Quando Notre-Dame queimou esta semana, as timelines de todas as minhas redes sociais pipocaram de fotos de amigos em frente à catedral mais famosa da França (e do mundo). Todos se dizendo arrasados com a destruição. Enaltecendo o quanto aquilo era uma tragédia; uma perda sem precedentes para a humanidade. Mais de 800 anos de história incinerados!
Quando o ciclone Idai devastou o sudoeste da África um mês atrás, no entanto, esses meus amigos não postaram fotos lá. Nenhuma foto. Nenhuma legenda. Em rede social nenhuma.
Ninguém morreu no incêndio de Notre-Dame. No continente africano, mais de mil cadáveres do ciclone foram localizados, os casos de cólera passam os quatro mil, pelo menos 600 mil crianças estão desabrigadas em três países e ao menos 1,6 milhão de jovens precisam de algum tipo de ajuda humanitária.
Para Notre-Dame, as doações já bateram os impressionantes R$ 2,4 bilhões em menos de 24 horas. Foram feitas, em grande parte, por famílias proprietárias de grandes marcas e cujos patrimônios são incontáveis. Enquanto isso, o Fundo das Nações Unidas (Unicef) luta para as arrecadações de apoio aos países africanos chegarem a R$ 120 milhões.
Só enxergo uma explicação plausível pra isso: a gente se sensibiliza com a dor da Europa porque é pra lá que a gente é ensinado a sonhar com uma viagem de férias. Como a África povoa nosso imaginário só em documentários da Discovery Channel, especiais do Globo Repórter e desenhos animados como “O Rei Leão”, todo mundo faz de conta que por lá tudo se resolve sem a necessidade do dinheiro.
Mas isso tudo escancara não só a nossa seletividade para ajudar. Expõe também o racismo turístico. Vale a pena gastar fortunas para apreciar a arquitetura europeia. Não vale é se for pra habitar a pobreza africana. Sim, porque um continente inteiro é resumido só ao que é ruim. Fome, seca, doença. Nada que preste.
E, se não presta, pra que ajudar? Bom mesmo é reconstruir o símbolo de uma fé que dizimou povos durante séculos! Que levou milhares à fogueira. Que fomentou, inclusive, trazendo um pouco para a nossa realidade, a escravização dos negros e indígenas do Brasil no período colonial.
Por favor, entenda. Este artigo não é uma tentativa de atribuir desimportância à reconstrução de Notre-Dame. De forma alguma. A catedral não se tornou a mais visitada do planeta à toa, muito embora tenha sido abandonada pelo Estado e sido “redescoberta” no século 19 somente após a repercussão da obra de Victor Hugo. Ela precisa ser reerguida. Deve ser reerguida. Porque simboliza a fé de milhares. Diferentes de mim, mas tão importantes quanto.
Este é um texto sobre como nos comportamos diante de tragédias tão paradoxais. O tratamento – inclusive midiático – dado aos dois casos é gritante. Enquanto o povo preto de Moçambique (país mais afetado pelo ciclone) implora até hoje, um mês depois do desastre, por atenção e ajuda e foi completamente esquecido pelas empresas de comunicação (e por nós), o fogo da igreja francesa não sai dos holofotes. Nem sairá tão cedo. Por motivos óbvios.
Negros não estão dentro dela. Quem frequenta Notre-Dame, quem bate foto diante dela e quem posta essas imagens em redes sociais é – majoritariamente – quem não tem dinheiro para ajudar a diminuir a agonia dos africanos. A de agora e a de uma vida inteira.
Comunicólogo e mestre em Antropologia, é especialista em Jornalismo Político e Escrita Literária e tem MBA em Comunicação e Marketing em Mídias Digitais. Foi repórter e editor dos jornais O Estado e O POVO, correspondente do portal Terra e colaborador do El País Brasil. Atua hoje como assessor de comunicação. Venceu o Prêmio Gandhi de Comunicação, o Prêmio MPCE de Jornalismo e o Prêmio Maria Neusa de Jornalismo, todos com reportagens sobre a população negra. No Ceará Criolo, é repórter e editor-geral de conteúdo. Escritor, foi finalista do Prêmio Jabuti de Literatura 2020.
1 comentário
Parabéns pela publicação Bruno pura realidade infelizmente