anos antes do restante do país – graças aos negros escravizados e às negras escravizadas. Muitos e muitas enfrentaram seus senhores. Morreram por isso. Foram mortos por isso. Deram a vida pelo fim de um regime de exploração e morte.
Apesar de muitos registros provarem o protagonismo negro no Ceará, a narrativa é outra. E a alcunha de “Terra da Luz” é atribuída à benevolência de homens brancos que, inconformados com a escravização, lutaram contra ela. Daí meu alerta de adendo à decisão do governador: para não cair nesse mito da bondade branca, Elmano deve consultar não somente a Secretaria da Igualdade Racial (Seir), pasta essa que criou e é gerida por Zelma Madeira. O governador precisa dar um passo adiante. É fundamental consultar os movimentos negros!
Elmano tem que ser apresentado às figuras negras fundamentais ao abolicionismo. Gente para além de Dragão do Mar. Sim, há. E essas pessoas estão na boca, no coração e nas mentes da negrada pesquisadora, militante e ativista. Pessoas brancas e negras que diariamente estudam as relações raciais e a formação sociopolítica do Ceará, e deparam-se com nomes quase sempre ignorados nas tais “narrativas oficiais.”
Há quem diga, por exemplo, que José Napoleão foi talvez mais importante para o movimento abolicionista no Ceará do que o próprio Chico da Matilde, o Dragão do Mar. Mas você o conhece? Já, pelo menos, ouviu falar dele? E de Preta Tia Simoa, você sabe o que sobre a relação dela com a libertação dos escravizados?
O governador precisa conhecer a história que a história não conta sobre o estado que ele hoje administra de um lugar chamado Palácio da Abolição e poucos são os negros em cargos de chefia. É necessário que Elmano saiba mais do que o senso comum a respeito do Ceará para que, além da reconfiguração do mausoléu, mude o perfil dos agraciados pela Medalha da Abolição, a mais alta comenda do Estado cearense que ano após ano é entregue praticamente só a pessoas brancas.
Ao só reconhecer a luta de pessoas brancas e ao ter uma sede administrativa na qual quase nenhum gestor é negro, o Ceará reforça dois imaginários cruéis. O primeiro é o de que negros por aqui foram tão poucos, mas tão poucos, que sequer valem reconhecimento. O segundo é o de que, mesmo existindo, a negritude local foi desimportante para a estruturação do Estado. Nenhuma das duas afirmações é verdadeira. Ambas são mitos perigosos.
Sem negros e negras, o Ceará nada seria. Assim como o Brasil não seria Brasil sem escravizados e escravizadas. Por isso, é urgente que o novo mausoléu proposto pelo governador seja destinado aos nomes negros da nossa abolição. Passou da hora de o Palácio dar um recado explícito ao povo cearense de que devemos nos orgulhar dos nossos antepassados. Que nossa ancestralidade é, sim, negra e potente. E que estamos construindo um novo futuro, dias nos quais a raça não seja tão definidora de destinos quanto é hoje.
Dois rápidos dedos de proza com cientistas sociais, sociólogos, antropólogos, militantes dos movimentos negros e representantes de comunidades tradicionais podem ser decisivos para o Governo do Ceará não errar mais uma vez quanto ao reconhecimento da trajetória e luta das lideranças negras que aqui tombaram.
Porque: a despeito do que muitos possam pensar, o Ceará não tem origem nórdica.
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Comunicólogo e mestre em Antropologia, é especialista em Jornalismo Político e Escrita Literária e tem MBA em Comunicação e Marketing em Mídias Digitais. Foi repórter e editor dos jornais O Estado e O POVO, correspondente do portal Terra e colaborador do El País Brasil. Atua hoje como assessor de comunicação. Venceu o Prêmio Gandhi de Comunicação, o Prêmio MPCE de Jornalismo e o Prêmio Maria Neusa de Jornalismo, todos com reportagens sobre a população negra. No Ceará Criolo, é repórter e editor-geral de conteúdo. Escritor, foi finalista do Prêmio Jabuti de Literatura 2020.