“Acabou-se, ela, antes de acabar.
Mas ninguém acaba! Acaba. Não acaba!
Nem quando morre? Nem quando morre.
Porque quando morre a gente continua pelo amor de alguém.
Pois é isso o amor: uma continuação da gente.
Mesmo que de alguma forma a gente finde.”
Página 97 do livro “E, no princípio, ela veio”
Em meio ao turbilhão de informações que recebi em poucas horas no hospital, uma me colocou em alerta. Confirmado o acidente vascular cerebral, seria determinante para a qualidade de vida de mamãe iniciarmos a reabilitação dela o quanto antes. Do contrário, correríamos o risco de sequelas permanentes e limitantes. Iniciamos, então, já no primeiro dia de internação, uma nova corrida contra as horas para o lado esquerdo dela não ficar ainda mais comprometido do que já estava.
Os seis primeiros meses seriam decisivos. Médicos, fisioterapeutas e fonoaudiólogos diziam: é neste período que o corpo de um paciente vítima de AVC apresenta as principais melhoras. Depois disso, tudo se resume basicamente à manutenção do que foi conquistado. No caso de mamãe, a situação era ainda mais delicada. Afinal, estávamos diante de uma mulher de organismo velho (89 anos), cujo derrame, embora não hemorrágico, tinha extensão considerável e não foi possível de tratar de imediato – o que implicava em danos cerebrais maiores.
Trocando em miúdos: uma recuperação total seria quase impossível. A debilidade imposta pelo tempo a qualquer pessoa idosa atrelada à violência de um AVC em um cérebro senil tornava tudo mais difícil. Se exitosa, seria uma retomada lentíssima. E justo o que nós não dispúnhamos era de tempo. Afinal, para mamãe, um dia a mais significava um dia a menos. Diferente de mim, ainda no começo da vida, no extremo oposto dela, para quem um dia a mais era/é só mais um dia. Tudo, então, precisava ser como fora tudo para Terezinha toda a vida: nas urgências.
A sonolência nos dois dias após o AVC demandou o uso de uma sonda nasoentérica, inserida pelo nariz até o aparelho gastrointestinal. Só assim, ingerindo uma dieta enteral (líquida), ela poderia se alimentar. “Esse quadro letárgico após o AVC é esperado. Está dentro da normalidade porque o cérebro dela sofreu um trauma. É como se ele estivesse inchado e precisasse desinchar para ela ir retomando os sentidos. E sua mãe, pela idade que tem, com um metabolismo um pouco mais lento devido a isso, pode demorar um pouco mais a despertar”, os médicos explicavam.
Após a prescrição sobre a necessidade das sessões terapêuticas de pelo menos duas especialidades duas vezes ao dia, a primeira a chegar foi a fonoaudióloga. Haviam se passado pouco mais de 48 horas desde o derrame, com mamãe acordada apenas nos últimos 40 minutos. E a tentativa de fazê-la ingerir algo que não fosse pela sonda nos colocou diante de uma nova condição: O AVC havia tirado da Terezinha parte da capacidade de deglutição (ato de engolir).
Mesmo texturas pastosas não eram bem recebidas, o que a fez sofrer uma broncoaspiração (entrada de alimento, saliva, líquido ou vômito nas vias aéreas) e, por isso, desenvolver uma pneumonia – que, por sua vez, desencadeou um derrame pleural. Ou seja: o espaço entre o pulmão e a membrana que o protege (a pleura) estava cheio de água. Esses diagnósticos transformaram a atuação do fisioterapeuta, já prevista (foto ao lado), em algo essencial. Os exercícios para expansão dos pulmões e a retirada de secreção e de resíduos do alimento facilitaram a cura da infecção. Junto com a inserção de antibióticos, diuréticos e broncodilatadores, o quadro foi revertido.
Mas foram, ao todo, 16 dias assim. Entre melhoras, pioras, quadros febris, mudanças de medicamentos e descobertas de novas limitações impostas pelo AVC. Mamãe estava longe de um estado vegetativo, mas de fato, como adiantou o neurologista, não andava e nos colocou diante de um revés preocupante. Dali em diante, seria necessário mudá-la de posição a cada duas horas na maca.
Lado esquerdo, centro, lado direito. Lado esquerdo, centro, lado direito. Lado esquerdo, centro, lado direito. Todos os nossos dias seriam contados assim. Para sempre. Do contrário, correríamos o risco de ver nascer em mamãe feridas difíceis de sarar e sobre as quais só ouvíamos relatos nada animadores (as escaras).
Além disso, a Terezinha balbuciava algumas frases e pedaços das canções que sempre cantarolou em casa. Muitas delas inaudíveis, mas o simples fato de ela tentar e conseguir emitir algum som já era uma grande vitória. Passara também a usar fraldas. E água/comida/alimentos eram dados exclusivamente pelo tubinho branco alojado no nariz.
Por isso, conforme aproximava-se o dia da nossa alta, a orientação médica era para mantermos as terapias em casa, de modo a garantir alguma qualidade de vida para mamãe, bem como seria necessário lidar com algo até então restrito às enfermeiras e técnicas de enfermagem do hospital (e que eu tanto evitava desde o primeiro dia de internação): o manuseio da sonda nasoentérica – e todo o imenso universo em torno dela.
Aquele duto branco me assustava. Saber que seríamos nós, dali em diante, os responsáveis pela gestão das sequelas do AVC, que não haveria mais ninguém para dar suporte na alimentação, hidratação e medicação de minha mãe, imaginar tudo isso me paralisava. Eu tinha medo. Medo de falhar e essa falha ser fatal para ela. Medo de estar sendo convocado a algo muito maior do que eu. Mas quando se está sozinho diante da necessidade do outro, eu aprendi, a única saída é se convencer de que é possível.
Foi assim que lidei com as incontáveis recomendações da nutricionista para convivermos com as sequelas do AVC em mamãe. Era preciso atenção ao gotejamento da dieta enteral: lento demais, ela teria gases; rápido demais, corria-se o risco de diarreia. O derrame mudara o organismo da Terezinha por completo. Depois de nove décadas acostumado a uma rotina, o corpo dela agora teria de se adaptar a outro ritmo. E isso incluía os hábitos gastrointestinais.
Por causa do AVC, disfunções intestinais poderiam ser frequentes, assim como os quadros de incontinência fecal e urinária. Tudo era assustador. Mamãe saíra de um quadro de autonomia para a total dependência. Não fazia nada sem a ajuda de alguém. E nós nos vimos levados a exercitar nossos dias a partir das necessidades dela, não das nossas. Algo que transformou completamente nossa rotina. Nossas vidas.

Comunicólogo e mestre em Antropologia, é especialista em Jornalismo Político e Escrita Literária e tem MBA em Comunicação e Marketing em Mídias Digitais. Foi repórter e editor dos jornais O Estado e O POVO, correspondente do portal Terra e colaborador do El País Brasil. Atua hoje como assessor de comunicação. Venceu o Prêmio Gandhi de Comunicação, o Prêmio MPCE de Jornalismo e o Prêmio Maria Neusa de Jornalismo, todos com reportagens sobre a população negra. No Ceará Criolo, é repórter e editor-geral de conteúdo. Escritor, foi finalista do Prêmio Jabuti de Literatura 2020.
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