O presente texto traz uma pequena reflexão sobre essa violência que atinge negros e negras e interrompe sonhos e projetos de vida como algo que vem de longe.
Sabe-se que essa violência é histórica e se estrutura ao longo do tempo, criando formas complexas e racionais de dominação que deviam garantir a eterna subjugação dos negros e negras aos brancos em nossa sociedade. Sim, essa estrutura de dominação sustenta privilégios e garante o poder dos brancos, já que não há racismo sem branquitude. Como diz o rapper americano Talib Kweli, “nenhuma pessoa branca que vive hoje é responsável pela escravidão, mas todos os brancos vivos hoje colhem os benefícios dela, assim como todos os negros que vivem hoje têm as cicatrizes dela”. Assim como afirmo que a violência é histórica, consequentemente, essas marcas também. são
Desde o momento que o sistema colonial necessitou de mão de obra e os africanos foram usados para ocupar este papel como escravizados que a trajetória de vida desses (e de seus descendentes) vêm sendo interrompidas. Para melhor entendermos, imaginemos uma situação fictícia, mas não muito distante da realidade, sobre três jovens amigos.
Suponhamos que viviam em Cabinda, em 1840. Cabinda, à época, se resumia a uma pequena colônia de pescadores e caçadores que vivia à beira-mar, sendo a mais importante saída marítima do reino de Cacongo1, um dos estados confederados do reino do Congo. Um dos jovens se chamava Mpumelele, cujo o nome significa sucesso, no idioma Zulu. Tinha 18 anos e era filho de pescadores. Seus pais tinham muito orgulho pelo fato de ele ter aprendido muito cedo a arte da pesca. Havia ainda a Latasha, que em kikongo significa surpresa. Ela era alguns meses mais nova que Mpumelele – portanto, tinha 17 e faria 18 anos alguns meses à frente. Filha de uma sacerdotisa e do Nkisi Katendê, seria, como determinado pelas divindades, a sucessora a assumir o sagrado quando sua mãe fosse ao encontro de Zambi. Ela sabia muito bem usar ervas e folhas. E, por último, o mais velho dos três amigos, Nkanga, que também em Kikongo significa bravura. Esse vinha de uma linhagem de grandes caçadores. E o mesmo, ao que tudo poderia indicar, se tornaria um. Todos tinham um futuro promissor na pequena colônia.
Quando se encontravam era aquela alegria. Cada um tinha já traçado uma trajetória para suas vidas. Porém, certo dia, quando os três estavam juntos, aconteceu algo inimaginável e desastroso. Os três foram pegos e levados como cativos por comerciantes e jogados em um navio negreiro. Se iniciava naquele momento o processo de interrupção de suas vidas prósperas que teriam em Cabinda. A partir daquele momento, “perdem” sua humanidade. São tornados escravos.
Estrategicamente, os opressores não os enxergam mais como humanos e os reduzem à condição de animais. Seus nomes são mudados e perdem os significados dados pela ancestralidade: Nkanga se tornou João; Mpumelele, Francisco; e Latasha, Maria. E aqui tem-se um pequeno exemplo dessa violência que apenas se inicia: a tentativa de destruição de suas identidades.
Achille Mbembe, ao tratar dessa situação, afirma que, “a condição de escravo resulta de uma tripla perda: perda de um “lar”, perda de direitos sobre o corpo e perda de estatuto político. Essa tripla perda equivale a uma dominação absoluta, uma alienação de nascença e uma morte social (que é expulsão fora da humanidade).”2 As vidas e o futuro desses três jovens foram desgraçadamente obstruídos.
Sabe-se, no entanto, que essa história não representa uma situação que se limita exclusivamente a três ou quatro pessoas. O tráfico era uma empresa que comercializava seres humanos. Estima-se que, enquanto vingou o sistema escravista no novo mundo, foram sequestrados de suas terras cerca 11 a 12 milhões de africanos para a América. Destes, 40%, ou seja, quase a metade, foi trazida para o Brasil. Sem falar dos milhares que ficaram pelo caminho. Todos foram violentamente forçados a esquecer de seus sonhos e da sua vida em algum lugar do continente africano.
