A festa de 50 anos da, até então, diretora da revista Vogue Brasil foi amplamente criticada nesta semana. E com razão. A reprodução do período doloroso até hoje no povo preto não pode mesmo ser decoração para se comemorar nada. Releituras de sinhá e senhores de engenho, mucamas, a servidão do negro para com o branco. Mesmo sabendo o que a branquitude é e do que é capaz, é quase impossível ver uma cena dessas nos dias de hoje e não pensar: o que se passa na cabeça dessa gente? Como fazem uma festa dessas?
Mas tem me revirado o estômago como o racismo no Brasil mais uma vez se mostra um crime perfeito, como já dizia o antropólogo Kabengele Munanga. As mulheres negras que trabalharam na recepção do evento não estavam “passando pano” para racistas. Estavam trabalhando dignamente. Muitas delas são a única fonte de sustento das famílias. Agora sob ameaças e medo de represálias, várias não estão indo trabalhar e saíram prejudicadas de um fato quando, pra variar, são vítimas.
O problema não está nos profissionais que trabalharam na festa, e sim, em quem os utilizou de maneira deturpada e desrespeitosa. A velha (e eficiente) tática de fazer oprimidos atacarem oprimidos. E o opressor que montou e se beneficia do sistema diz não ter a intenção de ofender e pronto. Segue seu baile enriquecendo às nossas custas.
O “Ninguém larga a mão de ninguém” está valendo mesmo? Não estamos largando justo a mão de quem deveríamos cuidar?
Outra questão não tem me deixado em paz: a gente só se indignar com fatos de grandes repercussões. É óbvio, episódios como esse precisam mexer conosco. Porém, devemos praticar o exercício da autoavaliação. Até que ponto nossa indignação é seletiva? Situações como as da festa são reproduzidas diariamente, o tempo todo, nos mais variados espaços, inclusive no nosso ambiente familiar. Conseguimos enxergar? Enxergando, fazemos algo a respeito?
Elisa Lucinda conta uma historinha onde suas amigas ricas ficavam se gabando da lenda onde a empregada é membro da família. Para comprovar, citavam a árvore genealógica a serviço de suas casas. Avós, pais, filhos e os ainda por vir. Todos destinados a dar continuidade à servidão. “Membros da família” com quartinhos nos fundos, sem lugar à mesa na hora das refeições e com tarefas sem fim. Ela (Elisa) de pronto rebateu dizendo não reproduzir ciclo de escravidão na própria casa. Hoje a filha da sua funcionária é juíza!
Estar atento, forte e junto nunca foi tão necessário. O racista sempre é o outro, afinal, eu até tenho amigo negro, colega de trabalho “moreno” e sou rodeada de gente preta, né? Será que não trazemos à tona as sinhás e senhores de engenho quando estamos em restaurantes, shoppings e por aí vai?
Somos antirracistas só até onde não mexa nos nossos privilégios? O racismo nos explora, nos invisibiliza, nos diminui, nos joga uns contra os outros, transforma o algoz em vítima e a vítima em algoz. Enquanto não tivermos consciência de que fomos criados para ser racistas, que ele é um sistema de engenharia complexa e deve ser entendido, dificilmente teremos mudanças reais. Quando se tira a venda dos olhos, constatamos a nossa contribuição direta para a manutenção dessa estrutura perversa. É preciso coragem.
Para não restar dúvidas: o alvo é o opressor, inclusive o que mora em mim.
Publicitária. Movida por decibéis, apegada ao escurinho do cinema e trilha o aprendizado de ser uma mulher preta. Trabalhou em agências de Fortaleza e Salvador ao longo de 10 anos. Hoje responde pela Mídia na Set Comunicação, house da Educadora 7 de Setembro.