O letreiro colorido na parede cinzenta, logo na entrada, avisava: “coisas incríveis acontecem aqui”. Ao fundo, no canto esquerdo da parede, um corpo magrinho usava um short rosa em frente a um espelho iluminado por lâmpadas ovais brancas e amarelas, como aqueles que a gente vê em novela, nos camarins de artistas. Estava, pois, um artista ali. Maquiava a si próprio. Era ainda Vinícius Andrade. Mas que em breve se transformaria na drag queen Organzza. E estaria de peruca e figurino esvoaçante pelos corredores de uma casa com nome de amuleto do candomblé.
Seria ele/ela a atração principal da transmissão em Fortaleza de um episódio de Drag Race Brasil (que, para os desavisados, é uma espécie de olimpíada gay e, finalmente, ganhou uma versão nacional, deixando a comunidade LGBT tupiniquim em polvorosa). O calção, então, logo deu lugar a uma pantalona vermelha. E o peito nu foi coberto por um sobretudo feito exclusivamente e sob medida pela Negro Piche, uma grife tipicamente cearense.
Preto – e consciente disso -, Vinícius vive o momento mais inimaginável da carreira (que, ao contrário do que muitos podem pensar, não começou como drag queen e sim no teatro, na infância). De performer da cena fluminense, ele passou a presença certa na casa de milhões de pessoas toda semana. Venceu concursos e agora é favorito(a) a ganhar um reality do qual é fã e com o qual sempre sonhou.
O garoto que, na meninice, encarava o quadro da escravizada Anastácia e se perguntava o porquê de a avó ter aquela imagem em casa e por qual motivo usava uma máscara (a Máscara de Flandres), esse mesmo Vinícius hoje compreende o poder político desse equipamento. Silenciar. Talvez por isso fale com tanta verve quando o assunto é raça. A imagem da negra mexia com ele, que hoje mexe com as emoções de uma multidão.
Na conversa abaixo, o artista revisita a própria vida, desde quando era, como diz, uma criança viada, até o fenômeno no qual se transformou. E que, por isso, tem feito uso de uma estratégia importante para não sucumbir à violência racista do outro. “Se eu tiver que responder alguma coisa, eu vou responder na base do deboche”, adianta. E acrescenta: “o que é meu é meu, e ninguém vai tirar de mim. Eu não tô roubando nada de ninguém”. Mas dá o recado: “tem gente que é mediana, que entrega mediocridade, e está nos holofotes.”
Confira o bate-papo.
CEARÁ CRIOLO: Nas tuas próprias palavras, quem é a pessoa por trás da Organzza?
VINÍCIUS/ORGANZZA: Pra eu dizer quem é o Vinícius, eu posso dizer que a Organzza é a junção de todas as expressões artísticas da criança viada do Vinícius. Eu sempre fui uma criança artista. A minha mãe diz que eu aprendi a dançar antes mesmo de aprender a andar. Nisso, eu tenho que fazer um retorno à minha família porque a minha família é muito envolvida com o carnaval. Com o carnaval carioca, com o carnaval de escola de samba e com o carnaval também de blocos de rua. Eu nasci nesse ambiente. Eu nasci em maio, sou taurino, e no carnaval de 1992, que foi em março, a minha mãe desfilou grávida de mim, de sete meses. Então, é uma relação muito assim. E esse lugar da criança viada vem pra mim porque, além de tudo, sou uma criança dos anos 1990 que cresceu com as influências e referências de um momento em que a televisão tinha É o Tchan rebolando de biquini, era a Banheira do Gugu, a Tiazinha, o Mamonas Assassinas, que é um grupo que moldou muito o meu lugar da bagaceirice…
Eu sou de uma família de pessoas pretas. E não só uma família de pessoas pretas. Mas uma família de pessoas pretas que sabem que são pretas. Isso fez muita diferença pra minha construção de vida.
CEARÁ CRIOLO: A questão racial, então, nunca foi uma questão pra ti
VINÍCIUS/ORGANZZA: Não. Eu sei que sou preto desde que eu nasci. E eu sei que isso faz muita diferença hoje pra minha maneira de ver o mundo. Quando eu tinha oito anos ou nove, eu raspava o cabelo e pintava de loiro, o que hoje chamam de “nevou” e na minha época era “loiro pivete”. Um dia, eu falei pro meu pai que queria deixar meu cabelo crescer porque queria ter o cabelo igual o do Will Smith, porque eu assistia “Um maluco no pedaço”. E meu pai disse: “vai ter sim; pode deixar crescer”. Então, eu sempre tive esse lugar. Minha mãe tinha o cabelo black. Meu irmão tinha o cabelo grande também. Sempre teve essa relação com a negritude na minha casa.
CEARÁ CRIOLO: Mas na rua não era assim…
VINÍCIUS/ORGANZZA: Não…obviamente. Mas eu acho que naquele momento, e é uma coisa que eu falo hoje em terapia, eu não tinha essa consciência porque dentro de casa eu acho que eu vivia muito nesse lugar de comunidade, sabe? Nessa proteção. Inclusive, isso é uma coisa que hoje tem me afetado muito, porque por mais que eu tenha vivido racismo, óbvio, mas não da maneira como eu venho sofrendo desde meu anúncio no programa. Da maneira que é: eu não ter feito nada e só a minha figura, a minha existência, incomodar tanto as pessoas assim, isso eu acho que nunca tinha chegado pra mim em tão grande escala.
CEARÁ CRIOLO: E chega como? Desculpa, eu não quero te fazer revisitar nenhuma dor, mas é que quando a gente fala e fica no lugar do abstrato e as pessoas acham que não é tão forte…
VINÍCIUS/ORGANZZA: Não, tudo bem falar. E queria eu que não fosse [tão forte]. Mas chega diretamente e chega indiretamente. Chega com comentários na internet. Chega com comentários em postagem. E chega com mensagens diretas mesmo. Pessoas que se sentem no direito de chegar na minha caixa de mensagens e ser racista, porque não tem outra palavra pra definir. E chega em níveis absurdos, níveis leves e em níveis que as pessoas nem sabem que estão sendo, porque eu consigo entender esse lugar de que em algumas situações a pessoa não sabe o quão racista está sendo. Muita coisa já chega de maneira estruturada, porque as pessoas sabem que é assim e elas lidam de maneira tranquila.
