Ainda tem muita gente embasbacada com a performance de Shea Couleé no episódio dessa sexta-feira (12/6) de RuPaul’s Drag Race All Stars. Mais militante do que nunca, a participante pisou na passarela pra homenagear africanas que até hoje têm anéis de bronze colocados no pescoço.
Trata-se de uma tradição tribal também encontrada na Tailândia. São as mulheres-girafa, assim chamadas porque a instalação desses anéis modifica e alonga a estrutura muscular ao ponto de provocar alteração nas costelas, constantemente comprimidas pelo peso dos acessórios de metal – cada vez maiores e mais densos conforme o tempo passa.
Shea não usou anéis de verdade e surgiu com o pescoço comprido. Não é esse o caso. O espanto do público foi pelo impacto do visual como um todo. Cabelo black, maquiagem tribal, lábios carnudos, estética dourada, unhas compridas, collant cor de pele negra cravejado de brilhantes, um corpo milimetricamente moldado e a caminhada classuda. Tudo encaixava de forma tão perfeita e transmitia uma mensagem direta sobre a beleza e a fortaleza do povo preto que não havia possibilidade de o público não se admirar, assim como a bancada de jurados assistiu a tudo de boca aberta.
Foi a segunda demonstração de militância da drag na edição. Na estreia, Shea entrou no cenário principal das gravações, já na primeira cena, apresentando-se como: “I’m bla-ack”. Usou do trocadilho “back/black” tanto pra dar o recado de que estava de volta ao programa quanto para afirmar-se negra.
Esse é um momento importante dela na história do reality porque Shea não fez esse tipo de declaração antirracista na temporada que participou (a 9ª). Naquela season, a queen estava focada mais em arrasar nos desafios – e conseguiu, tanto que foi uma das finalistas – e menos em demarcar espaços.
O posicionamento político de Shea começou a acontecer publicamente depois disso. Há três anos, portanto. E, desde então, a drag tem sido uma das principais vozes das ex-participantes de RuPaul’s Drag Race a lutar pela comunidade negra. Daí a relevância de ela pisar como pisou ontem na passarela do programa LGBT mais importante do mundo justo no dia uma temática tão forte: “ame a sua pele.”
É muito simbólico uma drag negra vencer esse tipo de desafio, especialmente numa edição com tantas candidatas de personalidades fortes, histórias de vida inimagináveis, talentos incontestes e bandeiras muitas vezes comuns. Shea reverenciou ancestrais e a cultura do tempo presente do povo negro.
Ainda foi além: no Instagram, logo após o capítulo de ontem ir ao ar, postou uma imagem do look recriando “O nascimento de Vênus”, de Botticelli. O quadro tem originalmente uma modelo branca. Ousado e inteligente, o que todos precisamos neste momento.
O que está sendo exibido agora foi gravado há um ano. Isso significa que Shea reapareceu no programa “mais negra do que já é” (como ela mesma se denomina) bem antes da onda global de protestos que testemunhamos há algumas semanas depois do assassinato do ex-segurança George Floyd.
Acaba por ser uma coincidência que coloca a drag sob mais holofotes, já que muitos estão nela devido à grandiosidade do talento, beleza e profissionalismo. É cedo para falar na Shea como franca-favorita. Temos mais dois meses de programa pela frente ainda. Mas a julgar pelo nível das montações e performances (que conhecemos bem da Season 9 e já vimos que ela não voltou pra brincadeira), arrisco dizer que podemos sim ter mais uma vencedora preta no hall da fama das drags.
Te cuida, RuPaul!
A QUEEN
Shea Couleé é o nome da drag criada por Jaren Merrell, um jovem músico negro nascido em Chicago, no estado norte-americano de Illinois. Ele tem 31 anos e também, como drag queen, faz editoriais de moda, atua como modelo e tem músicas e videoclipes lançados.
Era favorita pra ganhar a nona temporada de RuPaul’s Drag Race, mas acabou surpreendida por um lipsync matador de outra finalista, Sasha Velour, que venceu aquela season numa performance memorável de pétalas de rosas saindo da peruca.
Comunicólogo e mestre em Antropologia, é especialista em Jornalismo Político e Escrita Literária e tem MBA em Comunicação e Marketing em Mídias Digitais. Foi repórter e editor dos jornais O Estado e O POVO, correspondente do portal Terra e colaborador do El País Brasil. Atua hoje como assessor de comunicação. Venceu o Prêmio Gandhi de Comunicação, o Prêmio MPCE de Jornalismo e o Prêmio Maria Neusa de Jornalismo, todos com reportagens sobre a população negra. No Ceará Criolo, é repórter e editor-geral de conteúdo. Escritor, foi finalista do Prêmio Jabuti de Literatura 2020.