Em Fortaleza para lançar o livro “Por que amamos”, o filósofo Renato Noguera reflete sobre esse que já é um enigma para a existência humana universal e ainda mais para pessoas negras. Ele recebeu o Ceará Criolo para uma conversa na Escola Porto Iracema das Artes. E foi além. Analisou o cenário político atual, a postura de Lula, os sentimentos incitados pela polarização ideológica atual e classificou como preocupante o cenário da universidade pública atual.
Renato Noguera é doutor, mestre e graduado em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Pesquisa ensino de Filosofia e os conteúdos obrigatórios de história e cultura afro-brasileira, ética, política e subjetividade, sempre com o enfoque racial, de biopoder, devir negro e diferença.
Confira a entrevista exclusiva.
CEARÁ CRIOLO: O senhor discute no seu novo livro um tema que é tão instigante quanto o velho “de onde viemos e para onde vamos”. É possível explicar por que a gente ama?
RENATO: Essa resposta está no livro (risos). Eu diria que é possível a gente fazer essa pergunta e talvez encontrar caminhos. Não precisa ter uma resposta final, uma receita. Mas o amor é um afeto muito caro. Então, perguntar “por que nós amamos?” talvez seja importante pra gente compreender por que estamos vivos. O que nos mantém vivos? Será que o amor é um alimento de manutenção da vida? Sem fantasia. O amor sem fantasia. O amor como uma potência criativa. Essa é um pouco a ideia.
CEARÁ CRIOLO: Essa ideia se aplica também quando a gente racializa a questão? O amor é a mesma coisa pro senhor, um homem negro de pele escura, e um homem branco?
RENATO: Eu diria que o racismo produz uma insegurança afetiva na população negra. Essa é uma questão séria. Por conta do racismo, alguns corpos não são corpos amáveis. Algumas pessoas não têm o padrão para serem amadas. Não são amadas na medida. A sociedade não oferta amor pra elas, como um todo. Ainda que ela tenha amor na vida privada, com uma família, tem uma sociedade que está dizendo pra ela o contrário, porque ela não aparece como essa imagem preferencial pra ser amada. Então, é diferente. É assim também quanto às questões de gênero, etárias, geracionais, de orientação sexual… Na população LGBT, existe um problema gravíssimo de afetividade voltada pra uma cisheteronormatividade. Tem corpos que são considerados abjetos.
Pra alforriar tudo isso, a gente precisa implicar as pessoas brancas e cishetero nesse processo, pra elas compreenderem os seus privilégios. O privilégio de serem o único objeto do amor. Na cultura do trovadorismo, ocidental, que tem ícones como Romeu e Julieta, tem uma princesa pra ser amada. E ela é branca. Não tenha dúvidas. Esse é um problema e a gente tem que discutir isso pra gente se reconfigurar. A gente tem que enfrentar isso.
CEARÁ CRIOLO: O senhor coloca o ódio como oposto ao amor? Existe um pouco de amor no ódio e um pouco de ódio no amor? Porque essa é a construção histórica que se faz em torno do tema…
RENATO: Se a gente pensar com Freud, com Lacan, a psicanálise, por exemplo, o ódio e o amor não são necessariamente opostos. Talvez, o oposto do amor, assim como o oposto do ódio, é a indiferença. Então, tem uma pulsão tanto no ódio quanto no amor. Tem uma ambivalência. Uma ambivalência no humano que uma hora a gente ama um objeto e depois odeia, como se não fosse possível e só se pudesse amar ou odiar.
Como eu vejo que o ódio é um afeto, eu vou fazer uma fala também política. Falo do ódio na dimensão do poder. Como o ódio é um afeto, um sentimento que consegue convidar as pessoas a se tornarem servas do poder, enquanto o amor é uma agricultura mais lenta. Porque é uma agricultura que requer trabalhar para colher o fruto. O ódio é como se ele pudesse catalisar muito rápido a nossa aderência. Por isso que as políticas de ódio são muito fáceis de serem implementadas, em dada medida. Elas lidam com emoções mais imediatas; já chamam a pessoa na hora. Ela energiza as pessoas. As pessoas se mobilizam mais rápido com o ódio. Essa é a diferença do ódio pro amor, talvez.

CEARÁ CRIOLO: Já que o senhor estuda a cosmovisão africana, o que a gente está praticando do lado de cá errado comparado com o que é vivido nos países africanos? E que tipo de cura a gente está buscando, considerando que, como diria bell hooks, amor é prática e cura?
RENATO: Na cultura ocidental, o amor está muito pautado numa fantasia que projeta o objeto do desejo, que inclui no objeto do desejo um tipo de sonho quase sobrehumano. Então, a gente ama uma princesa, um príncipe, ama alguém que a gente não consegue reconhecer as suas limitações, as suas impossibilidades. Esse é um problema. E o que a gente pratica como cura aqui? O processo de colonização afetou o mundo inteiro. Então, a gente pra gente praticar isso – a cura – a gente precisa fazer uma reconexão com a gente, ter um tipo de autointimidade, pra que a gente possa entregar pro outro, pra pessoa amada, uma versão que não seja uma fantasia sobre nós mesmos.
