Desde o fim do ano passado, 2021, penso para mais longe, aqui.
Ano de eleição-guerra. Ano do começo do fim do mestrado. Ano dos quase 30. Ano-que-vem-depois-o-que?
De um tudo, o que mais me assusta é a eleição-guerra, que vem mais ou menos com um gosto agridoce de ter conseguido sobreviver ao mandato bolsonarista com tanta ladeira abaixo (redefinindo o que é estar no fundo do poço nesse país) e também dos sinais de preparação eleitoral (as liberações de armas à população, as deliberações arrastadas de uma CPI etc).
Com certeza, isso tudo vai ser linha numa costura do que é fazer ciência como estou fazendo – uma crise pandêmica foi chão para uma cruzada anti-ciência, anti-vacina, anti-saúde. ANTI-SAÚDE! Nisso, tenho um déjà-vu, aquela sensação de viver de novo como se fosse a primeira vez: tenho mais certeza de que buscar pela saúde ou vida ou dignidade não é um desejo democrático em comum que posso esperar do outro. Quando olho para outra pessoa, não posso mais garantir que nós duas partimos desse mesmo ponto, porque são tantos bolsonaros e bolsonarismos. E isso muda como é estar no mundo. Fico mais amarga e atenta.
Nesses anos, aprendi a dizer no meu calendário: “Ano 1 da pandemia”, “estamos no ano 2”, “nova mutação do vírus no ano 3”. É assim que também conto os dias. Nesses tempos, meu corpo mudou (engordei, engordei mais, emagreci), já tive a certeza que estava louco quando tomava banho, dormi muito mais do que eu costumo e sonhei. Mas se eu contar “aqueles” sonhos, só quem é de terreiro tem ouvido.
Bem poucos, alguns sonhos foram diretos. “Você precisa parar de fumar” (e perdi quase toda a vontade há dois anos). “Meu nkisi te chama”, sonhei com meu irmão de santo dizendo, acordei e o liguei. “Ele não é bom para você”, meu erê avisou e pouco tempo depois me afastei de alguém. Já outros sonhos eram de perseguição, estar perdido em alguma cidade, ser coberto por uma rede de ouro, ouvir um ponto de umbanda que não conhecia antes. Sonhos de Fanon ou de Carolina Maria.
O ano 2 da pandemia foi um pouco mais difícil no começo. Como quem lembra, nesse quarto em que escrevo a carta, eu cantei, defumei, chamei e fui chamado – numa dessas vezes, em uma série de sonhos, e pedi ajuda. Um egbomi jogou os búzios e disse quem disse o que precisava. Ironicamente, foi com isso que tive que andar pela minha cidade de outro jeito (ainda em pandemia): não para visitar uma família, ir ao mercado etc, foi para procurar água doce, mata, encruzilhada.
Encontrei a minha mesma cidade com bem menos gente, menos metropolitana, mais cheia de árvores, mais cheia de poços d’água e de casa antiga, esquecida ou abandonada. Antiga, esquecida e abandonada. Um pequeno interior no centro de uma cidade. Precisar de terra, ndengo. “A terra é de quem não tem terra”, escreve Grace Passô em Mata Teu Pai.
Meu corpo sente saudade, me lembra em sonhos que tenho assentamento dentro de/no corpo: garganta, coração, pés, gases, sangue, cuspe, cu. E pede, tem fome: banho de folha, dormir de esteira, presente no pé de planta, fio de conta, três travesseiros. O que um corpo vai pedir em 2022, ano-guerra? Que todo quebrante de branco caia por Terra e que para ela vire alimento, assim como meu corpo será, pois ela (a Terra), como disse um mais velho, aceita tanto a flor quanto o cuspe.
PARA MAIS COLUNAS PSICOTERAPRETO, CLIQUE AQUI.
Cuidador online, psicólogo clínico e acompanhante terapêutico. CRP 11/15308. @maianetopsi