Eu tenho 32 anos. Sou negro, tive acesso a um excelente ensino básico, fiz faculdade, hoje tenho três diplomas de ensino superior e nos meus 11 anos de mercado coleciono algumas experiências de cargo de chefia ou coordenação de equipe. Mas quase nenhum outro negro me fez companhia nesse caminho.
Nos consultórios particulares por onde passei, seja como paciente, como repórter ou ainda enquanto acompanhante da doença crônica de minha mãe, os médicos que nos atenderam foram todos brancos. Os negros desses hospitais não estavam sequer à espera do chamado no painel para serem os próximos a receber socorro. Cabia a eles apenas o lugar da faxina. Como pacientes, os pretos lotam mesmo é as emergências de periferia. Porque é lá, nas periferias, onde tudo falta, que eles moram. Se amontoam.
Nas salas de aula que frequentei, poucos foram os colegas negros. Numa turma de 60 alunos, nós éramos três. Quatro, no máximo. E sempre com algum se dizendo “moreno.”
Quando nenhum professor seu é negro, quando o livro de História que você lê só retrata o negro como preguiçoso e escravo, quando sua coordenadora pedagógica tem a pele escura e se diz parda, e quando o TODO o pessoal da limpeza, da cantina e da segurança tem pele escura, você, criança ou não, enxerga pouca vantagem em ser preto. Porque, afinal, sonha em ser médico, apresentador de televisão, artista, qualquer coisa que dê dinheiro e te garanta uma vida confortável. E ver centenas iguais a você em posições pouco importantes para a hierarquia escolar é se dar conta de que o mundo diz não pra esse seu sonho. Diz não pra você.
Nos espaços profissionais por onde transito, conto nos dedos os negros que tiveram as mesmas oportunidades que eu (todas fruto, diga-se de passagem, da possibilidade de meu pai, também com muito esforço, me garantir uma educação de qualidade). Em nenhum lugar onde trabalhei, para ser franco, vi um negro em cargo de chefia. Também nunca tive um negro como chefe. Redações de jornal ainda são espaços brancos. Que pensam como brancos. E que reproduzem pensamentos de brancos.
Uma pesquisa divulgada hoje indica que 2018 foi um ano no qual se gerou mais vagas de emprego para pretos e pardos do que para brancos. Você comemora, acha que isso é uma notícia boa e logo depois vem o baque. Esses empregos são quase todos em posições subalternas. São exatamente o pessoal da faxina do hospital, a merendeira da cantina, o vigia do jornal…
Ainda são ocupados pelos brancos os cargos de comando. Os brancos mandam. Os brancos decidem quem serão os pretos demitidos. Os brancos ganham mais. Os brancos têm mais patrimônio acumulado durante a vida. Os brancos têm uma aposentadoria melhor. Os brancos têm mais formação. Os brancos têm menos envolvimento com o crime. Os brancos matam menos. Os brancos morrem menos.
E tudo isso acontece porque, diferente de mim, boa parte dos negros deste país não tem acesso a escola boa, tem dificuldade pra entrar na faculdade e tem mais dificuldade ainda pra se manter nela (porque precisa trabalhar pra ajudar nas contas de casa e o salário do preto é quase sempre menor do que o salário do branco, que na universidade também trabalha pra caramba pra ajudar a pagar as contas de casa, só que menos do que o preto).
O sistema é bruto. A gente ainda não ocupa muitos cargos de chefia porque não tem qualificação pra isso. E não tem qualificação porque educação ainda é privilégio. Pior: quando consegue chegar a um cargo de chefia, enfrenta uma resistência quase cinematográfica. Se só você está na sala sentado na cadeira do gestor do setor e alguém chega, experimente não ser branco. Você vai ouvir o seguinte: “você pode chamar a chefia?”. É quase automático. As pessoas associam tua negritude a uma posição baixa na empresa. Por ser negro, o “normal” é te enxergarem como faxineiro, porteiro, vigia. Nunca diretor, superintendente, doutor.
É quase uma praga. Porque afeta inclusive a equipe para a qual você finalmente foi designado a chefiar. Um subordinado ignora tua ordem. O outro te responde com deboche. Um terceiro faz o serviço de qualquer jeito. E assim os dias correm. Não há respeito. E você precisa se impor. Não pelo grito. Jamais na marra.
Pelo respeito.
Uma hora, o mundo te faz reverência.
Você resiste e ele faz reverência.
O problema é você ter força suficiente pra suportar até lá.
E depois disso. (?)
Comunicólogo e mestre em Antropologia, é especialista em Jornalismo Político e Escrita Literária e tem MBA em Comunicação e Marketing em Mídias Digitais. Foi repórter e editor dos jornais O Estado e O POVO, correspondente do portal Terra e colaborador do El País Brasil. Atua hoje como assessor de comunicação. Venceu o Prêmio Gandhi de Comunicação, o Prêmio MPCE de Jornalismo e o Prêmio Maria Neusa de Jornalismo, todos com reportagens sobre a população negra. No Ceará Criolo, é repórter e editor-geral de conteúdo. Escritor, foi finalista do Prêmio Jabuti de Literatura 2020.