O que uma relação precisa? Ser sem fraude e sem favor. Não faço por favor e não vou fraudar dizendo que meu desejo ou meu pensamento está num lugar que ele não está só pra conquistar o outro. Então, tem um tipo de narcisismo, de quem quer muito ser amado e precisa se vender como aquilo que o outro quer comprar. Tem um mercado de afetos que está pautado numa fantasia romântica.
Em muitas comunidades tradicionais africanas, amor não tem a ver com vender uma fantasia. Amor tem a ver com o encontro nu e cru entre duas pessoas humanas que podem construir condições pra elas poderem se encontrar a partir do encontro com a outra.
CEARÁ CRIOLO: É interessante o senhor falar em “duas pessoas humanas” e não “entre um homem e uma mulher” porque até essa dicotomia nos difere de lá. A construção do que é uma mulher e o que é um homem, em algumas sociedade africanas, existe uma percepção totalmente diferente daqui…
RENATO: Sendo que a colonização também atingiu o continente. A Oyèrónké fala da invenção das mulheres. Ela vai dizer que obá não é rei. Obá é governante, mulher ou homem. Os DaGara nunca tiveram problema com pessoas do mesmo sexo biológico casarem. Isso nunca foi um problema. Eles não têm nem nome pra isso. São apenas pessoas casando e ponto. Pessoas casaram. Mas a colonização entrou lá e intoxicou esse processo também.
CEARÁ CRIOLO: Professor, pro contexto político que temos hoje em dia, a gente tem uma polarização extremada. Essa é uma dualidade parecida com essa dualidade do amor e ódio, já que quem ama um lado necessariamente tem que odiar o outro? A gente vai vencer ou pelo amor ou pelo ódio?
RENATO: Eu acho que tem um discurso no meio disso que é o da esperança, sem dúvida nenhuma. Tem um grupo que aposta mais no medo, na insegurança. A extrema direita no mundo tem se construído assim. Existe um fluxo no mundo inteiro na última década. Esse movimento começou a ganhar mais corpo. Há muitos agentes internacionais atrás disso. E com o Brasil não é diferente. Sempre teve grupos que tiveram uma propensão ao sentimento do fascismo. O fascismo não é apenas um dispositivo político. O fascismo é um sentimento. É uma prática pautada num sentimento de insegurança e ódio. O fascismo é um exercício de delegar pra uma figura autoritária, uma figura paterna, o patriarca, os cuidados que a gente precisa. E essa figura é necessariamente um homem branco. Porque o fascismo tem muita ligação com o patriarcado. É articulado. E o patriarcado tem sua estrutura pautada em modelos de organização sociais hegemônicos no contexto euroasiático. Tem sempre um homem branco. É esse lugar. A gente delega pra alguém. É um grande pai.
CEARÁ CRIOLO: O senhor acha que a dimensão continental do Brasil favorece essa postura de “prefiro que o outro resolva o problema porque o problema não é meu”?
RENATO: Acho que favorece, mas o que favorece muito é a pobreza, a insegurança. Muitas pessoas estão impotentes. Não têm onde morar. Não têm segurança alimentar. É preciso uma saída radical. Não tem o que fazer. E, aí, essa saída radical é você abrir mão da sua autonomia. Por isso que dá pra entender por que pessoas pobres apoiam projetos de extrema direita, que não as inclui. Elas apoiam um projeto misógino, racista, cisheteronormativo. Elas apoiam porque têm medo, têm ansiedade.
CEARÁ CRIOLO: Como o senhor avalia esse aceno do Lula pra ala mais história da esquerda e, agora, pra direita, com o Alckmin sendo possivelmente o vice? O caminho é esse mesmo? Ou a gente está indo por um caminho perigoso?
RENATO: Essa é uma das perguntas mais difíceis de responder. É extremamente difícil! Porque Lula sempre foi um grande político de centro-esquerda. Isso é importante. Lula não tem nenhuma incoerência na trajetória dele. Do ponto de vista formal, se a gente pensar quem foi o vice do Lula em 2002? Um grande empresário, um grande industrial, alguém do mercado, alguém do capitalismo, um agente do capitalismo. Então, eu acho que não há contradição. Existe uma fantasia de setores de esquerda e quase uma extrema esquerda em relação ao Lula como uma liderança de esquerda ou de extrema esquerda. O Lula é um político de centro-esquerda. Isso me parece nítido. Pra quem está apostando num projeto de centro-esquerda, esse é o caminho. Pra quem aposta num projeto de esquerda ou extrema esquerda, o Alckmin seria um freio pra isso. Mas se for o projeto de centro-esquerda, o Alckmin é um facilitador de um diálogo com o mercado, com o grande mercado.
CEARÁ CRIOLO: E o senhor entende que o momento atual pede o quê?
