Os candidatos a prefeito de Fortaleza, a quarta maior cidade do Brasil, com população estimada em 2,4 milhões de habitantes, ignoram que a cidade tem, segundo o Censo Demográfico do IBGE, 67% de população negra.
Bem acima da média nacional (de 56%), esse indicador parece não importar para eles quando nos planos de governo registrados no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) a pauta racial é ignorada ou trazem propostas genéricas ao povo preto e pardo, sem qualquer diretriz concreta de como os possíveis futuros governos pretendem atuar.
Dos nove prefeituráveis, cinco fazem menção à população negra pelo menos uma vez e apresentam, no máximo, três projetos sem profundidade para ela. Os quatro candidatos restantes, dentre os quais dois autodeclarados pardos (portanto, negros), sequer citam os termos “negro/a”, “racismo” ou “equidade racial” nos documentos – os quais, inclusive, variam entre cinco e 104 páginas.
O Ceará Criolo acessou a plataforma de divulgação de candidaturas do TSE e analisou, um a um, ponto a ponto, todos os planos de governo. Confira:
CAPITÃO WAGNER
Atual líder nas pesquisas, o candidato do União Brasil é um dos que ignora completamente a pauta racial. Veterano na disputa pelo Paço Municipal, ele apresentou ao TSE este ano um plano mais robusto do que o da eleição passada, mas regrediu quanto ao povo negro. Em 2020, o militar condensou todas as propostas de campanha em 11 páginas e citou “igualdade racial” em um dos tópicos. Agora, mesmo com um documento de 104 páginas, o maior dentre todos, nenhuma menção é feita à população preta e parda. Wagner é branco.
ANDRÉ FERNANDES
Novato na disputa por um cargo no Poder Executivo, o hoje deputado federal pelo PL e aliado de Bolsonaro também não racializa o plano de governo. O documento tem quatro páginas. André se declara pardo (negro).
GEORGE LIMA
Candidato pelo partido Solidariedade, o também novato em disputa à Prefeitura de Fortaleza apresentou ao TSE um plano de governo de seis páginas, nas quais a questão racial é completamente ignorada. George é branco.
EDUARDO GIRÃO
Senador da República pelo partido Novo, é mais um que concorre pela primeira vez ao Poder Executivo da capital cearense e não pauta o povo negro no plano de governo, de apenas 14 páginas. À Justiça Eleitoral, porém, autodeclarou-se pardo (logo, negro).
CHICO MALTA
Autor do segundo maior plano de governo (com 37 páginas), o candidato do PCB é o que mais cita o termo “negro” no documento, muito embora sempre no contexto de falar de minorias em geral. Não trata de combate ao racismo ou de promoção da equidade racial, e dá apenas diretrizes genéricas ao povo negro, tais como: “articular a empregabilidade”, “promoção dos direitos da saúde” e “promover atividades culturais”. Chico se declara pardo (logo, negro).
EVANDRO LEITÃO
Em um plano de governo de 15 páginas, o candidato do PT cita o povo negro em apenas dois momentos: no tópico “redução da desigualdade social e territorial” e no trecho sobre “garantia de acolhimento inclusivo e de qualidade nos serviços públicos”. Em nenhum momento, no entanto, apresenta propostas concretas. Evandro é branco.
JOSÉ SARTO
Atual prefeito, o candidato do PDT faz apenas uma menção ao povo negro em um plano de governo de 29 páginas. E, ainda assim, numa pauta sobre “diversidade”, na qual fala em “reafirmar os direitos da mulher, da população LGBTQIA+, da população negra, de pessoas com deficiência, dentre outros”. Sarto hoje se diz branco, mas já se declarou pardo (portanto, negro) ao TSE.
TECIO NUNES
O candidato do PSol tem o menor dos planos de governo. São apenas três páginas, nas quais refere-se ao povo negro apenas quando cita o quarto eixo (‘”A Fortaleza Feita por Nós”, promove a igualdade e a inclusão social, com políticas específicas voltadas para as mulheres, a população LGBTQIA+ e a comunidade negra, além de garantir acessibilidade para todos'”). Tecio é preto.
ZÉ BATISTA
Pelo PSTU, o candidato fala sobre o povo negro apenas uma vez, no trecho “Salário igual para trabalho igual. Exigências de programas de igualdade salarial e de oportunidades de contratação e ascensão profissional para mulheres, negros e homossexuais”. Zé Batista se declarou branco à Justiça Eleitoral.
Em 2020, quando teve dez candidatos a prefeito, Fortaleza contou com apenas dois deles pautando a questão racial. Ambos do campo da esquerda. Ou seja: 20% do total. Agora, em 2024, dos nove postulantes, quatro citam a negritude de alguma forma, o que representa 45% do total. O quantitativo aumentou, é verdade, mas a qualidade da pauta é risível.
OPINIÃO
Nenhum prefeiturável, nem mesmo os que reivindicam identidades negras, tratam a temática com a grandeza por ela demandada. Numa cidade majoritariamente negra, é impossível pensar e debater política pública deixando de lado um marcador quanto a raça. Não bastasse a invisibilidade de gênero, já que todos os candidatos são homens, impõe-se também o silêncio a uma negritude que, eleição após eleição, é instrumentalizada por todos os campos ideológicos e, na prática, deixada de lado.
Pragmaticamente, nós, negros e negras, servimos para balançar bandeira no sinal, adesivar carros, distribuir santinhos e fazer campanha no corpo-a-corpo pra todos esses candidatos. Aparecemos nas propagandas de televisão deles para a mensagem da diversidade ser transmitida (e o eleitor enganado). Mas não figuramos nem nas promessas. Somos esquecidos como o público-alvo que deveria ser tratado como prioridade da política que eles vão implementar quando eleitos.
É uma vergonha que Fortaleza, comprovadamente negra como é, seja tratada como se tivesse uma população nórdica. Vai ver, todos esses candidatos acreditaram na história há poucos anos disseminada de que nossos ancestrais são povos vikings e não os negroafricanos de Congo e Angola. Só isso pra justificar tamanho descaso.
Comunicólogo e mestre em Antropologia, é especialista em Jornalismo Político e Escrita Literária e tem MBA em Comunicação e Marketing em Mídias Digitais. Foi repórter e editor dos jornais O Estado e O POVO, correspondente do portal Terra e colaborador do El País Brasil. Atua hoje como assessor de comunicação. Venceu o Prêmio Gandhi de Comunicação, o Prêmio MPCE de Jornalismo e o Prêmio Maria Neusa de Jornalismo, todos com reportagens sobre a população negra. No Ceará Criolo, é repórter e editor-geral de conteúdo. Escritor, foi finalista do Prêmio Jabuti de Literatura 2020.