Depois de algumas situações que aconteceram na minha vida, eu vejo que tem pessoas brancas têm a certeza da impunidade. Elas sabem que elas podem fazer coisas que elas vão sair impunes. E isso não é estrutural. É estruturado. E elas vão alimentando essa estrutura, esse pacto da branquitude, para que elas sempre possam estar protegidas nesse lugar.
CEARÁ CRIOLO: Quando esse tipo de situação acontece, você faz o quê? Bloqueia? Ainda tenta argumentar? Vale a pena argumentar?
VINÍCIUS/ORGANZZA: Não vale. Eu sou uma pessoa preta, de uma família preta e que tem consciência que sou uma pessoa preta. Eu tenho outras coisas da minha vida que eu aprendi a depositar minha energia. Essas pessoas não merecem minha energia, sabe? Elas não merecem que eu perca meu tempo com elas. Mas eu também não vou dizer pra ti que não bate e que não me afeta. Óbvio. Mas eu não vou perder meu tempo com elas.
CEARÁ CRIOLO: Tá, mas você apenas ignora? Dá um block? O que você faz?VINÍCIUS/ORGANZZA: Eu apenas ignoro. Deixo lá morrer. Até porque muitas vezes o que elas querem é que eu responda. Porque aí elas têm a certeza de que elas chegaram até mim. Mas não vão ter isso. Hoje, se eu tiver que responder alguma coisa, eu vou responder na base do deboche. Racismo eu respondo no deboche! E isso é uma coisa eu entendi como uma arma, pra que eu mostre pra essa pessoa que ela chegou até mim mas eu to te tratando como ela me trata. É como nada? Pois eu vou te tratar como nada também!
Agora aconteceu um caso com um menino, que fez várias postagem no Twitter, várias, falando várias coisas sobre mim. E ele me marcava, porque ele queria que eu visse. E eu só ignorava. Teve uma que ele postou alguma coisa sobre minhas vitórias, que eu tô roubando, que eu não merecia ter duas vitórias e tal. Eu só postei uma foto com meus dois broches. E deixei lá. Não precisou falar nada pra acabar. Eu não vou perder meu tempo, sabe? Eu não vou argumentar com essas pessoas. O que é meu é meu, e ninguém vai tirar de mim. Eu não tô roubando nada de ninguém. Só tô pegando o que é meu. Aliás, muitas vezes, roubam é da gente. E roubam muito. Então, deixa elas acreditarem que elas estão…
Essas pessoas se incomodam não só pelo fato de eu sou preta. Mas pelo fato também de eu não negar que sou. De’u mostrar muito isso. De’u falar muito sobre isso. E elas não estão preparadas e acostumadas com alguém que vai falar: “sou e sou mesmo e é isso aí, vocês vão ter que aceitar isso aqui meu porque eu não vou me render pra vocês”. Isso é uma coisa que tá batendo nelas. Aí, eu sou arrogante. Eu me acho demais.
CEARÁ CRIOLO: Quero voltar um pouco pra já já a gente falar de Drag Race de novo. Em que momento você entendeu que era uma criança viada e que isso podia virar arte?
VINÍCIUS/ORGANZZA: Eu sempre fiz arte, como te disse. Eu faço aula de dança profissionalmente desde os cinco anos de idade e eu comecei a fazer teatro com nove anos. E eu sempre dancei, sempre desfilei e sempre estive no carnaval nesse lugar das artes. Então, de uma maneira geral na minha vida, eu nunca fiz outra coisa que não fosse artística. Quando eu decidi que eu ia fazer isso da minha vida foi muito novo. Porque quando eu tinha nove anos eu estudava numa escola pública que tinha aula de teatro e eu fiz minha primeira peça teatral. E eu falei: “nossa! É isso o que eu quero fazer da minha vida”. Só que eu vivia no subúrbio do Rio de Janeiro, num contexto político e geográfico que “você precisa ter um emprego e uma carreira”. E era o auge de escolas técnicas. E minha mãe falou assim: “você vai fazer uma escola técnica…”.
CEARÁ CRIOLO: Mas ela não era contra tua carreira artística…VINÍCIUS/ORGANZZA: Não, não. Inclusive, minha família é minha maior apoiadora. Meu pai também dançava, minha mãe saía no carnaval…Nunca tive nenhum problema. Pelo contrário. E, nisso, eu tenho muito a agradecer à minha família. Mas era aquela coisa: ensino médio… “vamos ter uma profissão”… “vamos ter um emprego”… (risos) Aí, entrei pra uma escola estadual pra fazer Eletrotécnica, mona. Olha o que eu fui fazer da minha vida! Mas fui pra lá só porque era perto de onde minha melhor amiga estudava. Aí, eu fiz parte do grupo de dança da escola. Tipo, foda-se o curso técnico!
Desde sempre, isso esteve comigo e desde sempre eu tive muito apoio. Eu cresci podendo rebolar e podendo me vestir do que eu quisesse me vestir. Eu já saí uma vez no carnaval com meu pai vestido de Vera Verão e eu e meu irmão vestidos de Lacraia. Era essa a relação. Eu nunca tive nenhum tipo de questão em relação a isso. Sempre tive muita liberdade também pra falar sobre as coisas na minha casa. Isso fez muita diferença na minha construção. E eu nunca precisei esconder as coisas. Sobre nada. A primeira vez que eu beijei um menino, eu falei com os meus pais…
CEARÁ CRIOLO: É, essa é uma realidade muito particular…porque a maioria é colocada pra fora de casa, apanha, ouve que tem que tomar jeito de homem…
VINÍCIUS/ORGANZZA: Eu sem bem disso. Eu torço pra que um dia isso seja a realidade de todo mundo, porque eu sei que não é de nem 1%. Eu realmente, nesse sentido, eu tenho…eu não gosto da palavra “privilégio”, porque isso denota um lugar de que isso não deveria ser para todos, mas é um lugar que eu tive de muita sorte com minha família. Eu tenho muitas amigas trans, travestis e sapatão que sempre frequentaram minha casa e eu sei que é um lugar que eu tive sorte.
