Quinta maior cidade do Brasil em termos populacionais, Fortaleza tem cerca de 65% dos habitantes autodeclarados negros. Essa proporção, no entanto, não se reflete na composição do secretariado do prefeito eleito Sarto Nogueira.
Na antevéspera de assumir o cargo, ele anunciou nessa quarta-feira (30/12) o primeiro escalão da gestão. E seguiu a linha adotada desde o início da campanha: ignorou por completo a diversidade étnica de uma metrópole do tamanho da capital cearense.
Assim como sequer citou a população negra nas propostas de governo apresentadas ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Sarto formou um time branco de secretários para comandar uma cidade majoritariamente não-branca.
Foram anunciados ontem 22 nomes pelo prefeito eleito, sendo seis mulheres e alguns pertencentes ao mandato anterior, que mudaram apenas de pasta. Ou seja: o secretariado de Sarto é nada além do velho “mais do mesmo”. O perfil de gestor dele é: homem, branco, heterossexual e (definitivamente) fora de qualquer faixa de vulnerabilidade social. Igual ao próprio perfil e ao de Roberto Cláudio, de saída para breve descanso da imagem e, muito em breve, outros voos políticos.
Simbolicamente, essa ausência negra diz muito. Porque nos referimos a uma comunidade que deveria participar ativamente de todas as decisões da cidade e é alijada do debate desde o início, na formulação do plano de governo, numa prática que se concretiza agora, com a exclusão material e representativa do primeiro escalão da Prefeitura de Fortaleza.
Difícil crer que esse vazio étnico seja consequência da falta de quadros negros qualificados na capital cearense (ou mesmo fora dela). Há inúmeros nomes importantes dentro da comunidade acadêmica, por exemplo, de onde Élcio Batista, vice de Sarto, tem origem.
Bons especialistas poderiam ter saído da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab), cujo campus fica em Redenção, do lado da capital cearense. Ou mesmo, considerando a proximidade geográfica, do corpo docente das faculdades da Universidade Federal do Ceará (UFC) de Fortaleza mesmo.
Ao excluir o povo negro do secretariado, Sarto evidencia total descompromisso com uma causa largamente pautada durante todo o ano em todo o planeta. Uma desconexão sintomática. Algo que, pelo cenário político em si, movimento social nenhum precisaria nem apontar como urgente. Bastaria bom senso.
De toda forma, também não cabe o argumento de falta de alerta. Além das inúmeras vozes que gritaram nas ruas por menos racismo estrutural/institucional, a então campanha do então candidato foi alertada sobre a omissão quanto à negritude já no plano de governo, no início da caminhada eleitoral. O próprio Ceará Criolo fez a denúncia à época.
É preciso que se diga também: estamos falando de um candidato que atravessou uma campanha inteira falando em renovação, muito embora representasse a continuação da administração atual, em andamento há oito longos anos, e usou de forma recorrente, em todas as plataformas possíveis, o argumento da imperiosidade de derrotar o bolsonarismo, representado pelo do adversário direto.
Pensemos: o que é o bolsonarismo? A exclusão de minorias, simbólica e material. E o que tem feito Sarto? Exclui uma minoria fundamental a qualquer gestão. Sim, fundamental. Porque é impossível pensar na implementação de qualquer política pública sem considerar o componente racial. E homem branco nenhum é capaz de alcançar o marcador social da negritude. Por isso é necessário ter uma equipe etnicamente diversa. Equipes inteiramente brancas pensam projetos considerando apenas a própria realidade. Ou seja: branca, privilegiada, que não sofre racismo, não é excluída, não é morta por ser o que é.
Como disse, o debate em torno da implementação de políticas antirracistas está francamente posto. Não adere ou não enxerga a necessidade dele quem não quer ou não tem interesse de mudar o status quo de uma sociedade racista e financiada por um poder público, um Estado, historicamente racista, classista e eugenista.
Preocupa saber que é essa gestão quem vai implementar o Estatuto Municipal da Igualdade Racial, aprovado este ano pela Câmara de Vereadores e que nasce com uma década de atraso em relação à legislação federal. Que vontade política diante do tema podemos esperar de uma administração que, na sua essência, na mais basilar das representatividades, ignora as negritudes?
Me pergunto se Sarto sabe que existem negritudes em Fortaleza. Porque, me perdoem (ou não) a franqueza, parece que o mais novo prefeito da quinta maior cidade do país tem ainda muito o que aprender sobre a diversidade racial do município que vai gerir pelos próximos quatro anos.
Até lá, nada de novo sob o sol.

Comunicólogo e mestre em Antropologia, é especialista em Jornalismo Político e Escrita Literária e tem MBA em Comunicação e Marketing em Mídias Digitais. Foi repórter e editor dos jornais O Estado e O POVO, correspondente do portal Terra e colaborador do El País Brasil. Atua hoje como assessor de comunicação. Venceu o Prêmio Gandhi de Comunicação, o Prêmio MPCE de Jornalismo e o Prêmio Maria Neusa de Jornalismo, todos com reportagens sobre a população negra. No Ceará Criolo, é repórter e editor-geral de conteúdo. Escritor, foi finalista do Prêmio Jabuti de Literatura 2020.