Estamos chegando do funda da terra,
estamos chegando do ventre da noite,
da carne do açoite nós somos,
viemos lembrar.
A de Ó (Estamos Chegando)
Milton Nascimento
No Ceará, todo negro ou negra já foi abordado uma vez na vida e escutou a frase: “No Ceará não tem negros”. Essa afirmação comum e corriqueira entre nós de que “No Ceará não tem negros” não deve ser entendida como um comentário simples. Ela possui uma força ideológica e um efeito que extrapolam os limites do Estado. Coloca no campo da invisibilidade um conjunto de histórias e vivências de mais de um século que ainda não foi suficientemente estudado, já que consideramos que esse processo de negação do negro aqui se fortalece nos anos pós-abolição. Entretanto, consideramos que esse procedimento de negação e/ou invisibilização do povo negro é parte de um projeto racial e político de Estado que tem raízes históricas, é patrocinado pelas elites (autointituladas brancas) e de que a nação brasileira se pretende, num futuro não muito distante, ser branca.
O trabalho ideológico de negar a presença negra no Ceará possui muitas funções políticas. Uma bem comum é a negação da existência desses, para justificar a posse ilegal das terras quilombolas por parte de fazendeiros e latifundiários. Dá uma olhada nessa matéria de um Jornal do Centro-Oeste do Ceará sobre a disputa pelas terras do quilombo de Queimada em Crateús. Chamo atenção para o título da reportagem:
Queimadas pode virar rio de sangue e fogo
Recrudesce a onda quilombola em Crateús. Novamente ela volta e ameaça e pretende transformar a região do distrito de Queimadas, num rio de sangue e fogo. Tentam nos fazer crer na mentira do século, na falsa afirmação da existência de um quilombo na pacata região de Queimadas, refúgio para negros cativos. Crateús nunca foi, em tempo algum, território da escravatura, e jamais o tráfico de seres humanos por aqui se estabeleceu. A história do município não registra proprietários ou mercadores de escravos nem terras onde negros trabalharam sob o regime de escravidão. O solo de Queimadas nunca se destinou ao cultivo da cana de açúcar e outras culturas que necessitassem de mão-de-obra escrava (GAZETA DO CENTRO-OESTE, 2010).1 (Grifo meu)
Notem que se aproveitam do silêncio e da invisibilidade sobre a história dos negros no Ceará. Os quilombolas contra-argumentam.
Numa reportagem ao jornal Diário do Nordeste de 16 de setembro de 2010, Michele Gomes, à época presidente da Associação da Comunidade Remanescente de Quilombolas de Crateús, conta que seus avós recordam dos sofrimentos que os escravos passavam na região, citando a escrava Damásia e Santa Felícia. Diz que a bisavó dela, Raimunda, já falecida, contava que conheceu Santa Felícia.2
Visitando minhas pesquisas, encontro em meu livro3 um documento que se chama “Quadro demonstrativo da população escrava existente nos municípios da província do Ceará”. Após uma rápida olhada nele, encontro o município de Príncipe Imperial que era como antigamente Crateús era chamada. E aproveito aqui para mostrar a realidade de alguns municípios vizinhos de Príncipe Imperial/Crateús. Vejam abaixo:
Como se pode ver, há uma narrativa por parte dos quilombolas que desconstrói a historieta desenvolvida na reportagem que questiona a presença negra nesta região. E, para fortalecer a fala dos quilombolas, apresento um documento/fonte que revela uma presença de 353 escravizados matriculados pelo Censo de 1872 (uma quantidade que poderia ser bem maior, pois era comum algum senhor não registrar todos os seus cativos ou mesmo não ser sincero quanto ao número de cativos que tinha) nesse município em 1881. Observe que os donos dos cativos de alguma forma participaram do tráfico interprovincial (vendendo, trocando ou doando seus escravizados) quando verificarmos os itens averbados (registrados) no quadro.
