É cada vez mais frequente a queixa de pessoas com sofrimentos psicológicos. Gente que precisa de suporte, não de julgamentos. Especialmente a população negra, a mais afetada. Tanto quanto um tabu, a saúde mental é um tema necessário. Urgente. Nós TEMOS que perder o medo de falar sobre o que sentimos. Pelo bem da nossa existência enquanto povo
Quando viver se transformou num verbo longo demais, o verbo das lonjuras, a jovem foi na contramão do medo. Pediu ajuda. Falou de aflições e incertezas. Sobre miudezas, solidão e incapacidades. “É um vazio difícil de explicar. Só sabe quem sente. Mas é tipo estar rodeada de pessoas e sentir como se ninguém estivesse ali. Você não enxerga saída pra nada.”
Essa ficha caiu pra Socorro Dantas, de 21 anos, durante um passeio despretensioso. “Eu estava de folga e a gente decidiu dar uma volta na praia. Olhei pro céu, olhei pro mar, vi tudo aquilo tão imenso, tão cheio de gente e me senti como se estivesse presa, sozinha, numa caixa pequena. A sensação era de estar sufocada. Foi quando virei pro meu namorado e disse: ‘amor, o que eu tô fazendo da minha vida?’.”
Pensou e tomou a decisão de continuar nela. Na vida. Percebeu que o sentimento se repetia. Há semanas estava assim. E procurou justo quem a trouxe ao mundo. “Eu não via sentido nenhum na minha existência e aquilo estava me angustiando. A única coisa que me mantinha no eixo era o meu trabalho [Socorro cuida de uma senhora acamada de 91 anos]. Até que senti uma vontade forte de me abrir com alguém. Fiquei com vergonha, mas mesmo assim falei pra minha mãe que precisava de ajuda. Porque eu sei que preciso de ajuda! Eu ‘tava’ prestes a fazer uma besteira…”
Não fez. Socorro olhou pro passado, lembrou de um amigo vivente num mundo de grande sofrimento psicológico e teve mais certeza da própria escolha: viver. Agiu diferente também de gêmeos dessa aflição e cujo embaraço de expor sentimentos é maior do que qualquer outra coisa, ao ponto de virarem luto. E de forma recorrente com a cor da pele, negra, sendo marcador social.

ESTATÍSTICAS
Sessenta por cento dos jovens brasileiros que interrompem a própria vida são negros. Conforme estudo do Ministério da Saúde, o índice desse tipo de ocorrência é 45% maior na população negra de maneira em geral do que nos autodeclarados brancos. Por diversos motivos. E 90% dos casos não aconteceriam se os autores (sejam eles de quaisquer etnias) tivessem sido diagnosticados e recebido suporte quando deram sinais de dor.
Sim, eles existem. Os sinais. Quando notadas, quando ouvidas, quando têm os olhos abertos para outras possibilidades de existir, quando recebem acompanhamento especializado ou até mesmo uma intervenção medicamentosa, em situações extremas, essas pessoas evidenciam outro desfecho. O da vida.
“O sofrimento da alma é invisível aos olhos. A nossa sociedade acredita na doença que se vê e não na doença que se sente. Somente quando o sofrimento da alma se expressa no corpo físico passamos a dar a devida atenção a ele. Poderíamos poupar muito dinheiro e tempo se espaços especializados no cuidado da psique fossem priorizados no campo da saúde pública para a escuta atenta desde o primeiro relato de ‘eu não estou me sentindo bem’”, pondera o psicólogo e professor universitário Cavalcante Júnior.
O fato é que, mesmo diante de tantos avanços terapêuticos, sociais e medicinais, o tema saúde mental ainda se impõe como tabu. É tachado de assunto de esfera privada e tratado coletivamente como loucura, falta de Deus, fraqueza de personalidade ou algo desimportante. Às vezes, autodestruir-se é visto tal qual um capricho, “pra chamar atenção”, quando, na verdade, é um emaranhado de interrogações que precisam ser levadas a sério. É um pedido de ajuda!
A mácula sobre adoecimento psicológico é uma lógica perversa, que precisa ser desconstruída. Para muito mais histórias serem infinitas, do tamanho do céu e do mar vistos pela Socorro e pelos quais ela está conseguindo lutar e permanecer. “A desinformação é a maior causa do estigma em torno da saúde mental. A falta de conhecimento das pessoas dificulta o diálogo no ambiente intrafamiliar e nas instituições. Muitas questões são multifatoriais e complexas, englobando a esfera privada de quem está em sofrimento e uma problemática de saúde pública”, pondera o psicólogo Victor Melo.
CENÁRIOS
Oitenta e cinco por cento das pessoas que interromperam a própria vida no Ceará no ano passado eram negras. Em números brutos, isso significa que 545 pretos ou pardos autolesionaram-se fatalmente [enquanto brancos foram 92 (ou 14% do total)]. Entre 2010 e 2018, negros foram 68% das ocorrências (ou 3.512 episódios).
Mais de 11 mil pessoas interrompem a própria vida no Brasil a cada ano. No Ceará, os óbitos aumentaram 31% entre 2010 (488) e 2018 (643), mas mantiveram-se estáveis de 2017 (644) para o ano passado. Em Fortaleza, o crescimento foi de 46% nos últimos nove anos. Os registros saíram de 113 para 166.
