A revista Joyce Pascowitch decidiu que seria bacana discutir “moda e estilo” a partir de uma perspectiva diferente. Aí, logo na primeira edição do ano, e um ano no qual cada vez mais a gente precisa se unir, aquela história do “ninguém solta a mão de ninguém”, o leitor se depara com que timo de conteúdo?
ESTE: “Xô, Casa Grande e Senzala: A onda agora é uniformes de domésticas criados por estilistas”. Sim, você leu direito. CASA GRANDE E SENZALA, uma referência escancarada ao livro do sociólogo Gilberto Freyre, relacionada a uma categoria profissional em pleno século 21. E mais: NA CAPA.
Ah…não enxerga nada demais nisso? Vamos lá.
Qual interesse PÚBLICO há numa reportagem sobre UNIFORMES para empregadas domésticas? Repare que não me refiro aos uniformes ESTILIZADOS, o foco da revista. Falo em UNIFORMES. Uniformes de modo geral.
Respondo: NÃO HÁ INTERESSE PÚBLICO. Não haveria nem se a pauta fosse sobre “uniformes de modo geral”. Porque a natureza do trabalho de uma doméstica não exige, nunca exigiu, o uso de uniforme, seja ele qual for. Isso foi algo imposto pelos mais ricos como forma de demarcação social.
Ao publicar esse tipo de conteúdo, a revista apenas reforça o estereótipo de que empregada doméstica precisa estar numa posição de inferioridade. Porque é exatamente isso que os patrões desejam quando não permitem a elas vestirem o que lhes for mais confortável durante o expediente. Ou quando saem de casa e levam a empregada consigo.
Devidamente fardada, claro.
Eles querem nada além do que mostrar ao mundo o lugar da empregada. Sabem que, de farda, ela facilmente será identificada como não pertencente à família. Como subordinada. Como alguém sem instrução e moradora de periferia, no sentido mais pejorativo das duas expressões, porque é assim que algumas categorias são vistas socialmente.
E nós, comunicadores, não podemos endossar esse tipo de situação.
JAMAIS.
Se a farda em questão é feita por estilistas, agora sim me refiro diretamente ao foco da matéria, qual tipo de mensagem a revista quer passar? Nada mais óbvio. As madames, não satisfeitas com a exibição pública das empregadas, agora terão grifes assinando os pedaços de pano que elas exigem que as domésticas usem.
Terão um pouco mais de assunto. “Amiga, esse conjuntinho aí você fez com quem? O meu é de fulano de tal”. Chega a ser bizarro pensar nisso. Porque não importa o público para o qual a empresa de comunicação produz, muito menos quem escreve a reportagem, o respeito à integridade humana deve ser o elemento norteador de cada palavra publicada. E essa chamada de capa, convenhamos, colegas, está longe disso.
A comunicação – em todas as suas vertentes – tem de ser um lugar de solidariedade. Jamais de repressão. Isso é imperativo. A comunicação nunca deve ser usada para endossar situações que empurrem quem quer que seja para qualquer lugar ruim. E todos sabemos ao que empregadas domésticas são submetidas aqui, um país que ainda faz uso massivo desse tipo de mão de obra enquanto várias partes do mundo vão no sentido oposto.
Mas, Bruno, por que isso virou motivo de discussão no Ceará Criolo? Esse não é um portal sobre pretos e para pretos? Então…deixa eu te dizer mais uma coisinha que talvez você não tenha se dado conta (ou até se deu, mas prefere ignorar): são as mulheres negras a maioria das domésticas do Brasil. Em algumas regiões do nosso país, elas chegam a ocupar 80% dessas vagas.
E outra coisa: o trabalho doméstico é uma herança escravocrata. Negras (da Senzala) que eram amas de leite e mucamas das senhoras brancas (da Casa Grande) tornaram-se as cozinheiras, lavadeiras, babás e faxineiras do mundo moderno. E não é um estilista assinando um pedaço de pano que vai fazer delas menos estigmatizadas diante de séculos de exploração.
Em resumo: a pauta é um desserviço.
Taí o(s) porquê(s).
Antes do fim, me permitam um adendo. Após ler a matéria, sinto uma necessidade IMENSA de responder ao questionamento de uma madame que encerra a reportagem. Ela dispara: “Por que ninguém fica enchendo o saco dos hospitais que obrigam médico a usar uniforme?”
Vamos lá: 1) Talvez porque hospitais não estão em busca de estilistas que desenham jalecos de médicos? 2) Vai ver porque não existe a profissão “estilista de jaleco de médico?” 3) Quem sabe porque a medicina não é uma herança dos tempos de escravidão e quase todos os médicos deste país são o quê? Brancos.
Pela atenção, obrigado.
Comunicólogo e mestre em Antropologia, é especialista em Jornalismo Político e Escrita Literária e tem MBA em Comunicação e Marketing em Mídias Digitais. Foi repórter e editor dos jornais O Estado e O POVO, correspondente do portal Terra e colaborador do El País Brasil. Atua hoje como assessor de comunicação. Venceu o Prêmio Gandhi de Comunicação, o Prêmio MPCE de Jornalismo e o Prêmio Maria Neusa de Jornalismo, todos com reportagens sobre a população negra. No Ceará Criolo, é repórter e editor-geral de conteúdo. Escritor, foi finalista do Prêmio Jabuti de Literatura 2020.
1 comentário
Triste essa realidade de que o preto negro seja sempre visto como minoria. Pode ter phd doutourado mais se nao se impor sera sempre visto como menor.