Entretanto, algum leitor poderá pensar que ao chegar aqui esses africanos puderam reorganizar suas vidas. É, houve casos em que isso ocorreu. Mas tal situação não foi algo vivido pela maioria dos escravizados. E, quando isso ocorreu, não aconteceu sem luta. Escravizados constituírem família era algo muito complicado, mas não impossível. A partir de muitas lutas e negociações, eles conseguiam ampliar espaços de liberdade e ali realizar o que desejavam. No entanto, dentro dos limites impostos por uma sociedade escravista. E esses limites eram reais.
A sociedade escravista era cruel. O africano que em sua terra tinha uma família estruturada e era sequestrado e vendido como escravo, via toda sua vida virar de cabeça para baixo. Ao sobreviver à travessia do Atlântico e chegar num porto de uma cidade qualquer do Nordeste, a exemplo do Recife, era levado logo para um lugar, seja uma praça ou mercado, para ser vendido. Imaginemos que em um desses lugares um comerciante cearense o comprasse. E após a compra o enviasse para alguma fazenda no interior da província do Ceará. Com o tempo, após muitas dificuldades, esse conhece alguém, se apaixona, se casa e tem filhos, constituindo, mesmo com as dificuldades, uma segunda família.
Entretanto, ao chegar 1877, a província do Ceará é atingida por uma grande seca. Essa seca se estende para os anos de 1878 e 1879, gerando grande mortandade e fome. Seu senhor, para sobreviver, não tem dúvidas. Resolve vender toda a família para um comerciante que atuava no tráfico entre províncias. Naquele momento, a agonia retorna. O filho e a esposa são vendidos para o Rio de Janeiro e ele para o interior de São Paulo. Esse africano vive pela segunda vez a dor de ser separado dos seus. Sente novamente a quebra dos laços afetivos e mais uma vez tem sonhos interrompidos. A violência se manifestava em todas as instâncias da vida do escravizado. A própria condição de escravizado já era um claro reflexo disso.
Qualquer relato histórico do surgimento do terror moderno precisa tratar da escravidão, que pode ser considerada uma das primeiras manifestações da experimentação biopolítica3, afirma Mbembe. Quando se fala de biopolitica4, se está aqui referindo-se a um conjunto de ações racionais (utilizando o saber e o poder) para manter e ampliar uma relação de dominação de uma população. Foi assim que a sociedade escravista se estruturou. A meta era a domesticação dos corpos negros para que esses fossem dóceis e obedientes e assim servir aos brancos. Isso funcionou completamente? Não. Resistimos maravilhosamente.
A resistência negra em toda a América mexeu com o imaginário dos Brancos, principalmente após a Revolução do Haiti, em 1804. A revolução haitiana foi uma grande rebelião de escravizados que levou São Domingos à independência sob a liderança dos líderes negros Toussaint Louverture e Jean-Jacques Dessalines, criando a primeira República negra nas Américas. Isso fez surgir nos corações e mentes da elite brasileira o medo branco da rebeldia negra. Era preciso impedir que isso ocorresse por aqui. Era necessário criar um aparato repressor. É neste contexto e com esta finalidade que é criada a Polícia Militar. A saber.
Em 1808, D. João VI, com medo de uma invasão de Napoleão em Portugal, foge para a colônia portuguesa nas Américas e traz consigo a Corte, composta de 15 mil pessoas. Nesse período, a ordem no Rio de Janeiro era mantida por guardas desarmados escolhidos pela prefeitura e pelos agentes dos bairros. Desse modo, com a chegada da família real e dos nobres, foi necessária uma melhor organização policial.
Importante ressaltar que nessa época mais da metade da população do Rio de Janeiro era de escravizados (negros crioulos e africanos) e toda a economia dependia deles. Essa realidade somada às notícias da Revolução do Haiti deixou os brancos com medo. Segundo o pesquisador Patrick Ashcroft,
Havia, porém, grande receio de uma possível revolta, pois a virada do século XIX tinha vivido . O Príncipe Regente Dom João não estava preparado para tomar riscos ligados a um movimento desse porte, estabelecendo, assim, a Divisão Militar da Guarda Real de Polícia em 1809. A Divisão tinha sua estrutura parecida à do exército e sua função era a de garantir a ordem pública.5
Na verdade, garantir e manter a ordem pública pode ser um conceito muito vago. Na prática, esta instituição passou a agir como órgão de repressão para subjugar qualquer revolta negra, protegendo a elite branca dominante do Rio de Janeiro dos “perigosos” negros escravizados. Algo que faz até hoje.
