Se o Governo Elmano Freitas já fez história ao, de partida, ser composto por um secretariado no qual há paridade de gênero, o mesmo não se pode dizer sobre raça. Dos 32 nomes anunciados pelo novo chefe do Poder Executivo do Ceará, apenas quatro (e há quem conteste até isso, dizendo ser menos, três) são negros: Sandra Monteiro, na Ciência e Tecnologia; Waldemir Catanho, na Articulação Política; Zelma Madeira, na Igualdade Racial; e Moisés Braz, no Desenvolvimento Agrário.
Considerando esses quatro nomes, o atual Governo tem 12,5% de secretárias e secretários negras/os. Se três, o patamar é ainda mais baixo: 9,3%. Algo bem distante, portanto, dos 72,5% de cearenses que se autodeclararam pretos e pardos ao Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Ou seja: dos 9,1 milhões de habitantes do Ceará, 6,6 milhões são negros. Somente 25,4% são brancos, 1,4% são amarelos e 0,5% são indígenas.
É preciso, então, questionar: se foi com o voto dessa população negra que se elegeu o atual Governo, por qual motivo ela não está representada nele, que, como provam os números, privilegia pessoas brancas para os cargos mais importantes? Se é para essa população que o atual Governo diz que vai trabalhar, como repetidamente tem dito Elmano, qual a razão de ela não figurar majoritariamente nos cargos responsáveis pelas tomadas de decisão? Se foi essa a população convocada a ocupar as ruas na luta contra o fascismo durante a eleição, o que explica esse alijamento quando da formação do secretariado?
Todos sabemos a razão dessa assimetria. Conhecemos o porquê desse tratamento. Esse mosaico secretarial tem nome e raízes seculares. E me dói de modo muito particular falar sobre o racismo estrutural deste caso, bem como definem Silvio Almeida e Dennis de Oliveira o fenômeno, porque eu fui às ruas em busca de voto para este Governo vencer. Colei adesivo no peito, cantei o jingle “é Lula-Camilo-Elmano, 13, 13”, abordei amigos, convenci desconhecidos, puxei papo na fila do pão, debati com familiar, mobilizei em rede social… Enquanto cidadão, me senti no dever de virar votos. Fiz de tudo por compreender a urgência do momento que vivíamos, o que também me dava a esperança de o instante seguinte, da definição de cargos, ser diferente. Não foi.
É preciso ser justo, porém, e dizer que houve, sim, avanço. A gestão anterior, também petista, dispunha apenas de uma pessoa negra no primeiro escalão. Pessoa essa – Zelma Madeira – cujo capital político é tão importante e a atuação tem se mostrado tão estratégica, necessária e multifacetada, apesar das inúmeras limitações, que se manteve no staff atual, mudando apenas de área de atuação (ela estava na Assessoria aos Movimentos Sociais). Figuras como ela são um alento, como também o são os/as secretários/as restantes – Catanho em especial, por tratar-se de um homem de pele escura e cuja missão será estratégica (a maior de todas, talvez, por ter de equilibrar tensões de diversas ordens como articulador político de uma base ampla).
Era muito possível ter escolhido um número maior de pessoas negras para o Governo. Porque sim, é uma escolha. E não cabe mais o argumento de que “faltam nomes qualificados”, de outrora. Não faltam. Inúmeras são as negras e negros deste Estado com extensa folha de serviços prestados à vida pública distante dos holofotes governamentais. Por que não as/os colocar para dançar? Isso é incluir, não só convidar para a festa. No ecossistema político-eleitoral, pedir voto e convocar às ruas, como o fez o governador agora empossado, é tão somente convidar o povo negro para a festa e deixá-los assistindo quem se movimenta nela. Nomear negros e negras como secretários/as e dar poder a elas/eles para a execução do trabalho, isso é colocar para dançar.
Assim como é fundamental termos mulheres e homens ocupando cargos na mesma importância, é essencial negros/as estarem no Governo – seja ele qual for – em proporção similar ao que vemos na sociedade. Se somos dois terços da população, que sejamos dois terços do secretariado. Por uma razão muito simples: por mais antirracista, solidário, empático, militante, amigo, consciente, bem intencionado, estudioso, diplomado e de esquerda que seja, uma pessoa branca permanece sendo branca e nunca saberá na pele o que é ser excluído de uma política pública por ser negra. Pode sentir por ser pobre. Mas branca? Nunca. Como mudar uma realidade se você nem faz parte dela nem ter ao seu redor quem faça?
Chega de tratar representantes de movimentos negros, intelectuais e mobilizadores sociais apenas como consultores esporádicos ou convidá-los a fazer parte da construção política de forma episódica ou mesmo somente nos bastidores. Para o bem da eficácia dos projetos, é crucial que nós, pessoas negras, tenhamos garantida a nossa presença em espaços de poder, de tomada de decisão. A história nos prova de forma inconteste o quanto pessoas brancas não trataram como prioritárias pautas do povo negro, mesmo aquelas de esquerda, progressistas, revolucionárias… Muitas colocaram a classe antes da raça – ou mesmo o gênero antes da raça -, quando a literatura nos mostra, grita, e não é de agora, o quão equivocadas são essas duas perspectivas. Porque é a raça que precede tudo.
Intelectuais como Kimberlé Crenshaw, Patricia Hill Collins, Sirma Bilge, Angela Davis e Carla Akotirene, para citar apenas algumas, nos ensinam há décadas: antes de uma mulher negra ser uma mulher, ela é negra. Esse modo interseccional de enxergar o ser humano se estende: antes de um homem negro ser um homem, ele é negro. Antes de uma pessoa LGBTQIAP+ negra ser LGBTQIAP+, ela é negra. Antes de uma pessoa pobre negra ser pobre, ela é negra. Antes de uma pessoa com deficiência negra ser uma pessoa com deficiência, ela é negra.