Eu não sei te dizer nenhum episódio do tipo dentro da minha casa. O máximo que posso dizer é que tenho um irmão heterossexual e é um estranhamento. Mas nunca me disse nada. Nunca faltou com respeito. Inclusive, hoje mesmo ele postou stories que eu estou em Fortaleza. Ele vai assistir as coisas…Acho que por isso eu pude ser uma grande criança viadona mesmo.
CEARÁ CRIOLO: E você se identifica como um homem cis gay?VINÍCIUS/ORGANZZA: Não. Eu me identifico como um homem cis bissexual e entendendo a pansexualidade cada vez mais na minha vida.
CEARÁ CRIOLO: Essa construção da identidade se dá de forma tranquila pra ti? Pergunto isso porque a identidade pode se dar de forma muito conflituosa nessa sociedade que o tempo todo coloca a cisheteronormatividade de forma compulsória…
VINÍCIUS/ORGANZZA: É, desde sempre eu falo que a certeza que eu tenho é de que eu não sou hétero. Isso é certeza. E hoje eu também tenho certeza de que sou um homem cis. Primeiro que isso nunca foi uma questão. E eu falo e converso sobre identidade de gênero há muitos anos porque, de uma maneira acadêmica também, eu tive muito contato com esse tipo de questionamento. E de vivência. Em 2015, eu já tinha contato efetivamente com pessoas que tinham essa discussão na vida delas, e de maneira acadêmica. Então, isso, pra mim, foi um lugar pensado anteriormente do que a gente vive hoje. Eu já venho há um tempo discutindo sobre isso. Eu entendi, com mais certeza, que eu sou uma pessoa cisgênera porque hoje eu também faço parte da comunidade ballroom, que é uma comunidade que tem muitas pessoas trans e muitas discussões de gênero, e ali eu entendi que eu não tenho nenhuma das questões que essas pessoas têm. Eu entendi que faço parte da diversidade LGBT, mas não sou uma pessoa trans.
CEARÁ CRIOLO: Tua drag nasce com a Organzza? Ou houve experiência antes?VINÍCIUS/ORGANZZA: Eu sou muito essa persona de carnaval. Então, a ideia de prática de montação já estava na minha vida pelo teatro. Esse lugar de entendimento de “estou montada?” já vinha me acompanhando há muito tempo na minha vida. Porém, esse ideal de drag queen Organzza aconteceu assim: o carnaval de 2018, eu curti com um amigo do teatro com quem sempre trabalhei fazendo figurino. Eu era o Tritão do bloco Sereias da Guanabara, tinha que ir abalando e botava coisa, tirava coisa, botava coisa, tirava coisa e foi uma montação que não acabou nem quando a gente tava dentro do metrô, porque o tempo todo eu inventava algo. Em maio desse mesmo ano, quando eu me montei pra participar de um concurso drag na Queens, esse amigo me disse: “bicha, tu só deu um nome, né, porque tu já tava fazendo isso…”.
Então, foi um pouco assim. A prática de montação vinha desde a criança viada, quando eu botava as roupas da minha mãe, quando eu botava o salto da minha mãe, quando eu ficava dançando na sala, quando eu criava coreografia pra apresentar pra minha família… Esse lugar já existia. Em 2018, teve esse lugar da formalização por causa do concurso, porque aí precisava de um nome e de uma identidade.
CEARÁ CRIOLO: E como você se saiu no concurso?VINÍCIUS/ORGANZZA: Foi o primeiro concurso que eu participei. E eu entrei e ganhei. Com uma semana de drag. Mentira. (risos) No meu vídeo de inscrição, eu falo assim: “eu faço drag há três horas, que foi o tempo que terminei de me montar”… (risos)
CEARÁ CRIOLO: Imagino que a prática do teatro foi fundamental…VINÍCIUS/ORGANZZA: Isso que eu ia falar agora. Eu conheci a Queens porque um amigo meu participava e eu fui pra acompanhar a temporada ele, pra torcer por ele e tudo mais. Vendo aquilo, eu pensei assim: “nossa, eu gostaria de ganhar esse concurso”. E aí abriu uma temporada para drags iniciantes.
CEARÁ CRIOLO: E aí a senhora foi lá e, snatch the crown!
VINÍCIUS/ORGANZZA: Snatch the crown! (risos) E eu nunca mais parei de fazer drag.
CEARÁ CRIOLO: Como o Drag Race chega pra ti? Qual relação você tinha com a franquia?
VINÍCIUS/ORGANZZA: Eu comecei a fazer drag antes de começar assistir o programa. Mas antes de fazer parte eu assistia até as franquias internacionais. E a primeira temporada que eu assisti foi a temporada sete…
CEARÁ CRIOLO: A pior de todas!
VINÍCIUS/ORGANZZA: Pra vocês! (risos) Pra mim, ela é a melhor porque é a minha iniciação!
CEARÁ CRIOLO: A sétima não é a da Violet Chacki?
VINÍCIUS/ORGANZZA: É! A melhor de todas! Mas todo mundo me falava isso: “você começou pela pior”. Só que pra mim tinha um apelo emocional, porque eu comecei por ela. Eu olhava pra Violet e olhava pra Katya e falava: “nossa, eu quero ser uma junção disso”. Tinha a questão de a Violet ter a mesma idade que eu. Então, eu via alguém muito nova tendo muita consciência do que tá fazendo. Isso me chamava muito a atenção. Me inspirava muito.