Como pode-se observar, a polícia militar foi criada para reprimir os negros e garantir a existência de corpos negros dóceis e obedientes. Não é por acaso que ela continua fazendo, de forma competente, seu papel. Como braço armado do Estado e com o direito “legítimo” do uso da violência, enxerga os negros como inimigos em potencial. É a necropolitica, de Achille Mbembe. O uso do poder social e político para ditar como algumas pessoas podem viver e como algumas devem morrer.
Ao longo de nossa história é isso que assistimos: o Estado decidindo quem deve morrer e quem deve viver, quem tem ou não acesso a políticas sociais, de educação e de saúde. Portanto, se observarmos, há uma relação entre racismo estrutural, branquitude e necropolítica, pois a sociedade brasileira se estrutura de uma forma que vem a beneficiar apenas os brancos.
Brancos não são seguidos em supermercados nem diariamente são parados pela polícia. O número de mortes entre eles, causada por uma abordagem policial, é assustadoramente menor do que aquelas que atingem os negros. Os brancos podem infringir a lei e raramente sofrem punição grave. Ser branco no Brasil é ter poder. Já ser negro é ter um alvo em seu corpo onde a bala perdida sempre o localiza. E nesse momento sua trajetória de vida é interrompida, assim como daqueles que vieram antes. Hoje, se vive um genocídio da juventude negra e esse genocídio é parte de um projeto de Estado.
Passado e presente se ligam. No passado, o sistema escravista interrompeu a vida de muitos africanos. No presente, o projeto de Estado baseado na preservação dos privilégios e do poder da branquitude torna-se o grande responsável pelo crescente número de violência e mortes entre a população negra. Segundo o jornal Diário do Nordeste, “o perfil da maioria das vítimas assassinadas no Ceará foi delimitado pelo Governo estadual. Homens negros, de 15 a 29 anos, com baixa escolaridade e renda compõem a maior parte das estatísticas dos Crimes Violentos Letais Intencionais (CVLIs) que, em 2017, ultrapassaram todos os registros dos anos anteriores no Estado”.6
E este genocídio continua. Não esqueçamos que na noite de 13 de setembro de 2019, no bairro Vicente Pizon, um adolescente negro de 14 anos chamado Juan Ferreira dos Santos foi morto durante uma abordagem policial na Praça do Mirante, onde estava com colegas. Querem impedir um futuro negro destruindo o presente. Por isso a juventude é alvo. Estamos por nossa conta.
Nunca esqueci o resultado de uma pesquisa divulgada pela Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir) e DataSenado que saiu durante o primeiro mandato da ex-presidente Dilma Rousseff. A pesquisa é bem significativa para entendermos o porquê geralmente afirmo que estamos por nossa conta. Para 55,8% da população brasileira, a morte de um jovem negro choca menos do que a de um jovem branco. Isso é algo, no mínimo, assustador.
Há uma indiferença por parte da sociedade brasileira quanto aos sonhos e vidas negras interrompidas. No entanto, o que aprendi ao olhar para o passado é que eles nos temem. Esse é um projeto que vem de longe para nos exterminar. Nos organizando e lutando dizemos não a esse extermínio. Planejaremos sempre resistir. Ousaremos sempre a sonhar e a viver. Eles interrompem as trajetórias de alguns. Nós, através da ética da solidariedade e da sociabilidade, ajudaremos outros, muitos outros, a continuar suas vidas e a realizar seus sonhos.
1 LaGamma, Alisa (2015). Kongo – Power and Majesty. Nova Iorque: The Metropolitan Museum of Art. p. 47
2 MBEMBE, Achille. Necropolítica. 3. ed. São Paulo: n-1 edições, 2018. 80 p. Pág.27.
3 MBEMBE, Achille. Idem.
4 Conceito criado pelo filosofo Michel Foucault.
5 Disponível em: https://rioonwatch.org.br/?p=10231
6 Disponível em: https://diariodonordeste.verdesmares.com.br/seguranca/jovem-negro-e-da-periferia-e-o-perfil-de-quem-mais-morre-no-ce-1.1863313
Graduado em Ciências Sociais e mestre em História Social pela Universidade Federal do Ceará (UFC). É pesquisador da Cultura e História do Negro no Ceará.