“A gente começa a morrer já quando nasce.
E escolher um filho – mesmo que em vez de pari-lo –
é também desprenhar
e é também se demorar num futuro
um pouco mais comprido. O dele”.
Página 104 de “E, no princípio, ela veio”
Existe uma sequela do AVC sobre a qual pouco se fala e ninguém me alertou a respeito. Uma consequência que se dá não apenas sobre quem sofre o derrame. Também afeta quem está ao redor da pessoa que vive com as sequelas da doença ou de alguma forma vive em função da doença. Essa sequela é mais comum do que se imagina e, com o tempo, a gente aprende, só piora.
É a solidão de quem cuida.
Ela me pegou em cheio.
Eu, que sempre vivi cercado de tantas gentes de tantos lugares, me percebi sem rede de apoio quando tornei pública a situação de mamãe. O AVC de mamãe levou embora todos os meus amigos. Os que se diziam de verdade, fiéis, de uma vida inteira e para uma vida inteira, desapareceram todos, mesmo aqueles com extensas declarações de amor em redes sociais. Esses, talvez, tenham sido até os primeiros a se afastar.
Muitos familiares, inclusive filhos da Terezinha, e alguns parentes que eu romantizei uma vida toda como exemplos do exercício da alteridade, não manifestaram qualquer interesse de ajudar. A prática da solidariedade esbarrava no derrame de uma mulher de quase 100 anos. E, apesar de todas as minhas investidas – e não foram poucas – para dividirmos as responsabilidades financeiras e afetivas da nova mamãe, eles preferiram o distanciamento.
Explicitamente e sem melindres, eu pedi socorro diversas vezes, em diversas situações e a diversas pessoas. Em quase todas elas, tive como resposta apenas as duas setinhas azuis do WhatsApp indicando que a mensagem havia sido lida. Ou uma ligação cuja chamada terminava na caixa postal. De resto, o AVC impedia qualquer contato, real ou virtual, e elas ofereceram coisa nenhuma. Optaram pelo silêncio.
Sim, a ausência é uma escolha. O derrame de mamãe me ensinou isso, bem como me mostrou o quanto a doença dela impactava na minha saúde mental. A solidão na qual fui lançado por amigos e parentes fez eu ter, ao mesmo tempo, coragem e medo. Precisei ser forte para enfrentar os desafios que ela precisava superar, mas muitas foram as vezes nas quais desabei sobre mim mesmo e chorei, em silêncio, sem ter a quem procurar.
Saber que pessoas negras têm mais propensão a AVCs pelo fato de estarem diuturnamente submetidas ao racismo foi algo que me mergulhou em pensamentos do tipo: “e se eu sofrer um derrame dormindo, quem vai cuidar de mim? Quem vai ser o meu Bruno? Eu sou digno de ter um Bruno que estenda meus dias por aqui?”.
Muitas vezes, era mamãe quem me abraçava desde o olhar. Era ela quem me tocava o rosto, como alguém com o sentido de adivinhar ser justo aquela a minha necessidade maior. A Terezinha, que nunca murmurava, que era quem mais precisava de amparo, que jamais mal dizia de algo, foi, em várias ocasiões, o meu porto mais seguro.

A fórceps, eu compreendi que o derrame de mamãe empurrou a mim e ela em um abismo difícil de enxergar saída. Levou não apenas uma parte de uma mulher cuja vida já havia caminhado bastante, mas também quase todas as pessoas com as quais eu achava que podia contar. Era o que me diziam todas, que eu podia contar com elas. E eu, crente na bondade humana, não ousei duvidar. Para mim, a esperança precedia o sonho.
Mas a sensação a seguir foi de abandono. Desleixo. Descaso. Eu sentia que para os outros, para essas pessoas que se diziam tão disponíveis, minha dor era menor. Ou importava menos. Ou mesmo sequer importava. Que havia entre nós uma hierarquia, e eu estava na categoria mais baixa. Porque o comportamento deles me dizia isso:
– “Eu não vou visitar porque pra mim é muito difícil ver a mamãe nessa situação”, alegavam.
– “Eu não vou ver a tia porque ela não lembra de mim”, argumentavam.
– “Eu não visito a vó porque não tenho tempo”, justificavam.
Para mim, tudo não passava de pretextos e a verdade era que todos haviam decidido não ir. Afinal, para mim, também não era fácil ver a pessoa mais importante da minha vida definhando sobre uma cama de hospital improvisada em casa. Mas lá estava eu, conforme o que nos prometemos ainda na primeira internação. “Eu vou com a senhora até o último dia, minha mãe”, eu sussurrei essas palavras ao pé do ouvido direito dela.
Em função do AVC ou de alguma outra condição neurológica consequente do AVC, a Terezinha também podia até não lembrar de mim. Mas eu lembrava dela. Nas minhas memórias e afetos, ela estava viva, altiva, voraz, como sempre fora. E era por isso que eu estava lá, muitas vezes de mãos dadas, para nossos medos irem embora.
Eu conciliava a rotina dela com um trabalho em horário comercial e, a partir de dado momento desses sete anos e dois meses de cuidados em tempo integral, também tive de lidar com os estudos do mestrado (2021/2022) e do doutorado (2023/-). Mas tinha reservado no meu dia algum tempo para ela. Com ela. Dela. Como disse, uma escolha.
Os efeitos avassaladores do AVC (e dos microAVCs) me forçaram, da noite para o dia, a tomar decisões dilacerantes, para as quais eu até tinha recomendações expressas da própria Terezinha, dadas ainda em consciência, mas que nem por isso eram fáceis de ser ditas em voz alta, especialmente aquelas sobre a terminalidade da vida, diante do estado no qual ela chegou a se encontrar nos dias antes de morrer.
– É pra entubar?
– É pra levar pra UTI?
– É pra reanimar, em caso de parada cardiorrespiratória?
– É pra colocar em cuidados paliativos?
Fui eu, sozinho, às quatro horas de uma madrugada premonitória, no meio de um hospital estranhamente vazio, quem tive de responder ao médico as perguntas que ele lançou em minha direção após me desenganar sobre a chance de mamãe escapar àquela internação. Fiz tudo sozinho. E viver isso foi só mais uma das dezenas de violências que a solidão do AVC de minha mãe me impôs. Algo que poderia ter sido anunciado com a família toda reunida, como a Terezinha tanto nos ensinou para ser. Mas não foi.
Juntamos, então, eu e mamãe, as nossas solidões.
Éramos gêmeos delas.

Comunicólogo e mestre em Antropologia, é especialista em Jornalismo Político e Escrita Literária e tem MBA em Comunicação e Marketing em Mídias Digitais. Foi repórter e editor dos jornais O Estado e O POVO, correspondente do portal Terra e colaborador do El País Brasil. Atua hoje como assessor de comunicação. Venceu o Prêmio Gandhi de Comunicação, o Prêmio MPCE de Jornalismo e o Prêmio Maria Neusa de Jornalismo, todos com reportagens sobre a população negra. No Ceará Criolo, é repórter e editor-geral de conteúdo. Escritor, foi finalista do Prêmio Jabuti de Literatura 2020.
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