Os anos pós-abolição representaram para negros(as) a continuação da luta por liberdade, tomando novas feições que se materializam, até nossos dias, nas batalhas diárias por reconhecimento social e na constante peleja pela preservação de suas práticas culturais: poder realizar festas, professar a fé e cultuar divindades em lugares de memória e de referências identitárias e afro-brasileiras. Há numa sociedade que por muito tempo negou a negritude cearense. Essa é uma questão presente em minhas pesquisas.
A afirmação corriqueira e ainda presente nos dias atuais de que “o Ceará não tem negros” não deve ser considerada um comentário simples. Ela possui uma força e um efeito que extrapolam os limites do estado. Coloca no campo da invisibilidade um conjunto de histórias e vivências de mais de um século que ainda não foi suficientemente estudada, já que consideramos que esse processo de negação do negro aqui se fortalece nos anos pós-abolição.
Esse procedimento de negação e/ou invisibilização dos não-brancos é parte de um projeto maior patrocinado pelas elites: a nação brasileira pretende-se num futuro não muito distante ser branca. Portanto, a prática de apagar a existência de povos e etnias da história em terras alencarinas não se limitou só aos negros. Há casos bem anteriores a 1884. Em 1863, o então presidente da Província do Ceará, José B.C. Figueiredo Junior, afirmou em relatório não existirem índios aqui. Nem como aldeados nem como índios bravos.
Ele diz o seguinte:
Já não existem aqui índios aldeados ou bravios. Das antigas tribus de Tabajaras, Cariris e Potiguaris, que habitavam a província, uma parte foi destruída, outra emigrou e o resto constituiu os aldeamentos da Serra da Ibiapaba, que os Jesuitas no principio do seculo passado formaram em Villa Viçosa, S. Pedro de Ibiapina, e S. Benedicto com os índios chamados Camussis, Anacaz, Ararius e Acaracú, todos da grande família Tabajara. Com a extinção dos Jesuitas, que os governavam theocraticamente, dacahiram esses aldeamentos, e ja em 1818 informava um ouvidor ao governador Sampaio que os índios iam-se extinguindo na Ibiapaba, onde tinham aqueles religiosos um celebre hospicio no lugar denominado Villa Viçosa, que com os outros acima indicados abrangem a comarca deste nome. E nelles que ainda hoje se encontram maior número de descendentes das antigas raças; mas andam-se hoje misturados na geral da população.
Temos, portanto, através de um relatório, o apagamento dos povos indígenas do Ceará. Esse documento, ao que tudo indica, não teve nenhum caráter jurídico e “tornou-se uma declaração simbólica tão enfática no desaparecimento dos índios do Ceará.”1
Este fato (e tantos outros que se processam na segunda metade do século XIX (mas não se encerram nele)) é parte, como já foi dito, de um projeto da elite dominante que se intensifica com o fim do tráfico atlântico em 1850 e que se estende até nossos dias: a implantação da ideologia do embranquecimento. Não por acaso, dois anos após relatório, em 1865, temos o lançamento do livro Iracema, do escritor cearense José de Alencar. Nesta obra, vê-se apresentada a morte simbólica dos povos indígenas e a construção do mito de origem do povo brasileiro. Renato Janine, em Iracema ou a fundação do Brasil2, afirma, ao comentar a tragédia da morte desta: “Essa morte, porém, não é apenas sua, é a de seu povo, a de sua identidade.”
