“Nós desconfiamos do entusiasmo. […] O entusiasmo é, por excelência, a arma dos impotentes. Daqueles que esquentam o ferro para malhá-lo imediatamente. Nós pretendemos aquecer a carcaça do homem e deixá-lo livre. Talvez assim cheguemos a este resultado:
o Homem mantendo o fogo por autocombustão.”
(Frantz Fanon, Pele Negra, Máscaras Brancas, [1952] 2008)
Como ser um eu mesmo sem sufocar o outro e como abrir-se ao outro sem asfixiar o eu mesmo?
Encarada como a questão capital na contemporaneidade, a pergunta do poeta e filósofo martinicano Édouard Glissant (1928-2011) é ao mesmo tempo um convite a sairmos dos confinamentos que nos foram impostos. Seu pensamento e escrita habitam a travessia, a circulação e a opacidade como outras possibilidades de ler o mundo-cotidiano que conhecemos. É também a partir de um estudo crítico dos processos coloniais, os seus efeitos e legados, que Glissant pensa em toda sua obra as sociedades colonizadas e colonizadoras no mundo.
Em face ao poder do Mundo-Branco, isto é, essa força motriz colonial-capitalista-heteropatriarcal inventora do Outro, o filósofo e psiquiatra Frantz Fanon (1925-1961) entendeu que só existe sujeito no gesto de viver. Para Fanon, viver é simplesmente não morrer. Morte e vida participam da possibilidade de agir no presente e modelar o amanhã, seja por meio da transgressão ou pela demolição de toda e qualquer clausura. Pois estar vivo é se ver aberto ao mundo. Essa fenda anuncia por si só a chance de corrigir as assimetrias da relação. Essa correção passa também pela dimensão da reciprocidade, prestação de cuidado e mutualidade de tudo que é vivo – humanos ou não-humanos.
Logo, os corpos cristalizados e alvos desse poder mortífero do Mundo-Branco, ao recusarem as políticas de confinamento e castração, iniciam por si próprios (sempre em coletividades ou aquilombamentos) a abertura dos múltiplos cercados e a retirada de espirais clausuras. A consciente negação de tudo aquilo que nos mantém de cócoras. A meta é erguer-se, olhar no olho do colono e sepultá-lo. No entanto, sem cair nas armadilhas da repetição e/ou dos maniqueísmos coloniais, não descarto as múltiplas dificuldades de livrar-se dessas lógicas do recinto fechado, tendo a raça, por sua vez, a identidade-raiz como um dos principais pilares que sustentam o Mundo-Branco.
Me refiro ao fato de todas nós termos interiorizado, de forma assimétrica (estrutural e subjetiva) e, não obstante, desejado os termos dessas políticas de castração e aprisionamentos. De(s)colonizar não significa apaixonar-se pelo poder. Muito pelo contrário, a identidade-raiz fabricada pelo Mundo-Branco (leia-se Mundo Moderno e todas as suas categorias ontoepistemológicas inventadas pela Europa) incita os corpos a habitá-lo com sua pele e sua Verdade capturando-os, fixando-os e eliminando-os.
E mais: conforme o filósofo Achille Mbembe (2020), entramos todos na era do Brutalismo, isto é, a imbricação ou indistinção entre o vivo e o não-vivo. A objetificação e a obsolescência programada de todos os viventes (humanos e não-humanos) é a regra do nosso tempo. É a partir do pensamento de um devir-histórico que um emaranhado de práticas se reencenam na vida cotidiana do presente século.
A Plantation, por exemplo – essa forma piramidal de organização e compreensão social, assim como estrutura de confinamento que retroalimenta as lógicas escravagistas -, produzia diferentes formas de inculcamentos coloniais em mulheres e homens africanos. Comparado ao Sistema da Plantação (e também a experiência da violência-fundadora do Navio Negreiro), foi o corpo-negro – essa figura múltipla e inventiva, ao ser arrancado de sua terra de origem, apartado dos ritos aos seus deuses protetores e da sua comunidade tutelar -, que se viu despojado de tudo e de toda e qualquer possibilidade de existência, inclusive da sua própria língua, pois nunca se colocava mulheres e homens africanos que falavam a mesma língua juntas no ventre dos Navios Negreiros e nas Plantações.
