“Eu percebi que diante de mim não estava
só alguém cujo tempo caminhava para o eterno.
Era o meu futuro que eu encarava no colo.”
Página 103 do livro “E, no princípio, ela veio”
Depois de 16 dias de internação por conta do AVC e das complicações dele decorrentes, nossa volta para casa foi, ao mesmo tempo, deslumbre e desassossego. Deslumbre porque mamãe estava viva. Com muitas limitações, mas longe de um estado vegetativo. E eu, que a vi desacordada durante no leito 6001.1 e cheguei a desacreditar no reencontro dos nossos olhos, compreendia nossa alta hospitalar como uma chance de viver mais tempo ao lado de quem eu mais amava.
Mas nosso retorno foi também desassossego. Porque tudo era novo (e todo novo é desconhecido (e todo desconhecido faz nascer na gente uma insegurança atroz)). Sem saber, iniciávamos naquele sábado, 7 de outubro de 2017, o dia no qual retornamos para casa, um estado de sobressalto. O menor detalhe era/seria motivo para espanto, dúvida, busca por especialistas, tentativas, erros e leituras. Muitas leituras.
Foi numa delas que descobri: a ciência estima em 10% as mortes por derrame isquêmico nos 30 primeiros dias da doença. E os seis primeiros meses após o derrame, além de determinantes para o sucesso das terapias de reabilitação, eram o período mais propenso para mamãe ter outro derrame. Inclusive hemorrágico. Isso nos colocava em alerta 24 horas. Assim, nós verificávamos os sinais vitais dela periodicamente, na tentativa de manter o mesmo ritmo das aferições do hospital, que ocorriam a cada seis horas.
Pressão, temperatura, frequência cardíaca, frequência respiratória, glicemia, saturação, todos eram parâmetros com os quais tivemos de nos familiarizar a partir do que víamos os profissionais da saúde fazerem no hospital e das orientações que nos davam. Afinal, mamãe tinha uma doença crônica e degenerativa. Porque é isso o que o AVC é. Ao contrário do que muita gente pensa, ele não é um episódio pontual. Ao contrário. Sobreviver a ele é apenas o primeiro desafio, porque o paciente passa a ter mini-derrames para o resto da vida.
Enquanto nos davam alta, os médicos explicaram. Esses microAVCs são inevitáveis. Por mais que mamãe esteja medicada, por mais que tenhamos todos os cuidados, por mais que ela seja assistida pelos melhores profissionais, eles vão acontecer. Não se trata de desleixo. A medicina ainda não avançou o suficiente em lugar nenhum do mundo ao ponto de criar um remédio capaz de impedir a ocorrência desses mini-derrames, que são imperceptíveis a olho nu, podem acontecer quando se está dormindo, e também podem deixar sequelas.
MICROAVCS
Pouco a pouco, esses microAVCs iriam comprometer – como de fato comprometeram – capacidades de mamãe que não haviam sido afetadas pelo derrame originário. Audição, visão, fala, mobilidade… Com o tempo, os médicos alertaram, tudo isso ficaria mais difícil de preservar. Não seria de imediato, mas aconteceria. Por isso, em meio ao assombro de tantos perigos e perdas iminentes, nós nos mobilizamos desde o primeiro dia.
O impacto financeiro das sequelas iniciais do derrame foi avassalador. Para conseguirmos lidar com elas, o quarto de mamãe precisou ser inteiramente adaptado. A cama, baixa demais, deu lugar a uma maca, na altura ideal para os procedimentos. As cômodas foram ocupadas por fronhas, capas protetoras do colchão hospitalar, lençóis adequados ao tamanho dele e de outro colchão, o pneumático, usado para evitar o surgimento de escaras, e os bibelôs nas prateleiras deram lugar a bisnagas de pomada para assadura e de cremes para prevenção de feridas, tubos de óleo de girassol, garrafas de hidratante, rolos de esparadrapo e microporo, frascos para dieta, equipos…
Tudo isso era providenciado enquanto estávamos no hospital. Mas também precisamos viabilizar: aparelho e sondas para aspiração, nebulizador/aerosol, máscaras de oxigênio, estetoscópio, medidor de pressão, glicosímetro, luvas cirúrgicas, máscaras, absorventes para incontinência urinária, pacotes e mais pacotes de fraldas, caixas e mais caixas de dietas enterais, levas e mais levas de medicamentos, seringas… De cara, um investimento de aproximadamente R$ 10 mil. E que nos exigiu muita, muita, muita disciplina para o que viria a seguir.