Por outro lado, eu via a Katya, que tinha a teatralidade, a cascaria, o lugar da diversão com a drag que faltava na Violet, que tinha aquela coisa muito séria. E que, na verdade, eu nem sei se era tanto. Porque hoje, participando do programa, a gente sabe que tem coisas. E a gente vê o programa e a gente sabe que existem narrativas a serem contadas. Porque tem momentos que ela joga shade, que ela é também uma drag mais pá-pum. Mas a imagem que passa dela no programa é da pessoa “vim aqui pra competir e ganhar”, do mesmo jeito que a Katya passa a imagem de doida varrida. E não é, né, gente? Mas enfim. Aí, eu fiquei obcecado, né? Acho que todo mundo fica assim. Eu voltei pra assistir desde a primeira, maratonando que nem uma doida.
CEARÁ CRIOLO: Mas o programa influencia tua estética drag de alguma forma?VINÍCIUS/ORGANZZA: Não. Porque eu sempre tive muito contato com a cena drag da minha cidade. E com a cena drag antiga da minha cidade. Então, eu tinha esse apego com que a Violet construía em torno de moda e com as fashion queens da sétima temporada. Tinha um lugar que não era só visual e estético. Tinha a coisa da fala, da cena, de uma história ali. E na cena da minha cidade eu tinha muito isso.
Eu tinha ícones como Susy Brasil, como Carina Carão, como Samara Rios, essas drags que também estavam em saunas. Nessa época, a gente tinha o Rival Rebolado, que inclusive a Miranda Lebrão participou e me inspirou muito a começar a me montar. A final do Rival Rebolado, em dezembro de 2017, foi entre a Miranda e a Uhura Bqueer, que é uma drag do Norte, uma demônia do mesmo coletivo da Tristan, uma drag preta. Foi ali, com a Uhura, que eu entendi o que era o afrofuturismo. E quando eu vi a Miranda na final de outro concurso vestida de frango gigante. E a Uhura fazendo uma Nossa Senhora Preta parindo um Jesus preto. Foi quando eu me dei conta do que eu podia fazer enquanto drag.
CEARÁ CRIOLO: Você, inclusive, fala no Drag Race sobre o quanto admira a Miranda…
VINÍCIUS/ORGANZZA: Falo. Porque era alguém que eu realmente acompanhava na cena carioca por conta desse lugar de um tipo de drag que, se a gente pegar 2017 e 2018, com a ascenção da Pabllo e da Glória Groove, não tava num lugar “garotas”. Eu via essas drags sendo mais teatrais. E era literalmente teatral porque eu via todas no Teatro Rival. Eu tinha essa relação, de ver drag no teatro. E isso me alimentava por ser uma pessoa do teatro. Então, o programa me influenciou porque ele influenciou a cena drag como um todo.
CEARÁ CRIOLO: Mas você viveu a expectativa de o Brasil ter uma franquia própria? Ou tu achava que era mais uma fan fic dentre as milhões de fan fics que os fãs de Drag Race alimentam?
VINÍCIUS/ORGANZZA: Que era uma fan fic, eu, obviamente, acreditava. Eu vivi essa expectativa do programa e de fato não acreditei que pudesse acontecer. Mas quando eu vi muitas franquias pelo mundo acontecendo, eu pensei: “por que não?”. Primeiro porque o Brasil é o maior consumidor do mundo e segundo porque temos um potencial pra termos uma grande franquia.
CEARÁ CRIOLO: Foi ideia tua mandar tua inscrição?
VINÍCIUS/ORGANZZA: Quando saiu aquele primeiro post convocando as drags pra seleção, muita gente me marcou e me mandou. Eu não ia me inscrever. Não porque não queria participar, mas porque as inscrições foram no período do Rock in Rio de 2022. E eu tava trabalhando no Rock in Rio, fazendo entrevista nos bastidores. Como comunicador e com a persona Organzza. Mas acabou que mandei a inscrição. Só que quando chegou a segunda etapa, que era a de mandar material, vídeo etc, eu falei que não ia ter tempo. Aí, a Shannon falou: “bicha, tu é maluca? Tu vai fazer sim”. E foi lá pra casa pra gravar comigo.
A gente passou a noite toda gravando, o dia seguinte todo editando e enviei assim no último dia. E foi. E no dia seguinte fui pro Rock in Rio. Mandei era 11 e pouca da noite. Pensei: “já devem ter selecionado tudo e nem vão ver”. Mas minha mãe diz que tudo acontece quando tem que acontecer…
CEARÁ CRIOLO: Pra além dos ataques racistas que você já disse que recebe, o que mais as pessoas te dizem? Como tem sido esse feedback?
VINÍCIUS/ORGANZZA: Como eu tenho ignorado as coisas negativas mesmo quando chegam a mim, eu posso dizer que só tenho recebido coisas positivas, porque eu realmente não tenho olhado pras coisas negativas, mesmo sabendo que elas existem. E eu tenho estado num misto de sensações, porque eu venho de uma família preta, pobre e periférica, e mesmo tendo nascido no berço que eu nasci, da maneira que eu ja falei, a sociedade todo dia que eu não vou chegar a lugar nenhum. Então, ver que eu estou chegando em um lugar nacional e internacional, e que as pessoas torcem por mim, que as pessoas amam o que eu faço, dizem que se inspiram em mim, que é muito bom me ver, me ter ali, que me ver ali faz com que elas se sintam melhor, é algo que me faz pensar: “meu Deus, o que está acontecendo?”. E, principalmente, quando eu vou ao encontro pessoal com essas pessoas. Como o que aconteceu quando eu cheguei em Recife.
Eu andei de avião quatro vezes na minha vida: uma pra gravar o programa, uma segunda pra estreia do programa, em São Paulo, uma terceira pra Recife e uma quarta pra Fortaleza. E quando eu cheguei em Recife, um menino com o uniforme da Azul parou e falou assim: “senhor Vinícius Andrade?”. Aí eu: “sim”. Aí ele: “o senhor que é a Organzza?”. Aí eu falei: “sim, aconteceu alguma coisa?”. Aí ele disse: “é que eu sou muito seu fã e eu trabalho na azul e troquei minha carga horária pra poder ver você”. Eu fiquei: “como assim?”. Ele pediu pra tirar uma foto comigo e eu morrendo de medo de ele perder o emprego por ter feito todo esse malabarismo só pra me ver. Ele era um menino preto e me entregou uma carta, que eu li depois e nela ele falava desse lugar de me ver ali e saber que talvez ele possa estar em lugares. Quando eu cheguei no desembarque, tinha uma menina me esperando com uma placa escrito meu nome e pedindo uma foto. Disse que tava faltando um seminário na faculdade porque queria me ver. E também era uma menina preta.
