Por mais óbvio que hoje possa me parecer, confesso que nem sempre me foi uma grande preocupação: quantas pessoas pretas passam no meu feed? Hoje em dia, mais ligada às questões étnico-raciais na comunicação e na sociedade brasileira em geral, fica muito claro para mim a baixa quantidade de pessoas pretas que cercam o meu cotidiano. No feed, no seleto hall de influenciadores digitais, no entretenimento, no cinema, na novela. Um ou outro Lázaro Ramos ou Taís Araújo aparecem para contrariar as estatísticas.
Mas as estatísticas não se deixam muito ser contrariadas.
Sou publicitária já há alguns anos, trabalho com design, manjo de fotografia, ou seja, trabalho com imagem o tempo t-o-d-o. E precisou muita leitura, reflexão crítica e deslocamentos de paradigma pra perceber o que hoje me soa óbvio: não tem preto em quase nenhum lugar de visibilidade ou de hegemonia. “Como assim? Mas o IBGE não diz que mais de 50% da população são de pretos e padros?” – isso mesmo, cara pálida, e eu te pergunto agora: quantos deles ocupam lugar de protagonismo em papéis nas novelas, nas premiações cinematográficas, nas capas das revistas? Como bem lembrou a magnífica Viola Davis, durante uma premiação:
“não há prêmios para ganhar por papéis que você nunca fez”.
Viola Davis
A questão da visibilidade negra ultrapassa a representatividade. Não se trata apenas daquela cota mínima que muitos produtores ou emissoras veem obrigados(as) a preencher com um punhado de negros para bradar sua “diversidade”. Eu estou falando de uma coisa mais real. Te pergunto de novo: quantos pretas(os) passam na sua timeline? Quantos você segue, assiste, consome? – não precisa responder com tanta pressa. Dê-se esse tempo para refletir.
Quando eu falo pessoas pretas, esquece essa história de “preto retinto” – aquela imagem congelada de um selvagem africano que usa roupa estampada e fala um dialeto esquisito. Eu estou falando das inúmeras pessoas pretas que nasceram e que vivem aqui na sua cidade, no seu estado. Aquelas que a gente tem até dificuldade em dizer que são pretas: “ah, aquela morena bronzeada do cabelo crespo” ou “aquele rapaz escurinho”.
A depender dos circuitos em que você está inserido (trabalho, faculdade, igreja, escola, roda de amigos), esse número pode aumentar bastante ou pode diminuir a quase zero. Mas volto a insistir: de todos os comerciais que você assistiu esse ano na TV, quantos eram protagonizados por pessoas pretas? De todos os outdoors, anúncios, peças publicitárias, catálogo de clínica, perfis de loja no instagram, quantas pessoas pretas estavam lá estampadas? Entende como o buraco é um pouco mais embaixo?
Uma vez, uma situação me aconteceu e, embora me decepcionasse, não surpreendeu: eu já atendi a vários clientes como freelancer, e um deles era do ramo da estética; meu trabalho era fazer as artes para aquele cliente, usando sempre imagens de pessoas (majoritariamente mulheres) fazendo procedimentos estéticos. Vez ou outra, eu tentava inserir quase que sorrateiramente imagens de pessoas negras (de pele clara e/ou escura) para dar uma, vamos dizer, “variada no cardápio”. Todas as peças que eu usava com pessoas negras voltavam. “Precisamos de uma imagem mais bonita”. “Essa imagem não dá para usar, precisamos trocá-la por outra melhor”. Não é preciso muita habilidade intelectual para entender as entrelinhas. Pessoas negras não atendem aos “requisitos de beleza” hegemonicamente estabelecidos. Mas será por que elas não são suficientemente bonitas?
Agora chegamos, finalmente, em nosso ponto final (obrigada pela paciência até aqui): a beleza negra, assim com o talento, a competência, a maestria, o profissionalismo, a intelectualidade, a habilidade técnica negros jamais estão dentro do que é parametrizado pela cultura branca (e embranquecedora) e colonial brasileira; não porque não sejam belos, talentosos, competentes, profissionais, intelectuais ou habilidosos o suficiente. Mas porque os parâmetros do que é belo, talentoso, profissional ou intelectual são os parâmetros hegemonicamente determinados pelo etnocentrismo europeu-norte americano (em outras palavras, pelo padrão que a cultura europeia e norte-americana nos impôs), que não coincidentemente é racista, excludente, patriarcal e colonizador.
Somos ensinados desde cedo a nos curvar diante da beleza e dos padrões eurocêntricos (e a desejar essas referências) e nos tornamos incapazes de apreciar, de valorizar e de reconhecer a diversidade étnica, cultural, religiosa, sexual que habita nosso país.
Um dos primeiros passos para promover uma maior pluralidade e expandir nossa capacidade de percepção é justamente descolonizar o olhar: questionar-se por que as coisas são como são; por que elas não poderiam ser de outra forma; por que precisamos encaixar em padrões que não nos cabem. Questionar. Nunca se conformar. Hoje, não deixe de se perguntar: quantas pessoas pretas passam no seu feed?
Publicitária cearense. Canceriana. Doutora e mestre em Psicologia. Amante da docência. Integrante do Grupo Interdisciplinar de Estudos, Pesquisas e Intervenções em Psicologia Social Crítica (Paralaxe-UFC). Defendeu em sua tese de doutorado um estudo sobre mulheres em transição capilar. Atualmente, dedicada aos estudos de gênero, raça, feminismos negros e decolonialidade.
Louca por fotografia, design, viajar e colecionar carimbos no passaporte. Uma pessoa extremamente curiosa.