Por Larissa Gabarra
Doutora em História Social da Cultura e professora da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab)
Não são desconhecidas as incoerências do pensamento hegemônico que criam termos, conceitos e expressões para justificar a sua existência, descontextualizando os processos históricos aos quais as existências humanas estão ligadas e as circunstâncias nas quais elas se encontram. Nesse sentido, é possível ver a palavra “senzala” vinculada à liberdade. Ou seja: uma denominação corrente para o espaço imposto como dormitório aos escravizados pelos proprietários rurais ou urbanos durante o período escravocrata no Brasil e a liberdade daquele homem [e mulher] que não mais utiliza-se desse espaço. Essas vinculações ideológicas representam a visão de uma porção da elite cearense que se vangloria do protagonismo abolicionista e só cria monumentos à escravatura, aos instrumentos de tortura, aos maus tratos e às violações sexuais.
A conhecida economia dos engenhos de cachaça de algumas regiões do Ceará é muitas vezes tratada como uma economia similar à economia dos engenhos de açúcar de Pernambuco. Apesar de a região do Ceará ter sido parte da capitania de Pernambuco no período colonial, o perímetro que se tornou Ceará hoje não instalou engenhos de açúcar. Os engenhos de cachaça nada se parecem em relação à quantidade de mão de obra que utilizaram aos engenhos de açúcar; e, historicamente, os de açúcar são do século XVI a XVIII e os de cachaça são do fim do século XIX e XX. Além do fato de que os engenhos de cachaça terem sido construídos em contexto urbanos, enquanto os de engenho tinham contextos rurais.
O sistema escravocrata vivenciado na região, por exemplo, do Maciço de Baturité, tem na cidade de Redenção o grande ícone da abolição no Ceará em 1883. No entanto, essa abolição veio por meio da restituição financeira aos proprietários de escravizados, política nacional chamada de Fundo de Emancipação, que funcionou com bastante êxito na nessa província. Mas que não criou nenhuma política de inclusão dessa população negra livre na sociedade brasileira. Muito pelo contrário. Aproveitou-se do fundo estatal para reescravizar negros e negras, podendo aproveitar-se do soldo mais uma vez. Ou seja: nenhum proprietário que mantinha gente escravizada libertou seu escravizado por um sentimento humanitário para com o homem ou a mulher naquela situação desumana, mas porque seria recompensado materialmente pela perda da propriedade.
No Maciço de Baturité, essa política foi muito bem-vinda, pois após a queda da produção de algodão, consequência do fim da Guerra de Secessão nos Estados Unidos, quando a Inglaterra volta a comprar o algodão americano, essa elite precisava investir em outro tipo de produção. Sem capital para investimento e com um excedente de escravizados adquiridos para o plantio e colheita do algodão, a venda dos escravizados, fosse pelo Fundo de Emancipação ou para o tráfico interno do Ceará para o sudeste do Império, recuperava o capital investido que, livre, poderia ser utilizado para novos investimentos. Assim, a abolição da escravidão prematura da província do Ceará foi resultado da crise financeira, principalmente do Maciço de Baturité, e o novo investimento econômico foi, nesse caso, os engenhos de cachaça, que demandavam muito menos mão de obra e poderiam ser feitos nas zonas urbanas.
Os monumentos abolicionistas espalhados na região, mas não só, reafirmam essa glória representada pela tortura e o milagre. Como se as lutas dos escravizados por liberdade não tivesse existido e apenas uma força superior teria o poder de findar com a escravatura – vide a imagem de algo celeste representada na pintura da negra nua ajoelhada ao agradecer as correntes quebradas na entrada da cidade de Redenção (veja foto no alto da página).
Pode-se pensar numa grande narrativa museológica que se utiliza dos instrumentos de tortura como vitrine para o estrangeiro, mas não só, que conhece essa redenção à escravatura via dor, passividade e desumanização para justificar o protagonismo glorioso dos proprietários de escravizados na abolição da escravidão. Ao aproximar o observador da experiência do passado via exposição e memória da opressão, procura-se atualizar a própria opressão, que atinge exatamente a mesma população (ou melhor: seus descendentes). É necessário pensar que os espaços de memória sobre a escravidão não são espaços dados, verossimilhante ao tempo pretérito, como pretendem, mas sim recriados e escolhidos para legitimar determinada ideia – no caso, o próprio pensamento hegemônico racista.
As narrativas sobre a escravidão no Ceará comprovam a pouca necessidade de mão de obra e o pouco tempo de utilização de escravizados na produção principalmente de cachaça. A primeira cidade do Ceará a findar com a escravidão, na verdade, vendeu seus 103 escravizados ao governo da província cearense. Fato utilizado pelos abolicionistas do jornal “O libertador” como propaganda para atingir outras cidades do Estado na mesma situação – sem dimensionar a crise vivenciada pelos proprietários de escravizados e a recompensa ou restituição do capital investido nos escravizados na venda ou alforria dessas pessoas.
O escuro, úmido e mal iluminado lugar dos escravizados no passado é revivido a cada metro de uma memória monumental em nomes, como Casa Grande, Senzala e esculturas como correntes, pau de sebo, gargantilha e porões. O escravizado vitimizado tem na mulher negra estuprada a “cereja do bolo”, que desnuda a nossa “democracia racial.”
Assim, ao vangloriar-se de algo que não lhes foi sacrifício e sim benefício, sem explicitar o contexto econômico e político do momento, silenciam ainda mais as batalhas dos escravizados e escravizadas. Finda-se, assim, a visita à redenção da abolição do Ceará para manter o circo de horrores para a consciência negra no Estado, que não consegue se desvencilhar dessa narrativa de passividade, servidão e dor. A redenção da escravidão não pode ser entendida na chave da abolição concedida.
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