Para não falharmos, a parede ganhou um quadro branco no qual todos os horários foram listados. E, assim, estabelecemos uma rotina. Era uma forma de aplacar a insegurança que nos tomava o corpo diante de alguém inteiramente dependente da ajuda do outro. Da nossa ajuda. E algumas dessas tarefas, por mais contraditório que pareça, desaguava em mim um sentimento controverso. Às vezes, eu me sentia traindo mamãe. Invadindo a máxima intimidade dela. A mínima autonomia dela. O corpo dela.
JAMAIS POUCO
Minha mãe, a mulher que havia me parido nos afetos 30 anos antes daquilo, quem eu via como uma heroína, alguém que eu julgava ser infinita, essa mesma pessoa precisava de mim ali, agora, para o básico. Um banho. Uma ida ao banheiro. Uma troca de posição na maca. Um passeio no jardim ou no quintal. Um ajuste na velocidade do ventilador. Ela, que me era tão imortal aos olhos e sentimentos, tornara-se frágil. Um cristal prestes a quebrar.
Dado tempo ao tempo, na tentativa e no erro, que era, afinal, o que nos restava, nós aprendemos a lidar com tudo. Para isso, precisei ser muitos para suprir tantas quantas eram as necessidades de mamãe. Carreguei o meu mundo e o dela – que, na verdade, eram vários. Imensos. Ninguém existe por nove décadas sendo só uma. Deu, então, d’eu ser médico, enfermeiro, psicólogo, fisioterapeuta, técnico em enfermagem, fonoaudiólogo, terapeuta ocupacional, filho e, sobretudo, em dada medida, pai, para lidar com tamanhas urgências – e enfrentar meus próprios medos.
Tudo era muito. Tinha de ser muito. Jamais pouco. Ser pouco de cada uma dessas funções significaria, ao fim de tanto, ser pouco. Pouco de tudo. E pouco era o que ela já tinha naquela nova condição, na qual não saía de si. Mamãe precisava de mais. Demais. De muito. Do máximo do mundo dela de volta.
Nessa busca, as mais impossíveis tarefas de todas foram, sem dúvidas, lidar com fecalomas e escaras. Não há nada mais antinatural e constrangedor do que deitar a própria mãe de lado, calçar uma luva, fazer o toque retal e, mesmo diante do choro discreto dela, retirar, manualmente, uma massa endurecida de fezes para ela, enfim, ter condições de evacuar após dias de incômodo por constipação. E não há nada mais angustiante do que acompanhar o moroso tratamento de feridas que surgem pelo excesso de tempo de estar numa mesma posição.
O AVC tirou de mamãe, desde o primeiro instante, a possibilidade de andar. O lado esquerdo, paralisado, a impedia de equilibrar-se. Como ela conseguia ficar de pé, isso demandava da gente a destreza de ter que a mudar de posição a cada duas, três horas, no máximo. Do contrário, corríamos o risco de interrupção da oxigenação de algum ponto do corpo devido ao contato excessivo com o colchão, mesmo o pneumático, aquele cuja função é justamente evitar escaras.
Em casa, o derrame nos fez passar das noites tranquilas de sono e dos dias cheios das cantorias da Terezinha para uma agenda intensa de cuidados com ela. Rotina essa que não nos dava descanso nem de madrugada. O AVC ter ocorrido durante o sono demonstrou que, na condição de acamada, mamãe precisava de tratamento 24 horas. Assim fazíamos.


Comunicólogo e mestre em Antropologia, é especialista em Jornalismo Político e Escrita Literária e tem MBA em Comunicação e Marketing em Mídias Digitais. Foi repórter e editor dos jornais O Estado e O POVO, correspondente do portal Terra e colaborador do El País Brasil. Atua hoje como assessor de comunicação. Venceu o Prêmio Gandhi de Comunicação, o Prêmio MPCE de Jornalismo e o Prêmio Maria Neusa de Jornalismo, todos com reportagens sobre a população negra. No Ceará Criolo, é repórter e editor-geral de conteúdo. Escritor, foi finalista do Prêmio Jabuti de Literatura 2020.
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