A linguagem é o próprio sistema da vida. Essa crítica da vida enquanto crítica da linguagem é precisamente aquilo a que o termo “negro” nos convida: transgressão e opacidade. Nesse sentido, a linguagem é um ato em sua dimensão política.
Libertar-se do racismo passa por uma multiplicidade de práticas de reconfiguração e insubmissão. Trata-se da capacidade não somente de dizer não, mas também de dizer sim. De nomear ou assinalar o desvio. A meta, reitero, é cada vez mais escapar de uma representação estática de si mesmo e dos incessantes vaivéns entre o ódio e o deslumbramento, ressentimentos e o desejo de vingança. Mas uma questão insiste: como nomear sem fixar?
Conforme Achille Mbembe (2020), quando se trata exatamente de identidade e diferença, uma coisa é poder dizer livremente quem você é, soletrar seu próprio nome, para dizer a si mesmo de onde você vem e para onde vai. Outra é receber uma máscara, que você passará a ser obrigado a vestir e que funciona, portanto, como o dobro de quem realmente somos. Mas alguma vez sabemos quem realmente somos? Não faz parte do mistério que o humano permanecerá até o fim e a parte da opacidade que, inevitavelmente, nos fará fugitivos por definição?
Ainda assim, como sabemos, durante o período moderno, a maioria das lutas de identidade entre os corpos-racializados terá como objetivo se livrar do véu ontológico para o qual eles terão sido cobertos como resultado do trabalho efetuado pelo racismo. Estas foram lutas pelo reconhecimento e para autoafirmação, até autodeterminação. É daí a possibilidade do em-Comum, pensamento que resultará do reconhecimento do emaranhamento de nosso mundo. Isto é, por uma identidade-relação: aberta, opaca e fugitiva.
Aos condenados da Terra que buscam desembaraçar-se do peso da raça, portanto, de tudo que ela acarreta e produz, Frantz Fanon (1968) propôs um extenso caminho de cura que começa pela e na linguagem. Essa cura requer um trabalho descomunal em si mesmo de percepção, conhecimento da realidade fundamental, exposição ao Outro e, eventualmente, a prática de uma violência-emancipadora em oposição a esse sistema moderno-colonial-capitalista-heteropatriarcal.
Não podemos romantizar. Há zonas-de-morte que se mantêm historicamente e permanecem circunscritas a determinados corpos. Inevitavelmente, essa lógica se expande em espiral transgressão entrando em zonas de vizinhanças. Diante disso, podemos afirmar que o horizonte de uma democracia radical está cada vez mais distante.
O avesso da ideia de democracia, isto é, uma certa violência que na história moderna sempre foi empurrada para debaixo do tapete, mostra que não somente os porões, mas os pilares deste democracia liberal e representativa sustentaram-se na ilegalidade. Aliás, às custas de suor e sangue de povos afro-diaspóricos e descendentes de povos originários.
Jota Mombaça (2019) nos convida a desejar o fim do mundo como o conhecemos, pois não há consenso com essa força assimétrica e colonial fundadora da violência do colonizador. Força colonial essa que é branca-falocêntrica-extrativista posicionada e impositora de uma ordem hierárquica que fixa os corpos em determinados lugares (ontoepistemológicos) na sociedade moderna e transita entre o desejo de explorar e a tentação de eliminá-los. Portanto, não há possibilidade de negociação ou reforma desse Mundo. Por uma abolição do mundo como o conhecemos! Uma questão ainda não ignorada por Jota Mombaça é: como matar o carrasco (isto é, o Mundo-Branco) que vive em nós sem morrer junto? Ou melhor, como impedir sua reinvenção e reedição?