Na verdade, o projeto de embranquecimento do imaginário social tem na primeira geração dos romancistas no Brasil (1836 a 1852) seu ponto forte. Baseados no binômio “nacionalismo-indianismo”, suas obras terão um papel importante nesse processo de invisibilidade dos negros. É notória a ausência intencional destes em seus romances. O mundo ficcional, “o imaginário desses romancistas estava impregnado de valores brancos, o seu modelo de beleza era o grego-romano e seus heróis e heroínas tinham de ser pautados por esse modelo.”3
Este projeto ideológico não se limitou nas décadas seguintes ao mundo ficcional dos romances. Ele esteve presente também na produção dos primeiros cientistas sociais: Silvio Romero, Nina Rodrigues e Euclides da Cunha. No Ceará, esta visão passa a ser manifestada na produção do conhecimento histórico, materializada nas pesquisas e textos dos intelectuais do Instituto Histórico, Geográfico e Antropológico do Ceará, criado em 1887. Segundo Almir Leal,4
Para esses historiadores a busca da verdade histórica sobre as origens do Ceará não se resumiu apenas ao impulso intelectual cientificista/positivista, na definição de um todo coerente, mas sugeriu à própria geração o lugar social privilegiado que ocupavam na fundação de uma imagem do Ceará para o restante do país.
A busca por uma verdade histórica e a fundação de uma imagem do Ceará associada ao projeto civilizador, moderno e racional alimentada pelo advento da República, significou também a representação dos negros e índios, quando não invisibilizados, exibidos como atrasados, inferiores e selvagens em seus estudos históricos. Em contrapartida, tais artigos, amparados por teorias positivistas e evolucionistas, terão como marca a valorização do pensamento e da cultura branco europeia e inferiorização dos saberes e fazeres africanos, afro-brasileiros e indígenas.
Segundo o antropólogo Jeferson Barcelar, ao tratar das relações sociais e raciais no pós-abolição em Salvador, na Bahia,“para manter a ordem vigente, sem alteração nas posições ocupadas, tornava-se indispensável para os grupos dominantes afirmar a supremacia dos brancos e a inferioridade dos ex-escravos…”. E acrescento: dos seus descendentes.
Uma política de segregação deveria ser evitada a qualquer custo, pois dificultaria um dos principais mecanismos e força-motriz do “branqueamento”: a miscigenação. Durante o governo Vargas (década de 30 do século XX), o discurso da mestiçagem serviu para ocultar os conflitos raciais e um incentivo maior a imigração de europeus com a finalidade do branqueamento da nação. Com a valorização de um discurso que enaltecia o branco e a cultura europeia, tem-se em paralelo, no que diz respeito à cultura e ao povo negro, uma prática paradoxal: à medida que há todo um processo de absorção e nacionalização de algumas culturas de matriz africana (o samba), tem-se a negação do negro e de outras culturas a ele relacionadas (candomblé). Em Fortaleza, temos como exemplo o Maracatu, que em 1936 é convidado a sair na avenida (como até hoje) com outras agremiações e não mais nos bairros.
Há um processo de apropriação desta cultura afro-cearense pelo Estado cearense, que nega a identidade africana e a incorpora como parte da cultura cearense (esvaziando-a de sentidos), tratando-a como “conjunto carnavalesco” e não como de herança congo-angolana.
“Maracatu Az de Oiro”
A’ noite de ontem, cumprindo o seu programa, o simpatico conjunto carnavalesco “Maracatu Az de Oiro” visitou-nos mais uma vez envergando jaz a sua fantasia tipica e fazendo bonita demonstração do que vai ser o carnaval no concreto. A turma do “Az de Oiro” está magnificamente ensaiada e disposta a tudo fazer para conquistar mais uma vez o primeiro lugar na classificação dos blocos e cordões.5
Essa realidade paradoxal é percebida da seguinte forma. Nega-se o negro e a negritude. Porém, o maracatu é uma manifestação cultural de origem congo-angolana que é apropriada pelo Estado como representante da cultura cearense. Seu caráter indenitário é diluído numa identificação regional. Um outro fenômeno é aqui percebido sobre os sujeitos produtores desta cultura. Evita-se, neste momento, a chamar as pessoas de pele escura de negras, porque tal palavra está associada a um sentido negativo e pejorativo. Daí esses passarem a ser tratados como morenos. E a negritude é escondida na morenice. Estes (os morenos) não possuem referências culturais e históricas.