RENATO: Pra atual conjuntura, a gente não consegue ter uma candidatura de esquerda mais radical. Não consegue, infelizmente. Porque a gente não tem as condições sociais históricas pra isso. A gente tem uma população de extrema direita, que coloca suas pautas, que mobiliza redes sociais, que faz agenda, mas não temos um grupo de extrema esquerda com essa potência, muito embora esse grupo exista. Mas ele está disperso. Não consegue se articular pra pautar a agenda nacional.
CEARÁ CRIOLO: E muito disso também vem do imaginário de que a extrema esquerda anda armada, come criancinhas, mata deliberadamente e tantos outros absurdos. Tanto que muitas vezes se pensou no nome do Dino pra ser vice do Lula e, mesmo tendo feito um trabalho incrível no Maranhão, é visto como um radical porque pertencia ao PCdoB…
RENATO: E o Dino foi pro PSB justamente por isso, né? Porque o PCdoB assusta a opinião pública em geral. A pessoa olha e diz: “caramba, é comunista!”.
CEARÁ CRIOLO: Sendo o senhor um homem das Ciências Sociais e Humanas, como avalia o momento atual da universidade brasileira, tão marcado pelo desmonte, sucateamento e perseguição?
RENATO: É um momento grave. Um momento grave que só se modifica a partir de um novo grupo político fazendo o gerenciamento do Estado brasileiro. Enquanto a extrema direita, que dialoga com o capital de forma subalterna no jogo da geopolítica internacional, a gente não tem alternativa pra promoção de uma universidade mais fortalecida na pesquisa, no ensino e na extensão. Não há saída de forma alguma. O centro-esquerda pode sinalizar pra isso, mas temos uma dificuldade de termos um programa que radicalize no enfrentamento das questões. Há essa dificuldade porque a gente precisa fazer um diálogo com a burguesia. E Lula faz essa conversa. Ele sabe fazer. Nunca foi esse bicho papão. Talvez quem tenha um perfil hoje, uma liderança nacionalmente reconhecida, é o Boulos. Ele tem um programa ousado.
CEARÁ CRIOLO: Não sei se ousado é o termo apropriado, professor. O programa dele é exequível? Porque ele não teria apoio no Legislativo, fatalmente…
RENATO: Sim. E ele nem vai ser mais candidato a presidente, né? Deve arrastar muita gente pra deputado federal. Mas citei o nome dele só pra dizer que é um projeto de esquerda.
CEARÁ CRIOLO: Professor, a gente tinha há até pouco tempo um projeto de esquerda em curso. Lula ficou dois mandatos, Dilma quase chegou ao fim do segundo e a gente teve quase 20 anos atrás o início de uma lei que o senhor estuda muito bem e que até hoje ainda é um fantasma. Por que a gente não consegue ver a Lei 10.639 implementada efetivamente?
RENATO: O racismo estrutural é responsável por isso, sem dúvida nenhuma. Tem muitos professores e intelectuais antirracistas que estão fazendo isso.
CEARÁ CRIOLO: Mas fazem por iniciativa própria, né? Porque como prática institucional, professor, isso não existe…
RENATO: Como prática, é uma dificuldade. Mas vejo que tem um avanço muito grande. O que ocorre? A legislação tem impactos. Muita gente que não faz nada faz aquele trabalho turístico. Coloca no currículo uma data comemorativa e faz uma semana da consciência negra. Isso já se tornou uma prática. A legislação conseguiu criar uma cultura, ainda que uma cultura turística. Faz num momento pontual e acabou. Mas há prefeituras mais avançadas nesse debate. Acho que tem que ter uma disputa por dentro da máquina pública pra poder implementar. Isso vira e mexe ocorre em alguns mandatos e governos. E tem escolas privadas que começam a fazer por conta de uma imposição da clientela. As próprias famílias demandam. Então, a lei é importante e tem que ser mantida por isso.
CEARÁ CRIOLO: Historicamente, a existência do povo negro é sistematicamente negada no Ceará. Em contrapartida, temos uma população negra em maioria. Como explicar esse descompasso entre essa invisibilidade e a autoafirmação?
RENATO: É, a situação do Ceará é bem difícil. E é assim porque essa população negra não está nos cargos de gestão do poder público. Ou os grupos que estão não necessariamente partem de uma epistemologia antirracista ou afroreferenciada pra esse debate. Como as elites nacionais são eurodescententes, mesmo em estados com maioria negra, como a Bahia ou o Ceará, não se faz uma revisão do pacto narcísico da sua branquitude. A gente tem tentado tensionar. Se a gente não tensiona, não se vai fazer. Porque é isso: elites são brancas.
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Comunicólogo e mestre em Antropologia, é especialista em Jornalismo Político e Escrita Literária e tem MBA em Comunicação e Marketing em Mídias Digitais. Foi repórter e editor dos jornais O Estado e O POVO, correspondente do portal Terra e colaborador do El País Brasil. Atua hoje como assessor de comunicação. Venceu o Prêmio Gandhi de Comunicação, o Prêmio MPCE de Jornalismo e o Prêmio Maria Neusa de Jornalismo, todos com reportagens sobre a população negra. No Ceará Criolo, é repórter e editor-geral de conteúdo. Escritor, foi finalista do Prêmio Jabuti de Literatura 2020.