Então, tipo, é um outro lugar de… É isso, eu sinto que eu tô ali e essas pessoas estão vendo que também podem estar ali. E eu não tô ali sem elas. Porque elas estão comigo também. Eu não chegaria ali sem elas, sabe? Isso tem a maior loucura na minha cabeça. Mas também tem sido um lugar que eu trabalhei muito pra isso. Eu não estou aqui sozinho. E não só por essas pessoas que estão aqui agora, mas as que vieram antes de mim e abriram esse espaço pra eu estar aqui hoje.
CEARÁ CRIOLO: No programa, a Bruna Braga falou o quanto estava orgulhosa da representatividade de vocês e do quanto você e Shannon entregavam excelência. E você disse que gostaria de não ser sempre cobrada por ter que ser sempre excelente. Na cena drag fora do programa, essa cobrança pesa mais sobre drags pretas?
VINÍCIUS/ORGANZZA: Lógico! A cobrança sobre artistas negros, de um modo geral, é grande, mas na cena drag ainda muito mais. Eu tenho consciência de que eu não posso fazer coisas que qualquer outra drag branca faz, porque eu vou ser muito mais rechaçada do que ela. E eu não tenho o menor pudor pra falar de mediocridade, porque a gente sabe que tem gente que é mediana, que entrega mediocridade, e está nos holofotes. E a gente não tem essa liberdade de pensar que pode fazer algo medíocre. Não, é o tempo inteiro: tem que ser o melhor, tem que entregar, black excellence… Somos! E somos! Porque naturalmente somos! Nascemos assim, desde antes de nós. E não poder ter a escolha do “hoje quero pegar uma perninha que eu tirei do saco, um topzinho e saia” e ser enaltecida por isso? Taí a resposta.
A medida que você embranquece e se padroniza, qualquer coisa que você faz é aceita. Isso é um aspecto da branquitude, por mais negro que você seja. Quando você coloca uma afirmação de uma estética enegrecida, se você tiver um ponto fora da curva, acabou pra você. E isso eu sinto desde o dia um que comecei a me montar. E eu sinto até hoje, e não só por conta de Drag Race, eu sinto na minha cena drag carioca. Tem gente que ainda diz que eu não devia estar lá. Tem gente que diz: “mas a Organzza? De tantas de nós, a Organzza?”. É babado!
CEARÁ CRIOLO: Como começa a tua relação com a cena ballroom?VINÍCIUS/ORGANZZA: Em 2017, eu fazia uma audição pra fazer parte de uma companhia teatral. E nessa companhia eu conheci uma pessoa, a Viní, que faz parte hoje da ballroom e com a irmã gêmea dela, a Vitória, formava as Irmãs Brasil. Elas sempre me falavam. Me diziam que eu já fazia parte disso e tinha que ir. A gente se afastou e em 2020 elas gravaram comigo o clipe “Dia D”, da Clarice Falcão. E elas voltaram a falar sobre o assunto. Eu fui pra uma ball, só que logo depois veio a pandemia.
Na pandemia, eu acompanhei vários atos online e comecei a treinar virtualmente com a casa de Cosmos, que é a casa que eu faço parte hoje. E, assim, eu fui me familiarizando com a casa de Cosmos, até porque tinha algumas pessoas da Cosmos com quem eu já tinha uma relação pessoal. Só em 2021, naquele momento em que a gente teve um refresco da pandemia, eu caminhei na minha primeira ball como Cosmos. E hoje eu sou Prince da casa de Cosmos. E a Cosmos cresceu e tem capítulos em outros estados: São Paulo, no Sul, em Minas e aqui, no Ceará, que tem a star Mother Machella. Ela tem esse reconhecimento da cena ballroom, de ser star.
CEARÁ CRIOLO: Eu falei do ballroom porque essa é uma cena que tem crescido muito aqui no Ceará. E via de regra reúne pessoas negras. Não sei se é impressão minha, mas eu percebo que essas pessoas chegam cada vez mais jovens a esses espaços e com uma sede grande de “se eu não encontro apoio lá fora, venho pra cá”. É isso mesmo?
VINÍCIUS/ORGANZZA: É isso mesmo. Na Cosmos, por exemplo, a gente tem dois integrantes que são menores de idade: o Baby Cosmos, do Rio de Janeiro, que tem 14 anos, e a Duda, que também tem 14 anos, que é do capítulo de São Paulo. A Duda, inclusive, é o que a gente chama na ballroon de femme queen, uma pessoa que se entende no lugar da travestilidade dela. E isso só foi permitido por conta desse contato da ballroom. Assim como o Baby entendeu que podia ser uma criança viada, com a comunidade ballroom ele também tá entendendo a expressão corporal dele. A Duda da mesma maneira. Quando ela chega na ballroom e vê outras pessoas como ela, com as questões que eu imagino que ela tenha e do corpo dela, de como se expressar e ela vê outras pessoas, ela se sente segura.
Assim, a gente tem que tirar a comunidade ballroom desse romantismo. Porque é uma família! É uma comunidade. Acontecem coisas. Tem um “mona, sem passação aqui”. Mas tem também o lugar do acolhimento, de se tiver que todo mundo parar pela fulana, vamo todo mundo parar pela fulana. Pode não gostar da fulana, pode ter briga com a fulana, mas é uma comunidade. E é um lugar onde todo mundo se expressa. Imagina você estar num lugar se expressando e ninguém julgar tua expressão artística, facial e do mundo.