Note que o número de saída dos cativos é bem maior que o de entrada, 228. Uma questão que se pode levantar e que vai de encontro ao que foi construído na reportagem é de que, se há uma presença de cativos nos municípios vizinhos, a exemplo de Tamboril e Independência, e estamos falando de uma sociedade escravista, que usou a mão de obra compulsória negroafricana em todas as atividades do mundo do trabalho, podemos, então, nos perguntar: por que só Crateús, cercado por municípios que usaram e abusaram do trabalho escravo, não o fez, já que, segundo o autor da reportagem, a história do município não registra proprietários ou mercadores de escravos nem terras onde negros trabalharam sob o regime de escravidão? É claro que usaram. A reportagem usa de má fé. Se aproveita do processo de invisibilidade para ajudar o discurso daqueles que desejam as terras quilombolas. O caminho sempre foi e será o de desqualificar as falas dos negros e negras. O uso do discurso de “No Ceará não tem negros” é bem útil. Entretanto, sem fundamentação na história e na realidade.
Em minha pesquisa de mestrado, tive acesso a documentos históricos e os analisei criticamente, a exemplo dos “Mappa da População da Capitania do Ceará Grande, apresentado a sua Alteza Real, no mez de junho de 1804, pelo seu Governador – João Carlos Augusto de Oeynhausen”. Também analisei os mapas dos anos de 1808 e 1813, e o resultado foi surpreendente. Me levou à conclusão de que a presença negra e mestiça em muitas vilas da província do Ceará fora bem superior à de brancos. Esses dados que apresento foram discutidos em um estudo anterior4 e revelaram, a partir desses mapas populacionais de 1804, 1808, 1813 e 1872, uma realidade radicalmente oposta à que “naturalmente” somos levados a perceber. Tal resultado rompe com o silêncio intencional ao qual a população negra foi condenada, já que os estudos oficiais referentes a negros no Ceará, durante um longo tempo, se limitaram a trabalhos relacionados a dois assuntos: escravidão e abolição.5
O procedimento usado foi simples – nos quadros dos mapas, são apresentados as vilas e os respectivos termos: brancos, pretos e pardos cativos, pretos e pardos livres. Em outro mapa, o de 1808, percebe-se que foi acrescentado o termo mulato escravo e mulato livre. O que se procurou fazer foi apenas somar os números de pretos e mestiços livres com os dos escravizados. Daí se obteve um resultado impressionante.
No censo de 1804: os números referentes às áreas predominantemente de pecuária, como São Bernardo, Icó, São João do Príncipe (Tauá), Campo Maior e Sobral, revelaram que havia uma porcentagem de homens negros bem superior à de brancos, em particular em Crato, Sobral e Campo Maior. Verificou-se os mesmos resultados no censo de 1808. Com a mesma lógica das somas, tem-se, na população das vilas, o seguinte resultado: Sobral 73%; Campo Maior, 69%; Crato, 67%; Monte-mor o Novo, 66%; Granja, 60%; Icó e Fortaleza, 59%; Aquiraz e Vila Nova del Rei, 55%; e Aracati, 54%.
Vê-se que nestas vilas da província do Ceará havia uma presença significativa de negros e mestiços livres não contabilizados. Penso que pelo simples fato de ter-se o negro, nesse período, exclusivamente, como escravo. O olhar preconceituoso.
Pelo censo de 1813, percebe-se uma clara presença negra nas vilas do Crato, onde negros e mestiços, livres e cativos, eram maioria absoluta, somando 31.080, seguindo, em ordem: Fortaleza, Aquiraz, Campo Maior, Aracati e Granja. Em São Bernardo, os brancos eram mais numerosos nos censos de 1804 e 1808.6
Como se pode observar, a presença negra sempre foi viva na história do Ceará. A constante pergunta de negação deste grupo social no Ceará a entendo como parte de um projeto político e racial que tem raízes históricas e que não pode ser vista como algo que se limita ao passado. A recente tentativa de associar a origem do cearense a uma identidade nórdica/viking é uma prova de que esse projeto continua no presente bem vivo. E, juntamente com ele, a presença do povo negro no Estado. Os negros e negras no Ceará jamais deixaram de existir. Portanto, aqui dizemos “Moni Ero”, que em uma língua banto significa “afirmo tua existência”. E é isso que neste texto faço e no presente, século XXI, revelo essa continuidade.
