Talvez por já ter perdido alguns bons amigos para transtornos psicológicos graves, eu tenha me chocado diante da estatística de 85% dos casos de pessoas que interromperam a própria vida ano passado no Ceará serem negras. Todos os meus colegas que se foram eram negros. Eu sou negro.
Mas esse dado não estava lá, esperando por mim no relatório do Ministério da Saúde. Como quase nada está quando nos referimos à população negra. Foi no cuidado de quantificar pretos e pardos em meio a estatísticas globalizadas (inclusive na perspectiva étnica) que esbarrei neste número. Sim, ele é preocupante. Porque revela a possibilidade de qualquer um de nós estar lá. Sim, também revolta. Porque expõe mazelas sociais e problemas no serviço público. Mas não pode nos paralisar.
Foi por isso que o Ceará Criolo decidiu falar de vida e não de morte. Da necessidade de desmistificar a máxima do super-homem e da super mulher, em vez de remoer números desanimadores. O Vidas Negras Importam é um grito que damos para nosso povo compreender que deve perder o medo, a vergonha, o pudor ou qualquer outra coisa que o impeça de falar sobre o desviver.
Nós PRECISAMOS arrancar – mesmo que a fórceps – a (falta de) saúde mental da esfera do tabu. É isso ou sucumbirmos enquanto povo. Enquanto seres humanos. E só conseguiremos quando conversar sobre medos, angústias e aflições for tão habitual quanto dizer de uma dor que sentimos no corpo.
Daí a politização do especial já a partir do nome. A referência ao Black Lives Matter, campanha contra a violência destinada às pessoas negras, é feita porque nós entendemos que o poder público ainda não ser vigente e eficaz com uma política pública integrada para prevenir que mais gente dê cabo da própria existência é também uma forma de violência. Chega de histórias negras serem interrompidas! Nós já lideramos indicadores negativos demais para estarmos em mais um.
A escolha dos post it amarelos tanto como identidade visual quanto para elementos gráficos também não foi feita à toa. A inspiração veio da campanha Recados Amarelos, que este ano invadiu as redes sociais em setembro, mês de conscientização sobre a valorização da vida, levando mensagens de apoio e elevação de autoestima a quem precisava. Como queríamos mostrar nesse especial o quanto é urgente falarmos sobre nós e pedirmos ajuda, nada mais simbólico do que essa mobilização – que dentro do Vidas Negras Importam ganhou frases ditas por personalidades negras de várias partes do mundo.
Fizemos isso porque mais do que nunca os negros precisam de referências boas sobre si mesmos. Nós somos a todo tempo bombardeados com notícias ruins, que dizem o quanto somos inferiores e nos empurram para locais indesejados. A gente é rebaixado de toda forma. Até que adoece, desiste de viver e a mesma sociedade que nos vitimou faz o quê? Lava as mãos.
Desistir de viver é adoecer do espírito. E a história já tem provas suficientes do quanto somos um povo resistente. De fibra. De vida! Sobrevivemos a todo tipo de dominação e extermínio. Precisamos agora de gente nossa provando ser possível continuar de pé. Porque é possível continuar de pé. Chegamos, assim, a declarações de Nelson Mandela, Maya Angelou, Angela Davis, Elisa Lucinda, Malcom X, Bob Marley, Milton Nascimento, Beatriz Nascimento e tantas outras preciosidades.
O Vidas Negras Importam não foi pensado nesta perspectiva, mas acaba sendo também uma celebração do primeiro ano de atuação do Ceará Criolo. Somos fruto de uma capacitação sobre Comunicação e Igualdade Racial promovida pelo Sindicato dos Jornalistas do Ceará (Sindjorce) entre agosto e novembro de 2018, e desde então tentamos colaborar com a luta antirracista e de inclusão da população negra. Fazemos isso na raça. Sem apoio financeiro de ninguém. Fazemos porque acreditamos. Porque é necessário.
Esse especial é o nosso mais robusto produto, se pensarmos na perspectiva de elementos trabalhados. Não é só a perspectiva textual executada por mim e pelo Rafael Ayala. É a delicadeza do Mateus na foto da Socorro, na personagem que abre a série. Dois Dantas sem parentesco algum e que se entenderam tão bem no ensaio. É o talento da Rayana Vasconcelos em captar a essência da proposta e elaborar artes tão cheias de significado. É a disposição da Jéssica Carneiro de colaborar mesmo estando a 6.500 quilômetros de distância. É a mobilização e o incentivo da Tatiana Lima pra tudo sair nos conformes.
E é, por fim, mas o mais importante de tudo, a doação de todas as fontes ouvidas pra essas reportagens acontecerem. Cada especialista, cada gestor, cada assessor de comunicação e cada personagem que doou uma fração de tempo para nos ajudar ou para narrar tantas visões de mundo, o nosso obrigado.
Vidas negras importam porque vocês se importaram com o tema tanto quanto nós.
FOTO EM DESTAQUE: Mateus Dantas.
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O especial Vidas Negras Importam é composto de 13 textos. Leia também:
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Comunicólogo e mestre em Antropologia, é especialista em Jornalismo Político e Escrita Literária e tem MBA em Comunicação e Marketing em Mídias Digitais. Foi repórter e editor dos jornais O Estado e O POVO, correspondente do portal Terra e colaborador do El País Brasil. Atua hoje como assessor de comunicação. Venceu o Prêmio Gandhi de Comunicação, o Prêmio MPCE de Jornalismo e o Prêmio Maria Neusa de Jornalismo, todos com reportagens sobre a população negra. No Ceará Criolo, é repórter e editor-geral de conteúdo. Escritor, foi finalista do Prêmio Jabuti de Literatura 2020.