CEARÁ CRIOLO: E isso influencia a tua drag de alguma forma?VINÍCIUS/ORGANZZA: Óbvio. Influencia sim. Eu falei sobre isso no programa, no episódio da Gisele, e não foi ao ar. Eu cresci vendo desfiles. Eu sou muito apaixonado pelo mundo da moda. Eu cresci vendo desfile, cresci vendo desfile de miss, eu via todos os Victoria Secrets, eu era apaixonado pela Gisele e pela Naomi Campbell. Mas eu olhava praquilo como um lugar muito distante de mim.
CEARÁ CRIOLO: Até porque só tinha gente branca, praticamente…VINÍCIUS/ORGANZZA: Inacessível. Completamente inacessível. Na comunidade ballroom, com a categoria runway, que é a categoria de passarela, eu entendi que eu posso ser uma supermodelo. Porque a comunidade ballroom tá aí pra isso: pra gente criar as nossas realidades que o mundo lá fora diz que a gente não pode ter. Então, é isso: é uma categoria de face para pessoas pretas, porque nós somos as coisas mais bonitas do mundo. Óbvio, tem branco que compete. Mas é um lugar de enaltecimento de uma cultura preta, de uma cultura travesti, de uma cultura que é completamente fora desse padrão idealizado da branquitude.
Na comunidade ballroom, eu entendi uma potencialidade de uma expressão artística preta, de uma expressão artística viada, porque meso que eu não esteja no mesmo lugar das minhas irmãs travestis, eu tenho uma expressão artística de uma bicha preta favelada, que a comunidade ballroom também potencializou isso pra mim e isso reflete na minha drag. E especificamente nesse lugar da performance.
Existe uma coisa na ballroom que é: ou é dez ou é eliminado. Não tem o meio termo. Então, a gente não entra numa batalha pra perder. Você entra na passarela pra levar dez. É aquele “tens, tens, tens, tens across the board”. É isso. Tanto que na casa de Cosmos a gente tem um lema quando vai caminhar, que é: “você tem dúvida”. Não? Então vai caminhar! E tem uma coisa da comunidade que é a batalha com a outra pessoa. Esse lugar pode parecer cruel ou agressivo, mas não é assim que a gente faz na vida? Então, isso me alimentou. Porque eu aprendi a caminhar com as minhas irmãs. Eu aprendi a estar numa passarela vendo as Irmãs Brasil, vendo a Sereia, vendo a Samy…são minhas irmãs Cosmos que defendem essa categoria.
CEARÁ CRIOLO: E foi isso o que você fez nesse episódio da Gisele, porque quando você entrou toda a bancada de jurados fez “uaaaaau”…
VINÍCIUS/ORGANZZA: É, porque hoje na ballroom eu caminho nessa categoria. E é isso. Eu fui lá pegar meus tens. E toda vez que vocês me verem nas passarelas do programa é com esse pensamento. Eu estou ali servindo a categoria runway. Pra mim, ali, ainda é ballroom.
CEARÁ CRIOLO: Mas é mesmo um momento do programa que dialoga com o ballroom…
VINÍCIUS/ORGANZZA: Sim. Aliás, a estrutura inteira do programa é sobre o ballroom. É que a gente conheceu RuPaul antes, depois veio conhecer Pose, depois veio Legendary e agora as pessoas estão conhecendo a ballroom de verdade. Porque tudo o que tá ali naquele programa é estruturalmente, essencialmente ballroom. É uma passarela, uma bancada de jurados e você batalha pela sua vida. Não é isso? Você entra numa runway, você toma tens. Se você não toma tens, tchau. É isso. Tá tudo ali. Aí tem o lipsync. É uma batalha. Quem é que vai vencer essa batalha? Você? Shantay, you stay, tens. Você, chop. Beijo, tchau. Próximo! É exatamente a mesma coisa.
CEARÁ CRIOLO: Você não se surpreendeu, então, de ter sido a primeira vencedora…
VINÍCIUS/ORGANZZA: Me surpreendi por alguns motivos. Mas que eu fui lá pra ser a primeira, eu fui. O que me surpreendeu, na verdade, foi a gente não entender como ia ser a dinâmica toda, por serem dois grupos diferentes. A gente tinha certeza que ia ter uma batalha entre as melhores. Ou ia ser o melhor de um grupo contra o melhor do outro grupo. A gente não achou que teria uma eliminação de primeira. Então, isso me surpreendeu. Mas que eu estaria no top, nenhuma dúvida. Tanto que eu, Shannon e Naza também fomos aprender a música porque a gente achava que podia ser um lipsync de quem estava no top.
CEARÁ CRIOLO: Tu recebeu bem o comentário da Shannon de que ela devia ter vencido?
VINÍCIUS/ORGANZZA: Eu não discordo dela. É porque não apareceu eu falando isso. Eu não concordo é com a frase “quem deveria ter ganhado era eu”. Porque é isso: quem deveria, então, não deveu, porque quem ganhou foi eu. Ganhou quem ganhou. Mas que ela poderia ganhar? Sim, concordo. Que se não fosse eu seria ela? Sim. Que não teria outra possibilidade? Sim. Que se tivesse sido double win seria justo? Sim. Que se tivesse uma batalha de tops teria que ser entre eu e ela? Sim. Eu realmente acho que o que ela fez no clipe e na passarela foi incrível, mas teve alguma coisa que foi diferente entre eu e ela e isso foi o que foi a decisão. E essa responsabilidade não é minha, amor.
CEARÁ CRIOLO: Pras pessoas que estão chegando na cena drag, o que você diria?VINÍCIUS/ORGANZZA: Que você se divirta fazendo. Porque assim…não é fácil, é muito doloroso, é muito desgastante e é um lugar que a gente tem que abdicar de muitas coisas. Por exemplo: eu raspo a minha sobrancelha e os pelos da minha cara. Isso pode não parecer nada, mas é muita coisa. É um lugar de desprendimento que eu tô pra chegar num lugar pra que eu me sinta melhor com o que eu estou fazendo. Então, se eu já me entrego todo e, quando tô montada, nem me divertir com isso? Pois pare agora.
