O perfil das reitorias das instituições federais de ensino superior brasileiras é muito bem definido: tem homens brancos como gestores. Esses são espaços onde o negro ainda não chegou. E pode demorar a chegar. Por ora, é a resistência de uma baiana que não permite o mapa dos administradores ser todo sem cor.
“Temos só um jeito de nascer e muitos de morrer.”
Carolina Maria de Jesus, uma das primeiras
escritoras negras do Brasil.
Enfim maioria no alunado universitário brasileiro, a negritude precisa agora lutar por representatividade também na cúpula das instituições estudantis. É quase nenhuma a existência de reitores autodeclarados pretos no país.
Das 67 entidades que compõem a Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes), apenas uma – a Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) – informou ao Ceará Criolo ser comandada por um preto. Preta, no caso.
Joana Angélica Guimarães da Luz é a primeira mulher negra a ser eleita reitora de uma universidade no Brasil. E tem um currículo invejável. É geóloga, mestre em Geoquímica e Meio Ambiente, doutora em Pesquisas Ambientais de Engenharia e Floresta e ostenta o título de pós-doutora pela Brown University (nos Estados Unidos) como bolsista do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente.
Quase 70% de todos(as) os(as) demais reitores que se declararam ao Ceará Criolo disseram-se pertencentes a uma mesma etnia, de forma que o perfil majoritário dos gestores dos quilombos acadêmicos mais importantes do país é o do homem branco.
Além de minoria como preta, Joana Angélica é minoria também por ser mulher. As reitoras são apenas 23% de todas as instituições ligadas à Andifes, que é a representante oficial das universidades federais na interlocução com o Governo Federal.
CEARÁ CRIOLO: Com quantos outros alunos negros a senhora dividiu sala na sua graduação? Sentia que a universidade era um lugar ao qual pertencia? Ou se sentia deslocada e rejeitada?
JOANA ANGÉLICA GUIMARÃES: Faz muito tempo que conclui minha graduação, mas, que me lembre, eu era a única na sala. Nessa época, eu já tinha desenvolvido uma certa consciência de que aquele lugar também era meu, embora, no fundo, fizesse de tudo para agradar meus colegas para ser aceita como uma igual.
CEARÁ CRIOLO: A universidade brasileira estava preparada para o ingresso de tantos negros?
REITORA: Creio que o problema principal aqui é que a nossa sociedade não consegue enxergar o negro como alguém capaz o suficiente para chegar a certos níveis sociais. A primeira coisa que se pensa quando vemos um negro em um ambiente que não seja o de serviçal ou em locais de periferia, é que ele não é alguém daquele lugar. A academia não é uma bolha onde tudo é diferente. Claro que na academia há um nível maior de aceitação do diferente, mas tem um grande número de pessoas que não estão felizes com a chegada de tantos negros nas universidades.
CEARÁ CRIOLO: Enquanto reitora, como avalia o pertencimento do estudante negro de hoje ao espaço universitário? Os alunos chegam mais conscientes da importância das políticas de inclusão e sobre representatividade?
REITORA: Acredito que cada vez mais os alunos negros têm se fortalecido na sua luta para serem incluídos e vistos como alguém com os mesmos direitos e capacidade dos brancos. Hoje, temos um quantitativo muito maior de alunos negros nas universidades, mas ainda temos muito a andar para que essa chegada seja vista como algo natural e como um direito e não uma concessão.
CEARÁ CRIOLO: O ambiente acadêmico que temos hoje acolhe o aluno e o professor negros? Ou é similar à educação básica, que omite, oprime, criminaliza e violenta a história da população preta?
REITORA: Tivemos um relativo avanço nessa questão, mas ainda estamos longe de termos esse acolhimento pleno. O ambiente acadêmico por ser considerado como um local em que as pessoas que chegam já passaram por uma certa triagem social, não é tão violento como no caso da educação básica, mas ainda é opressor.
CEARÁ CRIOLO: Considera necessária no Ensino Superior a existência de disciplinas obrigatórias que tratem de questões étnico-raciais em todos os cursos?
REITORA: Considero essencial a existência dessas disciplinas. Ainda existe uma enorme falta de compreensão sobre o porquê das cotas, sobre a violência sofrida pelos negros no Brasil e sobre o abandono a que foram submetidos ao fim da escravidão. Ainda vai demorar muito para que as pessoas compreendam o legado de injustiça e opressão a que os negros foram submetidos e creio que disciplinas que tratem dessa temática são fundamentais.
CEARÁ CRIOLO: Como é ser mulher negra e reitora em um estado onde com maior quantidade de negros fora do continente africano e, ainda assim, com tanta mítica em torno do racismo?
REITORA: É um misto de alegria e tristeza. Alegria por representar uma parcela da população brasileira que vive à margem das políticas sociais e que ao ver uma mulher negra em uma condição de destaque se vê representada. Tristeza por ser ainda motivo de destaque o fato de uma mulher negra estar nesse lugar. Isso deveria ser algo que não merecesse nem menção, deveria ser algo normal, mas o fato do negro ser colocado em um lugar reservado aos excluídos faz com que sempre que um negro chegue a uma posição de destaque isso seja visto como algo quase impossível de acontecer..
CEARÁ CRIOLO: Mesmo sendo a autoridade máxima da universidade, a senhora se depara com episódios de discriminação dentro do campus? A UFSB promove ações de combate ao racismo e conscientização dos colaboradores e alunos?
REITORA: O racismo no Brasil é algo muito velado, especialmente quando você se destaca, mas, sim, há uma forma de tratar diferente, como se você não merecesse a deferência que é dada a uma mulher branca. A UFSB é uma universidade que nasceu com uma proposta de inclusão e desde o ingresso dos nossos alunos esses temas são tratados de forma bastante intensa. Claro que, como disse antes, a universidade reflete muito da sociedade que a cerca e ela também tem discriminação, preconceito e todas as outras mazelas que assolam a nossa sociedade.
CEARÁ CRIOLO: Como primeira mulher negra eleita para um cargo de reitora no Brasil, qual análise a senhora faz de atualmente 70% dos reitores de universidades e institutos federais do nosso país serem brancos? Esse índice lhe surpreende?
REITORA: Me entristece, mas não me surpreende. Repito: a universidade reflete a sociedade, a mesma que enxerga o negro de forma negativa, sempre que um negro entra em um ambiente onde o comum é ter brancos. As pessoas olham com desconfiança porque temos pouquíssimos negros ocupando lugares de destaque na nossa sociedade. Os negros sempre foram excluídos das escolas, das universidades e, como consequência, dos melhores empregos. A grande maioria dos reitores entraram na universidade quando ainda não havia cotas e, portanto, o acesso de negros era muito restrito. O que vemos hoje é um reflexo disso. Espero que em um futuro breve tenhamos cada vez mais negros assumindo cargos de gestão nas universidades e nos mais variados tipos de trabalho mais qualificado e de maior status social.

Comunicólogo e mestre em Antropologia, é especialista em Jornalismo Político e Escrita Literária e tem MBA em Comunicação e Marketing em Mídias Digitais. Foi repórter e editor dos jornais O Estado e O POVO, correspondente do portal Terra e colaborador do El País Brasil. Atua hoje como assessor de comunicação. Venceu o Prêmio Gandhi de Comunicação, o Prêmio MPCE de Jornalismo e o Prêmio Maria Neusa de Jornalismo, todos com reportagens sobre a população negra. No Ceará Criolo, é repórter e editor-geral de conteúdo. Escritor, foi finalista do Prêmio Jabuti de Literatura 2020.