Segundo reportagem do jornal Diário do Nordeste de 22 de maio de 2019, a população que se declara negra cresce 82% no Ceará, aponta IBGE. E continua:
A população declarada negra aumentou no Ceará, entre 2012 e 2018, de acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua 2018, publicada nesta quarta-feira (22) pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). O índice passou de 2,9% para 5,3%, no período analisado, mas, ainda assim, é o menor dos estados do Nordeste.
Portanto, o racismo estrutural somado ao institucional insiste em silenciar sobre essa presença negra no Estado. Contudo, não se pode deixar de lado que o Ceará é parte de um projeto que nasceu para ser nacional. Vivemos uma luta de raça/classe na qual enquanto os movimentos negros organizados avançam na denúncia do racismo estrutural e propõem políticas públicas para corrigir os problemas provocados por este racismo, em contrapartida, a branquitude se articula para barrar ou amenizar o impacto das denúncias e conquistas dos negros e negras, materializadas em leis, a exemplo das políticas afirmativas.
Porém, seguimos presentes, vivos e teimando em existir. Como diz uma canção de caboclo: O tempo pediu ao tempo. Vingança do mesmo tempo. E o tempo respondeu ao tempo. Que tudo com tempo, tem tempo.
E o nosso tempo é agora !!!
1 FONSECA DUQUE, Adauto Neto. COMUNIDADES NEGRAS RURAIS NO NORTE DO CEARÁ: IDENTIDADE, MEMÓRIAS E ETNICIDADE. Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH • São Paulo, julho 2011. Pág.2.
2 Terras de quilombolas são alvos de disputas. Jornal Diário do Nordeste, 16/09/2010. Disponível: https://diariodonordeste.verdesmares.com.br/regiao/terras-de-quilombolas-sao-alvo-de-disputas-1.519664
3 FERREIRA SOBRINHO, José Hilário “Catirina, minha nêga, tão querendo te vendê…”: escravidão, tráfico e negócios no Ceará do século XIX (1850-1881). Fortaleza : SECULT/CE, 2011, v.1. Págs. 189,190,191.
4Ver cap.1. FERREIRA SOBRINHO, José Hilário “Catirina, minha nêga, tão querendo te vendê…”: escravidão, tráfico e negócios no Ceará do século XIX (1850-1881). Fortaleza : SECULT/CE, 2011, v.1
5 Já na década de 70, do sec.XX, um brasilianista, Billy Chandler alertava para este fato:“(…) Em publicação sobre o Ceará, pouca atenção tem sido dada ao papel do negro na formação da população do Estado. As menções feitas àquela raça se limitam a assuntos ligados à escravidão e abolição, a não ser uma ou outra referência feita sua pouca representação numérica na população do Estado. Mesmo assim, negros e mestiços da mesma origem foram responsáveis em grande parte, pelo aumento da população dos Inhamuns (…)” Ver, CHANDLER, Billy Jaynes. Os Feitosas e o Sertão dos Inhamuns: a história de uma família e uma comunidade no nordeste do Brasil. Tradução de Alexandre F: Coskey e Ignácio R. P. Montenegro. Fortaleza: Ed. UFC, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980. Pág.191.
6 Ver cap.1, FERREIRA SOBRINHO.
Graduado em Ciências Sociais e mestre em História Social pela Universidade Federal do Ceará (UFC). É pesquisador da Cultura e História do Negro no Ceará.
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