A gente não vive num país que quer artista. A gente vive num país que quer celebridade; que quer gente famosa. Artista é outra coisa. Porque a gente vê que hoje o programa tá num boom e tem uma coisa muito linda de as pessoas irem assistir o programa nas watch parties, mas a gente tem muita dificuldade de ir lá ver o show da drag da cidade. Pra ir agora pro show da fulana que aqui tá todo sábado na cena local? Será que tem essa coisa toda? Então, é valorizar o seu eu artista. Se você quer fazer drag, pense se você quer estar nesse lugar de ser um artista. Porque o nome é ARTE drag. Não esqueçam disso. Quer fazer pelo close também? Faça. Mas aí faça mesmo. Faça muito. Mas tenha consciência de que você está depositando pro mundo um desgaste seu. Então, se divirta com isso. Porque vai ter gente que vai dizer que você tem que fazer assim, fazer assado, que tem que usar isso, que usar aquilo, mas não bota uma peruca na cabeça nem um salto no pé.
CEARÁ CRIOLO: Diante disso, o que você espera pra tua carreira com o hype do programa?
VINÍCIUS/ORGANZZA: Eu sou do teatro. Eu sou das artes. Da cena. Das artes cênicas. E é isso que eu espero poder ter. Voltar pro teatro. Voltar pra cena. Fazer teatro mesmo. Não necessariamente abandonar a drag. Mas de estar nesse lugar teatral, de espetáculos, de shows. É isso o que me alimenta.
A gente vive hoje muito essa relação de as pessoas irem assistir uma tela reproduzindo um vídeo. Por que essas pessoas não vão assistir você num teatro? Isso é uma coisa que eu quero muito. Porque foi assim que eu comecei a ver drag, assistindo elas ali, ao vivo. Mesmo que fosse numa sauna, era ali, eu e elas. E eu quero aproveitar essa visibilidade que o programa tá dando pra mim e pra cena drag como um todo: fazer com que as pessoas realmente olhem pra mim, pro artista, e não pra uma celebridade. Entende que é diferente?
Quero dar uma vida melhor pra minha mãe, pra que ela possa parar de trabalhar. Porque se eu estou aqui hoje foi porque minha mãe permitiu fazer tudo o que eu quis na minha vida, muitas vezes pagando por tudo. Ela é a pessoa que mais torce por mim. No programa, a gente não podia ter acesso ao telefone e todo dia ela mandava mensagem pra mim. Eu só vi depois. Todo dia era: “meu filho, bom dia, tô com saudade”.
CEARÁ CRIOLO: Você tem conseguido ter contato com a cena drag e ballroom dos lugares por onde tem passado?
VINÍCIUS/ORGANZZA: Com a cena ballroom de Recife não, mas com a cena drag sim. Eu cheguei em Recife numa sexta e fui assistir o show de uma drag lá, de uma gata que fez um medley da Beyoncé, quase uma Renaissance tour pra ela. Mas com a cena ballroom eu não tive contato. Mas aqui em Fortaleza eu cheguei num domingo e fui dar uma volta, conhecer a cidade e tenho tido contato com algumas pessoas que eu já conhecia, como a Dedianny Piaf e a Mulher Barbada. E conheci a Supremmas e a gata que fez a minha roupa.
O que eu tenho entendido com isso é que eu tô num momento de que não adianta eu ir pros espaços e ser o que as drags lá de fora fazem, que é fazer um show, beijo e tchau. Não é isso pra mim, sabe? Eu ainda tô no meu país. Eu também tô vivendo um sonho. Eu tô vivendo o mesmo sonho que essas pessoas! Eu também acreditei que a gente podia ter uma franquia que fosse nossa e tô me permitindo estar nesses espaços. Mas quem tá nesses espaços de Fortaleza todos os dias é a Dedianny, é a Mulher Barbada… Não sou eu. Então, não tem como eu chegar aqui e querer ser a bambambam. Eu tenho é que pedir licença pra chegar.
CEARÁ CRIOLO: Vendo tudo o que tu tá vendo, assistindo o que foi ao ar, o que você tira de saldo? Fazer drag aqui é diferente? A gente deixa algo a desejar?
VINÍCIUS/ORGANZZA: Em relação a nada. Nada, nada, nada. Mas vou ser sincero: sobre a drag, eu conheço o que o programa me trouxe e algumas drags que vieram pro Brasil. E todas elas eu não vejo num lugar de superioridade que de fato elas possam ter. Eu vejo um lugar em que elas foram colocadas pelos brasileiros. Por que essa gata que faz um show de três minutos tem essa comoção? Porque é o lugar de uma celebridade. Não é pela arte drag, essencialmente. Porque se fosse pela arte drag, a gente estaria ali vendo um show da Dedianny Piaf. É pelo lugar do que a gente vive hoje da fama. Acho que é muito mais pelo lugar de ser alguém intocável do que de fato arte drag. Porque pela arte drag a gente encontra isso aqui no Brasil. Entende? E, às vezes, realmente, melhor, mesmo, do que algumas coisas que a gente viu no programa.
Acho que hoje as pessoas estão entendendo que eu não preciso ver a lá de fora e posso encontrar no meu país. E acho que essas pessoas que assistem o programa, que são fãs do programa e não essencialmente da arte drag, estão tendo a consciência de que têm tudo isso do lado delas. Nisso, acho que o programa tá fazendo um “acorda.”
CEARÁ CRIOLO: Já caiu a ficha de que você é uma Ru Girl?
VINÍCIUS/ORGANZZA: Eu não sou uma Ru Girl! Eu sou uma Grag Girl! (risos) A ficha é essa história do aeroporto. Ali foi um momento em que eu pensei: “o que é isso?”. Porque isso é uma coisa que eu fiz pelo RBD. E agora eu tô vendo as pessoas fazendo por mim. E isso é uma coisa que eu sei que as pessoas fazem por elas, que são lá de fora.