Não importa o outro lugar social que você ocupe, quando você é negro/a, é a raça que lhe vai demarcar antes de qualquer outra característica. E é ela quem vai assegurar, no caso da negritude, a tua exclusão (ou, no caso da branquitude, a inclusão). A raça informa os outros marcadores. Sendo assim, por que são pessoas brancas, que não têm na raça um fator complicador de acesso ao serviço público, que ocupam 84,3% dos cargos de secretário/a do Ceará? Está errado.
Nós, população negra, não podemos mais ficar à mercê da boa vontade de um(a) secretário/a pautar demandas que, para nós, são caras, urgentes e, muitas vezes, históricas! Essa perspectiva precisa ser a espinha dorsal de toda e qualquer política pública. Porque não se trata de desejo particular. Não estamos falando aqui de esfera privada. Governo é âmbito público. E nós, negras e negros, somos a maioria desse público, o que nos confere – ou deveria conferir – prioridade na definição do alto escalão estatal para, assim, termos nossas demandas atendidas.
Cabe dizer ainda o quão negativa é a mensagem racial transmitida por um Governo cujo secretariado é quase totalmente branco num estado que nega historicamente sua negritude. A despeito de documentos que comprovam a presença negra no Ceará, o mito de não termos negros aqui – ou mesmo de nossa origem ser nórdica – se perpetua geração após geração. E isso se dá a partir do próprio Estado, que há séculos vilipendia direitos básicos, violenta populações marginalizadas e exclui negras e negros dos espaços de poder. Ao, mais uma vez, relegar à negritude uma parcela ínfima do secretariado, a gestão Elmano reforça esse perverso discurso negacionista de nossa existência.
Enquanto comunicólogo, alerto também sobre a composição das assessorias de comunicação. Passou da hora de as equipes das pastas e da Casa Civil avançarem neste quesito. O que temos hoje ainda é a mais completa predominância branca. Chefes brancos com subordinados brancos. Não há possibilidade de se produzir uma comunicação diversa e verdadeiramente inclusiva a partir apenas do olhar de pessoas sem raça (porque é assim que sujeitos brancos se enxergam). E quem diz isso não sou só eu, mas todos os estudos, nacionais e internacionais, sobre o assunto.
Com múltiplas perspectivas raciais, de identidade de gênero e de orientação sexual, para citar apenas três variantes, a possibilidade de uma assessoria entregar produtos diversos é infinitamente maior. As chances de uma administração pública reproduzir exclusões e estereótipos é muito menor. E a possibilidade de a comunicação pública ser de fato pública e social, respeitando subjetividades e preceitos históricos, é imensa. Mas há interesse real nisso ou todas as grandes redações brasileiras continuarão a ser chefiadas por pessoas brancas, como denuncia estudo do Instituto Reuters?
Paridade de gênero sem paridade racial é meia paridade, por mais urgente que seja, como é, essa divisão homogênea de cargos entre homens e mulheres. Obrigatório, mas pela metade. E nunca houve cenário tão favorável à promoção das duas coisas (gênero e raça) quanto agora. Se havia a imperiosidade de equiparar gêneros, uma necessidade de cumprir uma promessa de campanha, o caso de Elmano, que o governador o fizesse contemplando o quesito racial. Isso é tão somente uma decisão política, a despeito de justificativas em prol da governabilidade que venham a apresentar. Ela, inclusive, a governabilidade, tem se mostrado um veneno aos governos de esquerda, que abrem demais o leque de acolhimento de pretensos parceiros e, no fim, muitos desses parceiros mostram-se algozes. Um passado bem próximo nos provou isso no golpe contra a ex-presidenta Dilma Rousseff em 2016.
Há mulheres negras aptas a qualquer um dos 32 cargos do primeiro escalão da gestão Elmano. O mesmo vale para homens negros. Uma rápida consulta aos movimentos negros, às universidades, aos partidos políticos, às mídias digitais e às lideranças orgânicas constata isso. Educadores/as, historiadores/as, comunicólogos/as, antropólogos/as, sociólogos/as, médicos/as, economistas, é grande a lista de negras e negros que nos últimos anos puseram a cara à tapa em defesa do povo ao qual pertencem e, ainda assim, foram ignorados/as para o secretariado estadual, que perpetua o pacto narcísico dos brancos, tão bem conceituado pela psicóloga Cida Bento.
Vamos insistir no erro de atos racistas até quando? Que futuros governos e assessorias de comunicação não sejam mais compostos sem considerar o marcador social da diferença que decorre da raça. Porque é ela a principal diretriz de definição de qualquer política pública. Ou deveria ser. A história racista de formação do nosso Brasil, tão bem narrada em livro por Ynaê do Santos, nos prova isso. Nem todo mundo, no entanto, admite. Ou está disposto ao enfrentamento.
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Comunicólogo e mestre em Antropologia, é especialista em Jornalismo Político e Escrita Literária e tem MBA em Comunicação e Marketing em Mídias Digitais. Foi repórter e editor dos jornais O Estado e O POVO, correspondente do portal Terra e colaborador do El País Brasil. Atua hoje como assessor de comunicação. Venceu o Prêmio Gandhi de Comunicação, o Prêmio MPCE de Jornalismo e o Prêmio Maria Neusa de Jornalismo, todos com reportagens sobre a população negra. No Ceará Criolo, é repórter e editor-geral de conteúdo. Escritor, foi finalista do Prêmio Jabuti de Literatura 2020.