Alunos reivindicam mudança nas matrizes curriculares para autores negros ganharem mais espaço. Na UFC, melhor universidade do Norte e Nordeste brasileiros, ainda é irrisória a carga horária dedicada às relações étnico-raciais. No Brasil, apenas 16% dos professores autodeclaram-se negros
“As instituições devem ser representativas também para o negro.
Quando tivermos isso, não teremos mais problemas de raça.”
Abdias Nascimento, poeta, ator, escritor, dramaturgo,
artista plástico, professor universitário, político
e ativista dos direitos civis e humanos
da população negra.
Agora que negros são (enfim) maioria discente no Ensino Superior brasileiro, ganha força a reivindicação de movimentos estudantis e sociais sobre o uso de epistemologias mais diversificadas para a produção de conhecimento. Ou seja: os alunos querem que pretos figurem em sala de aula não só como escravizados ou na figura estereotipada da mercadoria e/ou da mão de obra.
É preciso abrir espaço para os autores negros. Eles, os jovens, estão dizendo a plenos pulmões que precisam ouvir o que intelectuais da mesma cor de pele deles têm a dizer sobre o mundo. E além: que as matrizes curriculares precisam ter um leque maior de disciplinas voltadas à discussão das relações étnico-raciais.
Se a maioria da população brasileira (e cearense) é autodeclarada negra, e mais da metade dos universitários também o são, nada mais lógico e justo, portanto, do que eles passarem a se enxergar na construção dos processos educacionais dos quais são parte fundamental.
“A Academia sempre foi branca e pensada para uma elite. O que temos de produção intelectual sobre o mundo é embasado em teorias eurocêntricas. Há importância de estudar teóricos da Europa e dos Estados Unidos, mas precisamos fazer críticas muito fortes. Porque todo esse conhecimento é enviesado por uma ordem sistêmica branca. E é importante nós, negros, termos referências, já que elas nunca nos foram dadas. A gente tem que falar de autores negros”, afirma Andy Khamidi, de 30 anos.
No Brasil há pouco mais de uma década, esse africano de Cabo Verde faz mestrado interdisciplinar em História e Letras na Universidade Estadual do Ceará (Uece). Contudo, frequenta espaços da Universidade Federal do Ceará (UFC), que mesmo considerada a melhor do Norte e Nordeste do Brasil (pela Ranking Web Universities) tem apenas 11 componentes curriculares cujo tema transversal é “relações étnico-raciais e africanidades.”
O levantamento é da Coordenadoria de Projetos e Acompanhamento Curricular da Pró-Reitoria de Graduação da própria UFC, que ainda revela um agravante: algumas dessas disciplinas são optativas (como o próprio nome sugere, não obrigatórias e de livre escolha do aluno).
Somados, todos esses 11 componentes curriculares têm carga horária total de 640 horas. O equivalente a dois semestres do curso de Jornalismo. Isso dentro do universo de 119 cursos de graduação oferecidos atualmente pela UFC. Procurada pelo Ceará Criolo, a universidade disponibilizou a listagem dos componentes curriculares, mas não se manifestou sobre ter uma proposta pedagógica ainda tão eurocentrada e embranquecida.
“Não tem como nós estudarmos História do Brasil a partir somente da perspectiva do Gilberto Freyre, por exemplo, que é bastante criticado por historiadores negros pelo modo como pensava a formação do país. Quando a intelectualidade preta reivindica um olhar outro sobre o conhecimento, não está dizendo que temos que colocar um conhecimento no lugar de outro. Até porque, na verdade, isso já acontece quando os pensadores brancos fazem uma escolha metodológica por conhecimentos do norte global, do norte ocidental. Nós estamos reivindicando a diversidade outra desses critérios epistemológicos. Não é que pesquisadores brancos sejam incapazes de produzir conhecimento compromissado com a luta antirracista. Mas elas falam a partir de outro lugar, de outra experiência”, diz Isabella Santos.
Aos 21 anos, a jovem cursa História na UFC. Nasceu, cresceu e vive até hoje no Barroso, periferia de Fortaleza, de onde ingressou no Ensino Superior, em 2016, pela política afirmativa de cotas. Tem um perfil econômico comum entre negros acadêmicos: renda familiar baixa e foco prioritário dos programas sociais do poder público. E ainda não se enxerga no currículo do curso que está prestes a concluir.
“Nós ainda estamos mergulhados numa educação eurocentrista e com os mesmos instrumentos do passado. Nós defendemos a universidade, mas queremos construir um outro modelo de universidade. Os currículos precisam mudar urgentemente para um modelo que pense na diversidade étnica”, acrescenta Isabella.
PROFESSORADO
Se, por um lado, os estudantes universitários autodeclarados negros são maioria, o mesmo não se pode dizer dos professores. Pretos e pardos nesse ofício são apenas 16%, conforme levantamento do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira, o Inep.
Em números brutos, isso significa a existência de apenas 62 mil educadores negros num cenário de cerca de 400 mil profissionais em todo o Ensino Superior brasileiro. “Tive uma formação na graduação e na pós muito atravessada por leituras de autores homens, brancos, sudestinos, americanos e europeus. Só mais recentemente, a partir dos debates sobre a decolonialidade do pensamento, comecei a perceber a importância de me posicionar em sala de aula através de leituras de autores e autoras negras, brasileiras, pessoas que falam desse nosso lugar, das nossas questões”, pontua a mestre em Ciências Sociais e doutora em Sociologia Glícia Maria Pontes Bezerra.
Professora da UFC e autoreconhecida negra, ela avalia que a chegada dos cotistas ao ambiente acadêmico trouxe a desigualdade étnico-racial brasileira para o centro do debate universitário. E que, mesmo sem a mudança formal dos currículos, isso por si já tem alterado a rotina de sala de aula, inclusive com a promoção de debates transversais.
“Sempre que posso tento abrir espaços para o debate sobre representatividade, pois percebo que tanto eu quanto os estudantes aprendemos muito. Não adianta o estudante saber as últimas tendências do Branding se ele não olhar para o mundo como um lugar formado por pessoas com diferentes condições de vida. Estou desde o doutorado buscando ler mais o que é produzido no Brasil, e são esses textos que trabalho mais nas aulas. Ainda sem um recorte étnico-racial claro, mas sempre tocando em algumas feridas. Isso é, por vezes, um pouco doloroso, mas abre também o nosso olhar para questões antes invisíveis”, acrescenta Glícia.
Invisíveis como os professores negros, que não figuram na memória afetiva de nenhum dos pretos ouvidos para o “Quilombo Acadêmico”. Porque simplesmente quase não existem, em qualquer que seja o grau de ensino – mas em especial nas universidades, onde o Censo da Educação Superior indica que quanto maior o grau de escolaridade maior a desigualdade étnico-racial.
Comunicólogo e mestre em Antropologia, é especialista em Jornalismo Político e Escrita Literária e tem MBA em Comunicação e Marketing em Mídias Digitais. Foi repórter e editor dos jornais O Estado e O POVO, correspondente do portal Terra e colaborador do El País Brasil. Atua hoje como assessor de comunicação. Venceu o Prêmio Gandhi de Comunicação, o Prêmio MPCE de Jornalismo e o Prêmio Maria Neusa de Jornalismo, todos com reportagens sobre a população negra. No Ceará Criolo, é repórter e editor-geral de conteúdo. Escritor, foi finalista do Prêmio Jabuti de Literatura 2020.