Me desenhar sempre foi um incômodo quando eu era moleque. Havia de um tudo, menos lápis com a minha cor. Lembro bem de certa vez abrir a caixa recém-comprada por papai, uma com mais tons do que o usual, algo em torno de o triplo além do comum, e ainda assim não ter um negro que sequer se aproximasse do que sou.
(Aqui, me permita, abro parênteses: não sou moreno. Também não sou “escurinho”. Nem “cor de jambo”. Muito menos pardo. Sou negro. Me enxergo negro desde que me entendo por gente. Gosto que me chamem assim. E isso nunca foi um problema existencial.)
Se quisesse chegar perto da minha cor, eu que desse um jeito de misturar tintas. Era uma novela até acertar. Quase todos os meus amigos, no entanto, a maioria de pele branca, se contentava com o famoso “tom de pele”. Um lápis popularmente conhecido como “tom de pele” que, na verdade, ironicamente, não era tom de pele. Ou até era, mas só de alguns.
Eis que enfim, por esses dias, quase três décadas após a minha meninice, eu esbarro numa reportagem anunciando uma caixa de lápis com tonalidades que permitem desenhar pessoas negras sem a necessidade de misturar cores. Finalmente o mercado descobriu, vejam só, que a população deste país é imensa (e o melhor: é plural)!
Você pode pensar: “ah, Bruno, que frescura. Criança não tá nem aí pra isso”. E eu te respondo: não é frescura. Óbvio que quando eu era um moleque não passava pela minha cabeça qualquer conceito de embranquecimento populacional, racismo estrutural ou coisa do tipo. Mas imagine o quão avassalador pode ser uma criança já com poucas referências negras (porque o mundo nos oferece poucas) não ter a possibilidade de se enxergar nem numa simples caixa de lápis de cor!
No meu caso, toda a referência positiva sobre a minha cor que o mundo me negava era suprida pela minha família. Essa base foi fundamental para “ser negro” não se transformar numa questão para mim. Mas claro que essa não é a realidade de muita gente. Eu tenho ciência do meu lugar de privilégios. Inúmeros amigos meus, com características e vivências bem parecidas com as minhas, não se enxergam negros. São pardos, “mais escurinhos”, “moreninhos cor de jambo”, qualquer coisa. Menos negros.
E isso é reflexo de quê? Das caixas de lápis de cor? Existe uma conspiração das empresas com a ajuda das quais “numa folha qualquer eu desenho um sol amarelo”? Não creio. Mas sim, elas reforçaram durante décadas um estereótipo perigoso. Várias gerações cresceram dentro da prática de invisibilizar o povo negro já no mais ingênuo ato.
Se a gente, os pretos, não existe nem numa mísera caixa de lápis de cor, que custa menos de R$ 5, se a gente não habita nem o mundo imaginário da inocência, da sinceridade e da pureza, que dirá onde estamos no mundo real, esse lugar intolerante, excludente e letal.
Não é frescura um preto querer ser representado no mercado da mesma forma que uma pessoa branca. Quando a gente se vê em todo canto, quando a coisa é naturalizada, tudo se torna mais alcançável. A gente sai da casa do impossível, da subalternidade, da subserviência.
Se a gente pode mudar o mundo de alguma forma, já que tá tão difícil começar pelo meio ou pelo fim, vamos para o começo. Mudemos não pelas armas, mas pelo colorido das crianças. Pelas bonecas. Pelas sapatilhas de ballet. Organizando, tem espaço (e felicidade) pra todo mundo.
Bora ser feliz?
Comunicólogo e mestre em Antropologia, é especialista em Jornalismo Político e Escrita Literária e tem MBA em Comunicação e Marketing em Mídias Digitais. Foi repórter e editor dos jornais O Estado e O POVO, correspondente do portal Terra e colaborador do El País Brasil. Atua hoje como assessor de comunicação. Venceu o Prêmio Gandhi de Comunicação, o Prêmio MPCE de Jornalismo e o Prêmio Maria Neusa de Jornalismo, todos com reportagens sobre a população negra. No Ceará Criolo, é repórter e editor-geral de conteúdo. Escritor, foi finalista do Prêmio Jabuti de Literatura 2020.