O negro é uma invenção da modernidade.2 Homens e mulheres foram sequestrados do continente africano e atravessaram o atlântico em navios tumbeiros na condição social de escravos para, sob o controle dos europeus, trabalharem nas colônias para o enriquecimento das metrópoles.
Ao chegarem no novo mundo e terem contato com povos diferentes, os euroeus constroem, fundamentam e criam a ideia do Outro. Este passa a ser racializado e objetificado. Ele terá características negativas, será atribuído ao mesmo qualidades quase naturais, como subjugado, inferior, marginal e selvagem. Interessante também que, ao estigmatizarem aqueles racialmente, estes também foram estigmatizados. Enquanto aqueles foram tachados de NEGROS, estes eram vistos como BRANCOS. Porém, ser BRANCO passou a ter significado bem diferente de NEGRO. Ser BRANCO significou ter poder e privilégios. E o mais importante de tudo: virou sinônimo de “Ser Humano”. Deste modo, a partir dessa lógica, não é de se surpreender que o termo negro se torne sinônimo de escravo.
Enfim, é preciso ter em mente que NEGRO e BRANCO são categorias raciais construídas histórica e socialmente com finalidades diferentes.
Negro e Branco: uma invenção da branquitude com significados diferentes
As palavras, segundo Nietzsche, sempre foram inventadas pelas classes superiores e, assim, não indicam um significado, mas impõem uma interpretação.3
Partindo de Nietzsche e desenvolvendo uma investigação do significado das palavras que frequentemente são usadas em nosso cotidiano para discriminar e inferiorizar os negros dispersos pelo mundo e, especificamente no Brasil, veremos o quão foi/é intencional a afirmação do racismo ainda hoje nesse país.
Para iniciar nossa reflexão, gostaria de informar que os argumentos aqui apresentados terão como referência a análise desenvolvida por Clyde W. Ford4em seu livro O Herói com rosto africano: mitos da África, no qual examina o significado das palavras negro e branco a partir de uma perspectiva da mitologia. A conclusão a que chega é de uma riqueza ímpar para o que se propõe fazer aqui.
Clyde W. Ford , no capítulo As vozes dos ancestrais5, desenvolve uma abordagem diferente das que estamos acostumados a fazer quando buscamos entender as origens dos significados que as palavras negro e branco exprimem.
Nosso autor inicia sua reflexão tendo como referência uma experiência vivida por Malcolm X6 na prisão, quando este buscou, ao desenvolver uma pesquisa no dicionário, a definição de negro:
Sente-se que ele [Malcolm X] percebe de imediato o imenso fardo carregado pelos afro-americanos relacionando semântica e valores culturais; toda definição de negro é negativa, enquanto toda definição correspondente de branco é positiva. Substitua qualquer dos sinônimos para a palavra negro encontrado no dicionário para a expressão “povo negro”. Assim você terá uma ideia do poder oculto nos termos que usamos ao nos referirmos a nós mesmos e aos outros. Mas nós, como Malcom, fechamos o dicionário e aceitamos as definições, deixando de perguntar por que será que negro e branco carregam pesos tão diferentes.
A situação é ainda mais grave se pensarmos em todos os países nos quais a cultura ocidental é marcante. Digo isso por compreender que a cultura ocidental é, se não a grande responsável, uma das principais culpadas pela sobrevivência desses significados ao longo dos séculos e no presente. Arraigados na cultura dessas sociedades e presente em todo tecido social, tais significados passam, através de estigmas, a produzir práticas sociais que procuram desrespeitar as pessoas de pele escura, independente do sexo, idade, posição social e escolaridade.
Nos dicionários brasileiros, essas definições e significados não são muito diferentes daquelas que Malcolm leu, como se pode ver:
Negro… lúgubre; sinistro, fúnebre; triste; execrável; nefando; odioso; maldito; desprezível, indigno; amargurado; trabalhoso, penoso; Branco…que tem a cor de neve ou de leite; com perfeição…7
Estas são algumas definições que encontramos num glossário na on-line. Percebe-se de imediato o peso das diferenças de significado. Não há dúvida de que essas são as mesmas definições que Malcolm encontrou. Observe que a definição acima se encontra disponível e reproduzida atualmente na Internet — um sistema de informação global.
Não há interesse na desconstrução desses significados. Na verdade, o que há é o empenho em perpetuar essas expressões na sociedade com a finalidade de parecerem naturais. Desse modo, os preconceitos se propagam e se reproduzem em todo país atuando de forma distinta com grande poder e força nos “corações e mentes” de negros e não-negros, produzindo e reproduzindo, assim, tipos diferentes de brasileiros.
Clyde, em sua a crítica, propõe que, já que não fazemos perguntas sobre por que negros e brancos carregam em suas vidas pesos tão diferentes e quando analisamos esta temática nunca vamos, em nossas análises, além das abordagens da História da Raça, da Política, da Sociologia, da Economia e da Psicologia Racial; que busquemos algo novo e investiguemos a origem e o poder simbólico dessas duas palavras a partir do contexto da mitologia.