O discurso da mestiçagem se apresenta como uma denúncia radical do discurso da raça: o bom não seria a pureza, mas sim a mistura racial. O problema desse modo de pensar é que ele estrutura uma argumentação que exalta o negro e o índio sem nunca deixar de destacar a superioridade do português, que passa de algoz a aliado, deixando clara a contradição presente no processo. Daí dizer que o Brasil é produto da união de três raças: a branca, a negra e a índia é, na prática, a valorização de apenas uma. É a ideologia da “fábula das três raças”, que Roberto da Matta6 tão bem discute. A ideologia da mestiçagem, que estava aprisionada nas ambiguidades das teorias racistas, ao ser reelaborada pode difundir-se socialmente e se tornar senso comum, ritualmente celebrado nas relações do cotidiano ou em grandes eventos como o Carnaval e o futebol.7
No Ceará, será comum o uso e a manipulação desse discurso. Dizemos que somos mestiços e que não somos racistas. Porém, quando os povos indígenas e negros começam a aparecer e revelar suas identidades culturais presentes na cultura cearense, aparece um intelectual ou grupos que procuram negá-los.
Essa é uma realidade historicamente marcada pelos conflitos e lutas raciais no Brasil e, especificamente, no Ceará. Entretanto, concordando com Michel Foucault, “que as resistências ao poder devem ser entendidas como aquelas que visam à defesa da liberdade”,8 é preciso que se tenha em mente que por mais que tenham tentado apagar da história nossas formas de lutas, vivências e saberes, resistimos sempre.
A década de 1980 foi um marco na história dos negros cearenses. É nesta década que a invisibilidade começa a ser questionada e desconstruída. Há uma visibilidade do negro no Ceará através da comunidade negra de Conceição dos Caetanos (localizada no município de Tururu, a 119 quilômetros de Fortaleza) e do surgimento do Grupo de União e Consciência Negra do Ceará (Grucon-CE). A comunidade de Conceição dos Caetanos se torna uma referência para o movimento negro. A partir desta comunidade, frutos de um trabalho com pessoas ligadas ao Grucon-CE9, foi possível outras comunidades serem mapeadas e encorajadas a se organizarem.
1 ANTUNES. Ticiana de Oliveira. 1863: o ano em que um decreto – que nunca existiu – extinguiu uma população indigena que nunca deixou de existir. Aedos. Nº 10. Vol 4. Jan/Jun 2012. Págs 8 à 27. Disponível: https://www.academia.edu/15365742/1863_o_ano_em_que_um_decreto_extinguiu_os_%C3%ADndios_cearenses_que_nunca_deixaram_de_existir.
2 RIBEIRO, Renato Janine. Iracema ou a fundação do Brasil. In, FREITAS, Mário Cezar de. Historiografia brasileira em perspectiva. São Paulo: Contexto, 2000. Pág. 410.
3 MOURA, Clóvis. Sociologia do Negro Brasileiro. São Paulo. Editora Ática, 1988. Pag. 26.
4 OLIVEIRA, Almir Leal de. O Instituto histórico, geográfico e antropológico do Ceará (1887 – 1914). São Paulo. Pontifícia Universidade Católica – PUC. Tese de doutorado, 2001. Pág.12.
5 Instituto Histórico do Ceará – Jornal O Estado. Domingo, 23 de fevereiro de 1941.
6DAMATTA, Roberto. Relativizando: uma introdução à antropologia social. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 1987.
7 ORTIZ, Renato. Cultura brasileira e identidade nacional. São Paulo: Brasiliense, 5ª Ed., 9ª reimpressão 2006. Pág. 41.
8 CASTELO BRANCO, Guilherme. As resistências ao poder em Michel Foucault. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-31732001000100016
9 RATTS, Alecsandro J. P. Fronteiras Invisíveis: territórios negros e indígenas no Cera. Dissertação de Mestrado em Geografia Humana. São Paulo: FFLCH-USP.1996
Graduado em Ciências Sociais e mestre em História Social pela Universidade Federal do Ceará (UFC). É pesquisador da Cultura e História do Negro no Ceará.