Em grande medida, somos convocados a constatar que existe muito mais do Outro em nós do que imaginamos. Nas poucas vezes nas quais tive que sair de casa durante o isolamento social devido à pandemia do novo coronavírus (Covid-19), verifiquei que o tecido que encobre parte do nosso rosto e nos afasta decorre de uma inominável força que, a um só tempo, tanto se apresenta assimetricamente como potências de vida quanto potências de morte: máscaras em-Comum.
Como um espelho, todos ali passamos, em geral, a ter uma aparência-sem-rosto: a invisibilidade e o silenciamento histórico e social de determinados corpos. Portanto, histórias individuais e formas de vida de seus semelhantes afirmam, na contemporaneidade, uma inimaginável e longa era do Home Office ou era Computacional; uma lógica da utilidade não exclusivamente nova, mas que reencena imagens coloniais da seleção, da exploração e do descarte de corpos a partir da instrumentalização de populações inteiras.
Se a máscara é uma potencial força que esconde o rosto e nos homogeneíza, usemo-la provisoriamente como trincheira do em-Comum contrária a toda lógica que nos asfixia há séculos!
Portanto, chamo atenção para uma questão central: a regeneração do vivente ou do vivo, nas palavras de Achille Mbembe (2020), deve passar por uma extensa reorganização das relações, não somente por uma redistribuição de lugares. Nos resta mais essa questão: como podemos, entretanto, operar o em-Comum, isto é, a reunião em torno da renúncia de determinadas formas de apropriação e extrativismos exclusivos e, ao mesmo tempo, operar a favor do reconhecimento?
É na partilha que conseguimos caminhar, efetuar pequenos e potentes saltos na existência – essa cada vez mais ameaçada e que nos convoca, conforme bem nos lembra Édouard Glissant (2011) a “abrir-se ao outro sem asfixiar o eu mesmo”. Penso ser essa a questão de nosso tempo.
REFERÊNCIAS
FANON, Frantz. Os Condenados da Terra. Tradução: Enilce Albergaria Rocha e Lucy Magalhães. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968.
______. Pele negra, máscaras brancas. Tradução: Renato da Silveira. Salvador: EDUFBA, 2008.
GILROY, Paul. O Atlântico Negro: modernidade e dupla consciência. Tradução: Cid Knipel Moreira. São Paulo: 34, 2012.
GLISSANT, Édouard. O pensamento do Tremor. La Cohée du Lamentin. Tradução: Enilce Albergaria Rocha e Lucy Magalhães. Juiz de Fora: Gallimard, 2014.
_____. Poética da Relação. Tradução: Manuela Ribeiro Sanches. Portugal: Porto, 2011.
_____. Le discours antillais. Paris: Seuils, 1981.
KILOMBA, Grada. Plantation Memories: Episodes of Everyday Racism. Münster: Unrast Verlag, 2. Edição, 2010.
MBEMBE, Achille. Crítica da Razão Negra. Tradução Marta Lança. 2ª ed. Lisboa: Antígona, 2014.
______. Políticas da Inimizade. Tradução Marta Lança. Lisboa: Antígona, 2017a.
______. A era do humanismo está terminando. Instituto Humanitas Unisinos, 2017b. Disponível em: <http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/564255-achille-mbembe-a-era-do-humanismo-esta-terminando>. Acesso em 28 de out. 2018.
_____. Brutalisme. Paris: La Découverte, 2020.
MOMBAÇA, Jota. Não vão nos matar agora. Lisboa: Galerias Municipais / EGEAC, 2019.
Jornalista. Mestre e doutorando em Sociologia. Pesquisador do Laboratório de Estudos e Pesquisas Conflitualidade e Violência (Covio/Uece).
1 comentário
Como imaginar-se fora dos imaginários viciados desse mundo branco? De algum modo a questão da linguagem em Fanon e da poética em Glissant me leva a pensar nessa disputa por imaginários como uma tônica de grandes alcances. É necessário reimaginar o mundo e, consequentemente, a nós mesmos. Amey o texto, boy!