Sair da Internet e vir pra perto das pessoas me trouxe mais esse lugar de consciência. Ir ao Recife e perceber que as pessoas foram lá pra me ver, porque não teve outra coisa naquele dia, numa casa que traz as drag Ru Girls lá de fora, é algo que eu ainda tô me dando conta. É a realização de um sonho. E é muito brusca essa virada. Porque ontem eu tava fazendo show na minha boate local e hoje eu tô em Recife, Fortaleza, cruzando o país de avião…
CEARÁ CRIOLO: Das drags lá de fora, alguma já começou a te seguir? Tomou algum susto?
VINÍCIUS/ORGANZZA: Sim, alguns sustos. Assim que saiu a promo, algumas fizeram questão de falar não só comigo. A Angeria, a Cinthya Lee Fontaine, algumas do México, a Jaida, a Rajah O’hara comentou nas coisas da Helena… Mas com algumas eu já tinha algum contato por ter esse lugar de privilégio de estar no eixo Rio-São Paulo. Acho que de alguma maneira, meu nome já estava ali nesse imaginário porque eu abri o show pra muitas delas. Eu tenho foto com várias. Já abri o show da Aquaria, da Mo Heart, da Miz Cracker, da Manila…
E lá na Realness, no festival, em São Paulo, teve um momento que, graças a Deus, eu não vi, porque senão eu teria infartado, a Anetra perguntou pra quem o pessoal tava torcendo e todo mundo começou a gritar meu nome. O cast do Drag Race Brasil já tinha saído e eu fiquei: “meu Deus, o que tá acontecendo?”. Eu acho que elas assistem porque elas consomem muito o que acontece aqui. Inclusive, a Denali fez um show na Realness que foi um medley de Luisa Sonza dublando em português. E foi incrível!
CEARÁ CRIOLO: Você se enxerga como favorita?
VINÍCIUS/ORGANZZA: Lógico. Não vou ser maluca de dizer que não. Me enxergo como favorita até mesmo antes do programa. Antes de sair a promo, meu nome circulou bastante. Mas é um lugar que não me deixa feliz, não me deixa confortável. Porque aí a gente volta praquele lugar da excelência. Porque ao menor passo que eu não atinja a expectativa criada por essas pessoas, eu saio da mais favorita pra mais odiada. Isso está acontecendo hoje, inclusive. Já recebi mensagens: “por que você tá falando da Naza?”. Falo porque eu falo assim com minhas amigas. Mas é aquela coisa toda de programa de televisão. Mas eu e a Naza fez muitas coisas juntas. A gente se ajudou. Mas o que aconteceu é que ficou parecendo um ataque meu a ela. E não foi. Era uma discussão em que todo mundo tava falando. Mas enfim. Eu não vou botar culpa em edição porque eu entrei no programa sabendo de todos os riscos. O entretenimento tem que ser entregue. E alguém tem que ser a vilã. Então, pode vir Tyra Sanchez! (risos)
Mas sério. É isso: eu passo duas semanas vencendo e tendo minhas vitórias contestadas, aí eu contesto uma coisa que muitas pessoas estão contestando, mas elas vão discordar porque sou eu que tô falando. Porque se eu tivesse ficado calado, ia estar todos esses gays de Facebook e do caralho a quatro falando que ela não merecia ganhar. E eu nem falei que ela não merecia ganhar. Eu só contestei esse lugar do desafio. Tanto que quando ela ganha, tô lá eu vibrando pela minha amiga. Porque não era sobre isso. Não era sobre ela ganhar ou não ganhar.
CEARÁ CRIOLO: Deu pra fazer alguma amizade com as drags do programa? Além das que você já conhecia, como a Shannon, a Miranda e a Betina, claro…
VINÍCIUS/ORGANZZA: Inimizade não existe muito forte no elenco. A gente é um elenco que até hoje ainda se fala.
CEARÁ CRIOLO: RuPaul’s Best Friend mesmo, né?
VINÍCIUS/ORGANZZA: (risos) É. É isso. Tava todo mundo lá: “meu deus”. Tá todo mundo lá vivendo um sonho. É uma competição? É. Mas ninguém precisa se matar por isso. E sim, deslumbrada. E sim, torcendo uma pela outra. O grupo entre nós 12 é muito ativo. A gente se fala todo dia. A Hellena agora chegou no Rio e me pediu dica de pra onde ir. É esse lugar que a gente tem entre a gente. É óbvio que umas são mais próximas das outras, até por conta de localidade. Se fala mais quem tá mais perto. Quando eu tô em São Paulo, eu vou na casa da Rubi ou vou visitar a Hellena. Mas tem a Tristan, que é uma pessoa muito amiga, mas não tô no dia a dia com ela. A Naza, por exemplo, é uma pessoa com quem eu falo todo dia, mas não é uma pessoa que eu vejo sempre. De uma maneira geral, o elenco tá sempre junto, sempre unidas, sempre irmãs, sempre drags.
CEARÁ CRIOLO: Pra encerrar, toparia um All Stars?
VINÍCIUS/ORGANZZA: Não. De livre e espontânea vontade, não. Eu estou há cinco anos participando de concursos de drag. Não é mais isso o que eu quero fazer da minha vida. Não tô dizendo que não vou. Se tiver de fazer, eu vou fazer. Mas por escolha? Hoje, não é isso que eu vou fazer. Se vier um convite, tá. Mas se eu quero muito fazer isso? Não, não quero. Eu prefiro ter saúde mental.
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Comunicólogo e mestre em Antropologia, é especialista em Jornalismo Político e Escrita Literária e tem MBA em Comunicação e Marketing em Mídias Digitais. Foi repórter e editor dos jornais O Estado e O POVO, correspondente do portal Terra e colaborador do El País Brasil. Atua hoje como assessor de comunicação. Venceu o Prêmio Gandhi de Comunicação, o Prêmio MPCE de Jornalismo e o Prêmio Maria Neusa de Jornalismo, todos com reportagens sobre a população negra. No Ceará Criolo, é repórter e editor-geral de conteúdo. Escritor, foi finalista do Prêmio Jabuti de Literatura 2020.