Em uma parte de seu estudo, Clyde8 depara-se com uma genealogia bem autêntica da palavra negro [Black, em inglês]:
O dicionário Webster’s não registra nenhuma derivação anterior à palavra blah do alto alemão antigo, mas menciona a provável relação com a palavra latina flagare e a grega phlegein, ambas com o significado de “queimar”. Mas outros linguistas rastrearam a palavra negro como cor, na raiz grega melan, da qual derivamos a palavra moderna melanina (o pigmento da pele predominante nas pessoas negras). Melanto, deusa grega, por exemplo, é ligada à negrura da terra fértil. Mas ai vem a surpresa, porque esses termos relacionados com raiz da palavra melan podem derivar ainda de uma palavra egípcia que se escreve M3nw, que significa “Montanha do Oeste”.9
Partindo dessa reflexão inicial Clyde, amplia suas descobertas no campo da mitologia na busca da construção do significado do termo negro. A interpretação que faz da questão acima é bem interessante no sentido de associar o termo “Montanha do Oeste” ao pôr do sol. Na verdade, o sol desaparece por detrás das montanhas a oeste, deixando espaço para o surgimento da noite. O sol move-se devagar na escuridão mítica do mundo debaixo. Essa passagem é decifrada como:
A viagem do sol para o mundo debaixo é, então, especificamente relacionada aos ciclos de morte e renovação da vida: o ciclo diário da consciência humana do mundo iluminado pelo dia para o mundo escuro dos sonhos, de onde retorna outra vez; o lançamento de semente ocorre na escuridão fértil da terra, ou seja, no útero da mulher; assim é a jornada que a alma humana deve empreender para realizar sua própria natureza divina.10
Em sua viagem pela mitologia, ele encontra essa mesma interpretação na cultura budista. Amitabha, por exemplo, o venerado “Buda da luz infinita”, é associado a esse movimento do sol poente para o oeste; ele manifesta compaixão infinita por todo o tipo de vida e encarna na terra na figura do Dalai Lama.11
A análise vai se tornando mais interessante à medida que a interpretação vai sendo enriquecida com outras considerações sobre o significado do sol se pôr no Oeste. São os relatos sobre a deusa egípcia do céu – Nut, que engole simbolicamente o sol no Oeste e o carrega numa gravidez durante toda a noite e o faz nascer novamente no Leste. Visto, portanto, do ponto de vista da mitologia africana e de outras mitologias fora do ocidente, negro não possui, inerente ao seu significado, uma conotação negativa. Pelo contrário. “O reino do mundo de baixo é visto como uma possibilidade real de passagem para o mundo de cima. ”
Como se vê, há uma distância grande dos significados trazidos e analisados aqui relativos ao termo negro – e, consequentemente, à expressão “povo negro”. Observando novamente a versão negativa: lúgubre; sinistro, fúnebre; triste; execrável; nefando; odioso; maldito; desprezível, indigno; amargurado; trabalhoso, penoso; e a que fora resgatada por Clyde W. Ford: um povo das montanhas do oeste; um povo do pôr do sol; um povo do período dos sonhos; um povo da terra semeada… Povo da água que corre areia a dentro, teremos diferentes significados sobre o termo negro.
Novamente concordo com Nietzsche, quando este afirma que as elites são os grandes responsáveis por essa imposição de significados, prossigo chamando a atenção para o fato de que essas expressões associadas a práticas sociais passam a desenvolver em crianças e adultos negros(as) um constante sentimento de autonegação, cotidianamente responsável por reforçar um perverso contexto excludente e racista que não é discutido nem combatido como deveria.
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Este texto é uma versão compacta de um tópico de um artigo: Reflexões de um negro cearense inquieto com o combate ao racismo no Ceará, que foi construído para discutir internamente com o movimento negro e militantes independentes.
2*Hilário Ferreira, graduado em Ciências Sociais e Mestre em História Social pela UFC. Professor da UniAteneu, lotado no curso de Serviço Social. É pesquisador da história e cultura negra do Ceará. e conselheiro da Rede Nacional de Religiões Afro-Brasileiras e Saúde – Renafro-Ce
MBEMBE, Achille. Crítica da Razão Negra. Tradução de Sebastião Nascimento. São Paulo: n-1 edições, 2018. Pág.12.
3 Os pensadores. Nietzsche. Pág. XIII.
4 FORD, Clyde W. O Herói com rosto africano: mitos da África. São Paulo. Summus. 1990. Págs.34-40.
5 FORD. 1990.
6 Ativista negro assassinado na década de 60 nos Estados Unidos. Ver filme Malcom X.
7 http://www.priberam.pt/dlpo/definir_resultados.aspx
8 Ibidem, 1990
9 FORD. Págs. 35 e 36
10 FORD. Pág. 36.
11 Idem.
Graduado em Ciências Sociais e mestre em História Social pela Universidade Federal do Ceará (UFC). É pesquisador da Cultura e História do Negro no Ceará.