Ainda não sei se acredito nesse negócio de céu. A ingenuidade permite o sonho e eu penso que sim, tal qual uma criança; o mundo, cru, empurra a realidade e me prova que não. Enquanto isso, torço para os meus estarem lá. No céu. Os mortos, os morridos e os matados, como diriam ancestrais matutos.
Principalmente os matados. Porque quando alguém da vida é arrancado com brevidade, sem recado, aviso ou chance mínima de desejo contrário, penso eu que o sujeito vai direto, sem escala, por direito, pra esse canto de onde a gente não volta e dizem ser pra sempre uma coisa boa. Uma libertação. Uma cura.
Mas é preciso que fique claro. Hoje, após o fim bárbaro do João Pedro, é preciso que fique escancaradamente claro. Cada parente, colega de trabalho, vizinho ou simples conhecido que dois anos atrás apoiou o início dos tempos sombrios que a gente vive hoje, cada um é responsável pela morte desse garoto de 14 anos.
Cada voz que silenciou na eleição de 2018 ou silencia nos absurdos diários ou mesmo se colocou a favor da institucionalização da barbárie tem nas mãos o sangue desse menino. Não venha agora, por favor, se dizer revoltado com o assassinato dele e de tantos outros negros em favelas. Não se choque com o silenciamento dessas vozes. Não seja hipócrita. Elas estão sendo mortas com o seu aval. Vozes como a do João Pedro. Um futuro. Vários.
Cada artista que, com sua rede de influência gigantesca, preferiu não tomar partido, não colocar o dedo na ferida, não se posicionar, não se opor a essa insanidade que aí está, se acovardou e bancou o isentão, nos poupe, por favor, de agora, com a tragédia consumada, publicar foto do garoto com legenda de indignação.
E, senhores políticos, não me venham, por obséquio, com notas de repúdio. A gente não aguenta mais. Nenhuma. Nenhuma delas me serve de nada. Nos serve de nada. Nenhuma delas serve sequer para amenizar a dor da família do João Pedro. Na verdade, todas soam como uma grande encenação. Com o Supremo, com tudo. Um grande teatro cretino no qual o grande público é o povo, somos nós, os que defenderam o contrário da barbárie, sendo empurrados para um abismo sem fim.
Um agente de segurança que atira só atira com o respaldo de quem o chefia. E quem chefia a força policial é o Estado. No caso do João Pedro, o Governo do Estado do Rio de Janeiro, hoje comandado por um homem cujas visões administrativas sobre combate à criminalidade são idênticas aos ideais do homem que mais deveria prezar pela preservação de vidas mas prefere calar diante do barulho ensurdecedor de um país revoltado com a morte brutal de uma criança. Isso para não falar das mortes pelo invisível, que agora ultrapassam a casa dos mil.
E esse homem, lá em Brasília, cala por um motivo claro. A vítima é só mais um menino preto favelado. Fosse um branco morador de zona nobre, fosse a vítima o zero-1, o zero-2, o zero-3 ou o zero-4, a verdade é essa, o lamento teria se dado em rede nacional, com bandeira a meio-mastro e determinação do uso de toda a força de inteligência possível para a elucidação do crime. Mas não. Foi só mais um menino preto de favela. Que sonhava ser advogado. Mas só mais um menino preto de favela. Que estava dentro de casa, brincando com amigos. Mas só mais um menino preto de favela.
Meninos pretos de favela não têm direito à água e sabão que previnem do coronavírus. Nem ao frasco de álcool em gel. Nem a todas as refeições que qualquer um deveria ter, por dignidade. Muito menos ao computador com acesso à Internet para estudar pro Enem e, num futuro próximo, deixar a favela.
Meninos pretos de favela não têm direito ao sonho. São, é preciso que se diga, o alvo preferencial de uma Polícia que invade, ameaça, agride e mata de propósito o povo preto. E mata com o aval do governante, que mede o peso do negro em arroba – uma medição usada pra boi.
É por isso que João Pedro, agora, além de não ter mais direito ao sonho, como tantos outros meninos pretos de favela Rio de Janeiro adentro e Brasil afora, não tem sequer direito à vida, como tantos outros meninos pretos de favela brasis adentro. Aos 14 anos. João foi arrancado dela – da vida – covardemente. E mantido sob um silêncio covarde de 16 horas até os pais localizarem o corpo da cria numa gaveta gelada de IML.
Nenhum tiro é em vão. Cada bala que encontra um corpo negro tem uma razão (ou inúmeras, quase sempre), histórica e racista. Favelados (pretos, portanto, considerando o estigma fomentado pela própria Polícia) são o alvo mais, digamos, recorrente da violência militar. Irônico, não? Não. Realidade. Nua e crua dentro do rabecão.
Céu, política, morte, omissão, negritude e um menino de 14 anos, tudo isso junto e misturado tem a ver comigo, com você e com outros mais de 202 milhões de brasileiros. Tudo isso junto, lamento dizer, escancara o porquê do sentimento de impotência que tomou tanta gente desde a confirmação da morte do moleque. É tanto bombardeio de desgraça que a gente se sente anestesiado. Quase um torpor.
Desanima encarar o João Pedro como mais uma estatística que vai render algumas matérias de telejornal pra se transformar em um esquecimento. E isso vai acontecer já já. Mas já já MESMO. Porque quanto mais cortinas de fumaça subirem mais rápido o governo se assegura de essa dor – primeira dos pais, claro, mas também coletiva, especialmente pro povo preto e pobre – ser substituída pela revolta de uma declaração ministerial bizarra. E aí, mais uma vez, pela enésima vez, outra vida vai ter se perdido e a gente não vai saber pra onde foi.
Espero, na minha imensa ingenuidade, que o João tenha ido pro céu.
Se é que o céu existe.
Comunicólogo e mestre em Antropologia, é especialista em Jornalismo Político e Escrita Literária e tem MBA em Comunicação e Marketing em Mídias Digitais. Foi repórter e editor dos jornais O Estado e O POVO, correspondente do portal Terra e colaborador do El País Brasil. Atua hoje como assessor de comunicação. Venceu o Prêmio Gandhi de Comunicação, o Prêmio MPCE de Jornalismo e o Prêmio Maria Neusa de Jornalismo, todos com reportagens sobre a população negra. No Ceará Criolo, é repórter e editor-geral de conteúdo. Escritor, foi finalista do Prêmio Jabuti de Literatura 2020.