Os dados constam no Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM), produto do Ministério da Saúde ao qual o Ceará Criolo teve acesso. As estatísticas são fornecidas pelas secretarias de saúde dos municípios e pela Secretaria Estadual da Saúde (Sesa). De 2010 a 2018, as ocorrências com negros aumentaram 67% no Estado. Entre brancos, 12%.
Números que são histórias que poderiam ter sido salvas se familiares e amigos tivessem conhecimento de como detectar os sinais e se a Rede de Atenção Psicossocial (Raps) tivesse acolhido esse indivíduo. Porque a precisão dele era, primeiro, falar sobre si. Sobre o que lhe afligia. Sobre viver, ao invés de encontrar na morte uma saída possível para o que enfrentava.
Em 90% das situações, o indivíduo que consuma um atentado contra si mesmo tem algum transtorno psicológico. Daí a necessidade de alguém com esse perfil falar sobre o que sente. E principalmente: pedir ajuda. “Quando você fala, você estrutura seu pensamento. Você transforma sentimentos de angústia e desespero em palavras que o outro tem acesso. Essa palavra é entendida por outra pessoa, que transforma essa palavra também em sentimentos e ressignifica a história pra que você tenha uma nova visão daqueles eventos. Você está vendo o mundo por um ângulo e o processo psicoterápico te apresenta outras perspectivas. Porque quando você está só sob os seus próprios neurônios dificilmente você se afasta de você. Você é praticamente contaminado pelo passado pra fazer o mesmo circuito de interpretação. O terapeuta vai abrir fagulhas pra você refletir sobre a vida”, explica o psiquiatra Fábio Souza.
Não (se) julgar e despir-se de preconceitos (próprios e sobre os outros) também é fundamental. “Aí, sim, a gente consegue ser de confiança pra ouvir o pedido de socorro de alguém. Notei uma vez no rosto de uma aluna algo diferente. Olhei nos olhos dela e perguntei: “o que você tem? Você não está bem”. Realmente ela não estava. Não me disse na hora, mas noutro dia precisou de socorro e me procurou. E me procurou porque viu que eu a olhei e a vi. Claro que eu tive treinamento e tenho experiência nisso. Mas todos nós podemos desenvolver sensibilidade para construirmos confiança nas relações. Lidar com o sofrimento do outro é muito difícil porque evidencia o nosso próprio sofrimento. Mas cuidar da saúde mental deve ser responsabilidade de todas as pessoas em todas as esferas”, aponta a psicóloga Isadora Dias.
Pelo bem da existência do povo negro, o que sofre com todos os determinantes sociais negativos e de exclusão do nosso país, e até para a manutenção do homem como um indivíduo na sua inteireza, é preciso deixar claro: morrer NÃO é a solução. Falar, sim. Pedir ajuda, com certeza. Viver, principalmente.
“O indicador de 85% das pessoas que interromperam a própria vida no ano passado serem negras é muito alto. Preocupa. Se a gente conseguir capacitar mais profissionais da saúde, conseguir levar a mediação escolar a todas as escolas públicas e não deixar faltar medicamentos para transtornos mais graves, a gente vai estabelecer benefícios em maior proporção para as populações mais marginalizadas. Porque são essas populações que mais usam escolas públicas, postos de saúde etc. Aí, contemplaremos a população negra”, sublinha o promotor Hugo José Lucena de Mendonça, coordenador da mobilização Vidas Preservadas, lançada pelo Ministério Público do Estado do Ceará para discutir e estimular a implementação de políticas públicas de preservação da vida.
CARTILHA DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE PSIQUIATRIA
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SAIBA MAIS
Entre 2011 e 2015, o Ceará ocupava a quinta posição no ranking nacional de casos de pessoas que interromperam a própria vida.
O fenômeno do autoextermínio tirou vidas em 2015 (563 casos) mais do que dengue (32), câncer de próstata (308), câncer de mama (322), consequências da aids (398), acidentes de moto (406) e câncer de pulmão (540).
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INFOGRÁFICOS: Rayana Vasconcelos.
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O especial Vidas Negras Importam é composto de 13 textos. Leia também:
Fique atento aos sinais, salve vidas e esquente o coração
O fator globalização e o perigo da romantizar o ato
Encontre o cuidado adequado e potencialize a (sua) vida
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Sobre redesenhos, vidas e cadeiras na praça
Fábio Souza: “É preciso ajuda porque dificilmente você se afasta de você”
OPINIÃO – Racismo e saúde mental: quais são as saídas?
BATE-PAPO COM O LEITOR: Decidimos falar de vida

Comunicólogo e mestre em Antropologia, é especialista em Jornalismo Político e Escrita Literária e tem MBA em Comunicação e Marketing em Mídias Digitais. Foi repórter e editor dos jornais O Estado e O POVO, correspondente do portal Terra e colaborador do El País Brasil. Atua hoje como assessor de comunicação. Venceu o Prêmio Gandhi de Comunicação, o Prêmio MPCE de Jornalismo e o Prêmio Maria Neusa de Jornalismo, todos com reportagens sobre a população negra. No Ceará Criolo, é repórter e editor-geral de conteúdo. Escritor, foi finalista do Prêmio Jabuti de Literatura 2020.